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511
Luis Grigolini
0
El-Obeid
21. 7.1873

N.o 511 (481) - A LUÍS GRIGOLINI

ACR, A, c. 15/51

J. M. J.

El-Obeid, capital do Cordofão

21 de Julho de 1873



Meu caro Grigolini,


 

[3277]
Embora assoberbado com mil ocupações e apesar de ter quase mil cartas para escrever para as cinco partes do mundo, não quero demorar-me mais a mandar duas linhas ao meu caro Grigolini, comunicando-lhe que as famosas garrafas que deu à minha passagem por S. Martinho foram gloriosa e devidamente bebidas para a maior glória de Deus e a nossa saúde nos seguintes lugares:

1.o Duas, no meu instituto do Cairo, com a participação de todos os sacerdotes missionários.

2.o Uma, oferecida ao superior dos Irmãos das Escolas Cristãs do Cairo, amigo e benfeitor nosso.

3.o Uma, ai!, aberta por engano em Assuão, nas primeiras cataratas do Nilo: queria convidar dois religiosos franciscanos que tinham deixado Cartum depois que a S. Sé lhes tirou a missão para no-la dar a nós, mas convidá-los com uma garrafa (coisa rara nestes países) de vinho corrente. Ao invés, ai, por engano bebeu-se o Pullicella de Grigolini.


[3278]
4.o Uma garrafa bebemo-la em Cartum com o meu rev.mo vigário-geral, o P.e Carcereri.

5.o E uma tenho-a ainda escondida no meu baú e da qual ninguém sabe nada. Porém, beber-se-á aqui na capital do Cordofão, talvez a 14 de Setembro, em que farei a solene consagração do vicariato ao Sagrado Coração de Jesus.


[3279]
O senhor vê que não seria mal, antes bem, se pensasse em fazer de modo que outras sublimes garrafas de tal género fossem assim gloriosamente honradas na África central. Porém, haveria que evitar o maçador imposto de consumo a que estão sujeitos tais envios na Rua do Seminário, núm. 12, em Verona: conviria que a caixa ou o que fosse se enviasse directamente para Alexandria do Egipto, ao sr. Ângelo Albengo, meu procurador, o qual se encarregaria de ma fazer chegar a Cartum.


[3280]
Embora nesta longa viagem tenha de passar ainda a alfândega do Instituto do Cairo, todavia espero que também nós pobres africanos da África Central venhamos a saboreá-lo como coisa vinda do outro mundo.

Alarguei-me demasiado neste assunto. Agora limito-me a mandar-lhes cumprimentos a si a seu irmão e às suas excelentes famílias, assegurando-lhe que rezamos por eles e que eu rezei uma missa no Cairo por si e que rezarei outras de vez em quando. É absolutamente necessário que vamos para o Céu.


[3281]
Em noventa e nove dias de terrível viagem cheguei com a grande expedição a Cartum, e em dez dias e meio mais, cheguei aqui ao Cordofão. Noutra carta falar-lhe-ei da grande missão que Deus me confiou, que é a mais difícil e colossal do universo. Falar-lhe-ei da escravidão, de como se faz o tráfico de escravos, se vende e se oprime aqui a milhares e milhares de rapazes e raparigas, roubados aos seus pais, por vezes depois de os terem assassinado. Por agora temos duas grandes missões abertas, uma em El-Obeid e outra em Cartum; e em breve abriremos a de Schellal e levaremos a cruz ao território nuba, a pátria de Bajit Miniscalchi, que está a cinco dias a camelo daqui. No dia 14 de Setembro próximo, faço a solene consagração ao S. Coração de Jesus de toda a África Central: esse dia reze e faça rezar muito o arcipreste de S. Martinho, meu caro mestre, a quem desejo que o senhor faça uma visita especial por mim e outra a P.e Dallora. Se não morrermos, talvez voltemos a ver-nos reunidos na Mariona, na qual adquiri uma espécie de direito. Mando-lhe a bênção a si e a toda a sua família e declaro-me nos Sag.dos Corações de J. e M.



Seu af.mo amigo P.e Daniel Comboni,

Pró-vigário ap. da África Central






512
Card. Alexandre Barnabó
0
El-Obeid
25. 7.1873

N.o 512 (482) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SOCG, v. 1003, ff. 734-735

N.o 7

El-Obeid, capital do Cordofão

25 de Julho de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

[3282]
Recebi com sumo prazer a sua estimadíssima de 29 de Abril, n.o 1. Tornam-se verdadeiramente gratas a uma distância tão grande as veneráveis palavras dos superiores, que são a expressão da vontade divina. Tomo nota do parecer e desejo de V. Em.a sobre a reabertura do estabelecimento de Schellal. Em tempo oportuno e quando as forças o permitirem, levar-se-á a cabo, sem dúvida alguma. O seu clima é saudável.


[3283]
Cada vez disponho de mais argumentos que demonstram esplendidamente a importância da missão de El-Obeid. Se bem que na actualidade tenha posto o meu empenho principalmente em reavivar, estabelecer e consolidar bem as duas missões fundamentais, as de Cartum e de El-Obeid, que são a base de operações para estender paulatinamente a acção do Catolicismo às tribos que habitam a parte oriental do vicariato até para lá das nascentes do Nilo e as imensas populações das vastas regiões que constituem o centro do mesmo vicariato, contudo tão-pouco deixamos, entretanto, de nos ocupar das tribos e povos próximos do Cordofão, onde o Islamismo ainda não penetrou, adquirindo exacta informação sobre eles, aprendendo as suas línguas e estudando sempre pouco a pouco o modo mais fácil e adequado para poder um dia, com segurança e eficácia, estabelecer missões neles.


[3284]
Para tal fim, mostramo-nos muito activos em preparar já bons colaboradores indígenas dessas terras, educando-os na fé e na civilização cristã. E com não pouco esforço tratamos de compor um dicionário e uma gramática da língua dos Nuba, assim como um pequeno catecismo nessa língua.


[3285]
A semana passada veio visitar-me três vezes com um bom séquito um dos reis ou chefes dos povos Nuba, o qual acorrera a El-Obeid para pagar a este paxá o tributo de várias populações que confinam com o Sudoeste do Cordofão. Chama-se Nemur. Manda ainda em não poucos povoados que nunca se submeteram a pagar o tributo e mantêm perfeitas relações com quase todos os chefes ou reis dos povos Nuba, que nunca foram vencidos pelos turcos e que ainda são independentes. Este rei fez-me um convite explícito para que vá a suas terras ou, ao menos, que mande lá missionários, para erigir uma igreja, criar escolas e ensinar-lhes a nossa religião. Um do seu séquito, que tinha sido escravo na Síria, onde tinha visto os cristãos e conhecido as suas igrejas, disse-me que em dez anos que nós lá estivéssemos, todos se tornariam cristãos.


[3286]
Pedi ao chefe alguma informação sobre aqueles lugares e fiquei a saber que os seus habitantes foram atacados muitas vezes pelos árabes Bagara e pelos turcos, mas quase sempre os tinham repelido; que em repetidos roubos os árabes tinham conseguido arrebatar-lhes milhares de meninos e meninas; que nunca quiseram saber nada nem dos turcos nem de Maomé; que sabem que há um Deus, mas nunca o viram e não sabem rezar, como viram fazer em El-Obeid e na Síria; que, segundo o que lhes contaram os antepassados, que trataram com os Habbasc (abexins), muitos destes praticam a seguinte cerimónia com seus filhos: quando um recém-nascido tem oito dias, vem um óeuru (mago), que unge todo o corpo do menino com uma certa gordura, depois do que ele mesmo se mete na água, toma a criança, submerge-o na água e devolve-o à mãe. Falaram com desprezo do Cordofão, elogiando o clima e a fertilidade da sua própria terra. Observaram maravilhados a nossa bela capela, a escola, alfaias agrícolas, carpintaria, serralharia, etc., e, nas três visitas que me fizeram, insistiram em que eu fosse ao seu país fundar uma igreja e uma escola.


[3287]
Eu acolhi-os muito bem, mostrando-lhes que estou disposto a realizar o seu desejo, logo que se cumpram muitas condições. Anunciei-lhes que, ao irmos à sua terra, levaríamos connosco alguns dos seus jovens para os devolver às suas famílias e ordenei-lhes que, de vez em quando, me mandassem alguém deles, para me informarem do seu interesse e das suas intenções. O chefe Nemur ofereceu-se espontaneamente a voltar aqui depois do karif, ou colheitas, em Outubro. Ofereci-lhe alguns medicamentos e medalhas e uma fotografia do excelente negro Bajit Minischalchi (a quem monsenhor o secretário teve o ano passado a bondade de conduzir aos pés de Sua Santidade), o qual é originário daquela zona; e, muito contente, foi-se com todo o seu séquito, de regresso às terras dos Nuba.


[3288]
Por agora não emito nenhum juízo sobre este facto, que poderia ser importantíssimo. Quero pensar sobre isso, ver se esconde algum engano, examinar se tem algo de positivo com que se possa contar, estudar bem tudo e depois esperar o tempo fixado por Deus.


[3289]
Depois de ulteriores observações, enviar-lhe-ei uma breve relação sobre os horrores do tráfico de negros, do qual é trágico teatro este vicariato. A Inglaterra, sob a artificiosa justificação de abolir a escravatura, manda os seus embaixadores a Zanzibar e a Mascate para favorecer os seus interesses políticos e os seus planos de conquista. Mas é na África Central, mais que em nenhuma outra parte, onde faz estragos esta chaga da humanidade; e a missão católica poderá mais que os canhões, pois com a bênção divina triunfará pouco a pouco na grande empresa.

Beijando-lhe a sagrada púrpura, nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria tenho a honra de me proclamar



De V. Em.a Rev.ma

Hum. devot.mo e obed.mo filho

P.e Daniel Comboni, pró-vig. ap.






513
Presidente O. S. Infância
0
El-Obeid
31. 7.1873
N.o 513 (483) - AO PRESIDENTE DO CONSELHO

DA OBRA DA SANTA INFÂNCIA

ACR, A, c. 14/137 n. 1



El-Obeid, capital do Cordofão

31 de Julho de 1873



Sr. presidente,



[3290]
Uma nova obra, digna da sua caridade, vem pedir a ajuda da Santa Infância. Trata-se de ajudar as crianças do vicariato apostólico da África Central, o qual foi confiado o ano passado pela Santa Sé ao novo Instituto das Missões para a Nigrícia de Verona e à minha pequenez com o título e os poderes de pró-vigário apostólico.

O vicariato da África Central é a mais vasta e laboriosa missão do universo inteiro e conta com mais de cem milhões de infiéis. Está situado entre as missões do Egipto, Trípoli, Abissínia, os Gallas, Costa do Benim e Guiné meridional; a oeste tem como limite a linha que vai de Morzouk ao Níger e a sul chega aos doze graus de latitude austral.


[3291]
As obras que até agora fundei para a grande conquista da Nigrícia são:

1.o Dois pequenos institutos no Cairo, um masculino e outro feminino, para aclimatar os missionários e as irmãs destinados à África Central e para educar os meninos e as meninas negros na fé e nas artes e ofícios.

2.o Dois institutos em Cartum, capital do Sudão Oriental situada a 15 graus de latitude Norte.

3.o Duas instituições na cidade de El-Obeid, capital do Cordofão. Esta cidade, de onde tenho a honra de lhe escrever, é habitada por mais de cem mil pessoas e na actualidade é a cidade mais central entre todas as missões da África aqui existentes. Encontra-se entre os 12o e os 13o de lat. norte.


[3292]
Cartum é a base de operações para a parte oriental do vicariato, parte que abrange todas as imensas tribos do Nilo Branco e das nascentes do Nilo até aos grandes lagos do Niassa, Tanganica e os países de Lunda e Muemba.

El-Obeid é a base de operações para a parte central do vicariato: é a verdadeira porta da Nigrícia interior e o centro de comunicação com o reino de Darfur, o império de Bornu, as enormes tribos dos Nuba, Fertit, Waday, Tchad e com os milhares de tribos que habitam as regiões do Sudoeste.


[3293]
Todos os meus esforços se orientam para consolidar bem estas duas missões, nas quais preparamos indígenas das tribos centrais para que sejam apóstolos de fé e civilização entre a sua gente. Depois, avançaremos, pouco a pouco, até aos países do interior, à medida do pessoal disponível e os recursos que a Propagação da Fé e a Obra da Santa Infância nos facultarem.


[3294]
Em Cartum dirigem a obra feminina as Irmãs de S. José da Aparição, de Marselha, que vivem numa casa arrendada por 1200 francos ao ano. Comprei o terreno para construir a casa das irmãs, onde devo abrir um grande orfanato para os meninos pequenos. O mesmo devo fazer el El-Obeid.


[3295]
Agora há aqui um grande número de crianças para recolher, os quais frequentemente são abandonados por suas mães. Há também mães que fogem dos seus patrões com as suas criaturas e se refugiam na missão. Com frequência é preciso acolher mães e filhos, porque, de contrário, correriam perigo mortal os corpos e as almas de umas e de outros.

Mas para atender à necessidade de fundar grandes orfanatos carecemos totalmente de recursos. Por isso, senhor presidente, dirijo-me com lágrimas nos olhos à sublime Obra da Santa Infância, a fim de obter uma importante ajuda para poder salvar milhares de meninos negros.


[3296]
Construir uma casa nestes países é muito custoso: há que trazer da Europa os utensílios necessários e um pedreiro não trabalha por menos de 20 francos por dia, enquanto os seus ajudantes têm que ser rogados com insistência para que trabalhem por 10 francos ao dia. Isto em Cartum, onde o número de pedreiros é muito pequeno. Aqui em El-Obeid custam menos as obras, mas há que duplicar o pessoal que trabalha.

Além disso, há que pensar que neste vicariato tudo o que é necessário para a vida e para uma construção custa como mínimo seis vezes mais que no Egipto, porque a maior parte do material é preciso trazê-lo de lá com camelos, pelo grande deserto de Atmur e pelas planícies do Cordofão.


[3297]
Espero que a Santa Infância me preste a sua ajuda para a construção e a manutenção de dois grandes orfanatos. Neste vicariato está tudo por fazer, de modo que são necessárias substanciais contribuições. As privações dos meus missionários, das minhas freiras, dos meus catequistas, das mestras negras e dos irmãos coadjutores são muito grandes; o clima é muito quente e as distâncias tão grandes que, às vezes, nas viagens, durante meses inteiros não se vê mais que a abóbada do céu pela noite e de dia o Sol africano, cujos ardores caem sobre as nossas costas.

Digne-se, senhor presidente, aceitar o meu humilde pedido e as expressões de profundo respeito com que me honro em chamar-me, nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria



Seu humílimo servidor

P.e Daniel Comboni

Pró-vigário apostólico da África Central



Original francês

Tradução do italiano






514
Mgr. Joseph De Girardin
0
El-Obeid
31. 7.1873

N.o 514 (484) - A MONS. JOSEPH GIRARDIN

AOSIP, Afrique Centrale

J. M. J.

El-Obeid, capital do Cordofão

31 de Julho de 1873



Monsenhor,


 

[3298]
Há seis anos que tive a honra de conhecer o ilustre director da Santa Infância, o qual talvez ainda não se tenha esquecido de ter visto em Roma e em Paris um pobre missionário, sobrevivente de tantos que tinham morrido na África Central; esse missionário fazia muita viagem para fundar a obra da regeneração da Nigrícia e implantar, de forma duradoura, a fé católica nesta parte do mundo, a mais infeliz e abandonada. Pois bem, esse pobre missionário é o que se honra de lhe escrever do centro da África para implorar fortes ajudas da admirável obra que o senhor dirige.


[3299]
Junto à presente, envio-lhe uma petição para o presidente do Conselho da Santa Infância e rogo-lhe insistentemente que me escute e apoie a minha causa, que é santa e conforme o objectivo especial dessa obra sublime, que povoou o céu de pequenos larápios do Paraíso.

Antes de lhe falar da deplorável situação da infância neste vicariato, permito-me dizer-lhe duas palavras acerca da minha obra e sobre como Deus mesmo a dirigiu.


[3300]
Em 1846, Gregório XVI, de santa memória, erigiu o vicariato da África Central e confiou-o a mons. Casolani, bispo de Mauricastro e vigário apostólico, que obteve a colaboração de dois padres jesuítas, o P.e Ryllo e o P.e Pedemonte, e de dois alunos do Colégio da Propaganda. Esta, por o P.e Ryllo estar mais bem informado do caminho mais seguro para empreender a obra, que era o do Egipto e da Núbia, pôs à frente da missão o dito padre, o qual em 1848 conduziu a expedição até Cartum, onde morreu. Sob o governo do seu sucessor, mons. Knoblecher, a missão fez progressos, porque pôde abrir, além da estação de Cartum, uma entre os Kich, a 6o de lat. norte e outra em Gondokoro, a 4o da mesma latitude, junto às nascentes do Nilo.


[3301]
Porém, como a diferença climática entre a Europa e a África Central é enorme, de quarenta missionários que foram directamente da Europa para o Sudão morreram trinta e cinco e quatro voltaram para a Europa para não regressarem jamais à missão. O restante, que sou eu, regressou à Europa com a ideia de voltar para sacrificar aqui a vida. Então a Propaganda experimentou a mandar os franciscanos, que em 1861 ocuparam o vicariato; mas depois de ter perdido vinte e dois dos seus, todos regressaram à Europa, excepto três, os quais, tendo sido abandonadas todas as estações, menos a de Cartum, permaneceram nela até ao ano passado. Por causa da supressão das ordens religiosas na Itália, os pobres franciscanos, que obtinham dos conventos da Itália a maior parte dos seus missionários, viram-se forçados a abandonar a África Central e também as outras missões. Foi então que a Santa Sé confiou este grande vicariato a um novo instituto que fundei com a ajuda e protecção do senhor marquês de Canossa, bispo de Verona.


[3302]
Desde 1857, quando me encontrava na missão dos Kich, no Nilo Branco, aqui na África Central, passei por todas as provas deste difícil apostolado. E tendo estado onze vezes a ponto de morrer por causa do clima e das enormes fadigas, vi-me na necessidade de regressar à Europa, onde, ao cabo de uns anos, já restabelecido, pensei no modo de voltar a este campo de batalha para nele sacrificar a vida pela salvação dos negros. Foi a 18 de Setembro de 1864 quando, ao sair do Vaticano, onde tinha assistido à beatificação de Margarida M.a Alacoque, me veio à mente apresentar à Santa Sé a ideia do Plano retomar o apostolado da África Central. O Sagdo. Coração de Jesus fez-me superar todas as enormes dificuldades o meu Plano orientado para a regeneração da Nigrícia com a própria Nigrícia.


[3303]
Em 1867 fundei em Verona o Instituto das Missões para a Nigrícia e no fim do mesmo ano abri duas casas para negros no Cairo. O senhor, que tem uma imensa prática em obras deste género, não precisa que lhe explique toda a história, a finalidade e a importância destas obras preparatórias para instalar estavelmente o apostolado nas regiões centrais da África. Eu tinha que proporcionar à obra um corpo de eclesiásticos para cobrir sempre as necessidades de pessoal da missão. E além disso tinha que procurar a maneira de os missionários europeus poderem conservar a saúde o maior tempo possível nestes lugares abrasadores da África Central.


[3304]
Para este fim, com a poderosa protecção de mons. Canossa (seu pai era irmão da venerável fundadora – cuja causa de beatificação está agora a ser tratada – das Filhas da Caridade de Verona, que estão também estabelecidas em Hong Kong e em Hu-pé, na China; e o bispo é também cunhado da senhora Teresa, marquesa Durazzo do S. Coração, de Paris) fundei o Instituto das Missões da Nigrícia em Verona, que foi canonicamente aprovado pelo bispo e estabeleci no Cairo duas instituições preparatórias para as missões da África Central, as quais me formaram em cinco anos 54 bons colaboradores, que são agora muito úteis para o meu vicariato.


[3305]
Como os padres franciscanos não ocupavam dele senão a cidade de Cartum com dois missionários, querendo fazer chegar a minha obra aos países da África Central, que não tinham nunca ouvido a palavra de Deus, e vendo-me bem provido de pessoal indígena, em 1871 enviei ao Cordofão quatro exploradores para verem se era oportuno fundar na sua capital, El-Obeid, uma missão e ocupar utilmente o dito pessoal naquilo para que tinha sido educado. Os exploradores, comandados pelo P.e Carcereri, meu actual vigário-geral, em oitenta e dois dias de viagem, chegaram ao Cordofão e, após reconhecerem bem a região, pareceu-lhes conveniente estabelecer uma missão em El-Obeid, segundo as instruções que tinham recebido no Cairo.


[3306]
Então fui a Roma para pedir o Cordofão para o meu instituto de Verona. Mas a Santa Sé, depois da renúncia dos veneráveis padres franciscanos a Cartum e à África Central, decidiu conceder-me todo esse vicariato, que é maior que a Europa inteira e se estende até aos 12o de latitude Sul.


[3307]
Quando regressei ao Cairo, fiz os preparativos para a grande expedição à África Central e a 26 de Janeiro deste ano parti da capital do Egipto com um grupo de 33 pessoas, entre missionários, freiras, mestras negras e irmãos leigos. Depois de uma fadigosa viagem de 99 dias cheguei a Cartum. Depois, tendo ficado aí um mês, parti para o Cordofão, onde me encontro há cinquenta dias. Só a viagem do Cairo até Cartum e El-Obeid custou-me 22 000 francos e isto sofrendo muito, não bebendo nunca vinho nem eu nem os demais e sobretudo uma grande pobreza. Mas como esta missão é árdua, difícil e dolorosa, é preciso que os missionários estejam dispostos a um martírio lento e contínuo.


[3308]
Agora em Cartum e El-Obeid temos a propriedade das casas dos missionários, mas as das irmãs tive que as arrendar e pago 1200 francos anuais em Cartum e um pouco menos em El-Obeid. Aqui nunca bebemos vinho, porque é demasiado caro: uma garrafa normal de vinho corrente para a missa, que no Cairo custa 60 cêntimos, aqui não se encontra por cinco francos. As batatas estão a 130 cêntimos o quilo. Tudo o que é mais necessário para a vida é muitíssimo caro. Em Cartum temos o pão muito caro, mas aqui nem sequer o há, pelo que nunca comemos pão, mas fahit, uma espécie de pão de sorgo silvestre, que na Europa apenas as galinhas comeriam. Mas nós estamos muito contentes, porque fazemos a vontade de Deus e procuramos a salvação das almas mais abandonadas.


[3309]
Uma das minhas primeiras preocupações é a de fundar dois grandes orfanatos para a infância, que seriam dirigidos pelas irmãs. Tenho de dar-lhe uma ideia da deplorável situação destes países para que o senhor possa compreender tudo. A abolição da escravidão, decidida pelas potências europeias em Paris em 1856, é letra morta para a África Central. Os tratados existem no papel, mas aqui o tráfico está em pleno vigor. Todos os meses do ano, exceptuada a época das chuvas equatoriais, saem homens de Cartum e de El-Obeid que se dirigem às tribos de negros próximas. Entram nelas armados de fuzis e pistolas e levam violentamente meninos e meninas, pequenos e mais crescidos, de famílias pacíficas. Para vencer a resistência que os pais opõem, muitas vezes matam-nos. E com todos estes meninos e suas mães, se estas forem jovens, encaminham-se para o Cordofão e a Núbia para os venderem.


[3310]
Entre eles vão desde meninos de dois dias até raparigas e mulheres de 24 anos aproximadamente; mães muito jovens de catorze a vinte anos, com duas ou três criaturas e também mães que ainda levam no ventre os seus filhos e que completamente nuas são conduzidas à Núbia, ao Cordofão ou ao Egipto. Cada ano se roubam centenas de milhares destes seres, talvez meio milhão. Desde o Cairo até Cartum nós vimos mais de trinta caravanas e embarcações deles. E desde Cartum até ao Cordofão, mais de mil destas pessoas, todas nuas e atadas pelo pescoço, as quais eram puxadas pelos jilabas (negociantes de escravos). Uma vez roubados estes pobres meninos e meninas, o amo dispõe deles a seu bel-prazer, destinando-os sobretudo aos haréns e à prostituição.


[3311]
Em El-Obeid são inumeráveis os recém-nascidos de que se desfazem fora da cidade, enterrando-os ou deixando-os estendidos no chão para que os abutres e outras aves os comam, tal como aos camelos, burros e outros animais mortos. Há quinze dias, dando um passeio fora da cidade, vi centenas destes pequenos cadáveres ou pedaços dos mesmos. Reclamei perante o paxá, o qual deu ordem de enterrar todos os negros mortos. Além disso, uma quantidade de meninos são vendidos com suas mães por 90 ou 100 francos. Nós temos numerosas mães com os seus pequenos, que adquirimos ou que nos foram dadas e nós metemo-las em pequenas cabanas que construímos e comprámos fora da missão.


[3312]
Eis aqui a grande necessidade de fundar um grande orfanato e de o confiar às Irmãs. Já comprei um terreno adequado próximo da minha residência. Mas preciso de dinheiro, seja para construir seja para manter e educar estas crianças. Mães para as aleitar há em abundância, até de onze anos, que podemos adquirir ou contratar. Também em Cartum é necessário um grande orfanato.


[3313]
Posto tudo isto, o senhor, monsenhor, deve ainda pensar que aqui nunca o Evangelho foi pregado e, por isso, pode imaginar as desordens, a corrupção e os efeitos da corrupção. É necessário ainda ter presente que de cem milhões de infiéis de que é formado o meu vicariato, cerca de oitenta milhões andam completamente nus, homens e mulheres. Ora, para estabelecer a fé católica, é preciso vestir ao menos as mulheres e um pouco os homens. Vesti-los acarreta uma despesa enorme, porque uma peça de tecido ordinário, que compramos no Cairo por 10 francos, aqui no Cordofão custa, ao menos, 40 francos. Só o transporte até ao Cordofão de uma caixa de vestidos e de camisas de mulher, que me mandaram gratuitamente da França, custou-me 67 francos. Pense agora o senhor nas despesas que é necessário fazer para fundar um orfanato para os nossos pequenos negros.


[3314]
No momento em que lhe escrevo, monsenhor, não temos nem sequer roupa branca para nós, porque tivemos que fazer uma camisa para cada uma das meninas e mulheres do nosso instituto feminino e fazer uma também para os rapazes. Nós dormimos vestidos sobre o nosso angareb que é constituído de pedaços toscos de madeira e ligado com cordas de palmeiras ou de pele de animais. Há em El-Obeid negociantes árabes (nem sequer um europeu) que têm tecidos, mas para os adquirir é preciso dinheiro, que não temos. Repare mais numa coisa: as camisas não duram aos negros como na Europa, onde há belas casas, camas e cadeiras. Aqui, as crianças dormem na terra nua ou, se as tivermos, sobre esteiras. Não há cadeiras; eles dormem e sentam-se sempre na chão; não têm sapatos: andam sempre descalços.


[3315]
Apesar de tudo isto, o sustento e a roupa de cada menino e menina, mesmo pequeno, custa-nos 7 francos e 74 cêntimos por mês, sem contar a casa e as mães que amamentam os pequenos. Mas isto assim não pode durar, porque eles acabarão por morrer. São precisos de 8 a 10 francos por cada um. Em Cartum é mais caro. Junte a isto os remédios que trouxemos do Cairo. Estes, quando chegam ao Cordofão, custam enormemente: por isso acrescente ainda as despesas com a sua aquisição.

Todos os dias se nos apresentam escravos para serem libertados da crueldade dos seus patrões. Apresentaram-se-me mães grávidas; se eu não as aceitar, serão punidas com a morte pelos seus sicários. Verifiquei que algumas delas, mesmo se grávidas, foram assassinadas.


[3316]
Então que fazer perante este miserável espectáculo? Levanto os olhos ao céu, confio na Providência e aceito. Agora, não tendo tempo para lhe escrever outras misérias, dirijo-me à Obra da Santa Infância e peço-lhe insistentemente que venha em meu socorro com um bom contributo anual. Se o senhor visse, monsenhor, o estado das populações da África Central, ficaria convencido de que nenhuma das missões da China e dos outros países do mundo merece ser ajudada como a minha.

Na China, as missões estão implantadas há séculos; aqui, no Cordofão, há apenas 486 dias que a fé católica entrou pela primeira vez. Portanto, aqui é preciso fazer tudo. A China é um país civilizado; a África Central não; as populações andam completamente nuas, homens e mulheres, à distância de dez ou até três dias daqui. Aqui as mulheres trazem, pelo caminho, uma pequena toalha de mão; as raparigas andam completamente sem vestido, ou com um cordãozinho de pele em baixo. Não tenho palavras para lhe exprimir a miséria destas terras e muitas coisas nem se podem sequer dizer por pudor. Portanto, recomendo esta santa causa ao seu admirável coração; defenda, monsenhor, a causa da África Central.


[3317]
Por nossa parte, missionários e missionárias estamos dispostos a morrer mil vezes pela salvação das almas. O nosso grito de guerra será sempre durante toda a nossa vida: «Nigrícia ou morte.»

Com a graça de Deus, seremos fiéis ao nosso propósito.


[3318]
Não quero ocultar-lhe que, quando a Santa Sé me confiou esta vasta e laboriosa missão, a minha consciência estava um pouco titubeante, porque conhecia a minha pequenez perante a enorme tarefa que Deus me confiava por meio do seu augusto vigário Pio IX e pensava que com as nossas forças nunca conseguiríamos estabelecer o Catolicismo nestas imensas regiões, onde a Igreja, apesar dos esforços de tantos séculos, jamais o tinha conseguido. Então pus toda a minha confiança no Sagrado Coração de Jesus e decidi consagrar-lhe todo o vicariato no dia 14 de Setembro próximo. Com o objectivo de dar a conhecer esta grande solenidade, mandei uma circular, e pedi ao admirável apóstolo do S. Coração, o P.e Ramière, que redigisse o acto de consagração solene, o que ele fez. Irei enviar-lho.


[3319]
E por agora termino, rogando-lhe que destine à infância do meu vicariato uma boa contribuição e que a envie para o Cairo ao meu representante, P.e Bartolomeu Rolleri, superior dos institutos de negros do Egipto. Ele far-me-á chegar tudo à minha residência principal por meio do Divã do Cairo.


[3320]
Até ao momento as autoridades turcas têm sido muito boas para com a missão. Vim para o vicariato com um decreto do imperador de Constantinopla, no qual outorga ao vicariato todos os privilégios concedidos aos cristãos do império turco. Isso contribuiu para que eu fosse muito bem recebido em todas as principais cidades do Sudão e faz com que sejamos completamente livres. Porém, a dois dias daqui, onde não há nenhum governo, o único decreto que temos é o da Providência Divina. Não obstante, a fama da nossa missão de El-Obeid chegou a toda a parte do reino de Darfur e do império de Bornu, estendendo-se também entre os Bogus e os Nuba. Um rei destes últimos veio convidar-nos a construir uma igreja e criar escolas na sua tribo, onde há um conhecimento ideal de Deus, mas falta completamente o culto e não se reza. Eles detestam o Alcorão e mataram todos os que lhes falaram dele.


[3321]
O meu objectivo actual é consolidar Cartum e El-Obeid como bases de operações. Depois estender-nos-emos para lá das nascentes do Nilo, onde há uma população idólatra ainda não contaminada e um clima muito bom.

Confio esta petição à Imaculada Virgem Maria, a fim de que inspire a Santa Infância a acorrer em ajuda desta missão, da qual depende, talvez, a salvação de todos os povos deste imenso vicariato.



P.e Daniel Comboni

Original francês

Tradução do italiano






515
Pastoral Consagr. Vicariato
0
El-Obeid
1. 8.1873

N.o 515 (485) - CARTA PASTORAL PARA A CONSAGRAÇÃO

DO VICARIATO AO SAGRADO CORAÇÃO

AP SOCG, v. 1003, ff. 736-737

El-Obeid, 1 de Agosto de 1873

DANIEL COMBONI

Por graça de Deus e da S. Romana Sé

Pró-vigário apostólico da África Central

Ao venerável clero e ao dilectíssimo povo católico

Do nosso vicariato apostólico, saúde em N. S. J. C.

E pastoral bênção


 

[3322]
Encarregados por disposição suprema de Deus e pela vontade do Sumo Pontífice Pio IX do árduo e laborioso apostolado da África Central, que é a mais extensa e povoada missão do universo, conscientes no profundo da nossa alma do peso da divina empresa, medimos a desproporção existente entre a nossa pequenez e a enorme magnitude e importância do mandato que nos era confiado. Por isso, confiados, elevamos os olhos ao Céu solicitando de lá de cima força e ajuda suficientes para apoiar e guiar a nossa fraqueza na grande tarefa que nos prefixámos. Agradou ao Senhor, em tal circunstância, inspirar-nos como meio seguro para o efeito desejado que reuníssemos nós mesmos os nossos fiéis e o inteiro vicariato apostólico sob a égide do sacratíssimo e amabilíssimo Coração de Jesus.


[3323]
Este Coração adorável, divinizado pela união hipostática do Verbo com a humana natureza em Jesus Cristo nosso salvador, livre sempre de toda a culpa e rico em toda a graça, não conheceu um instante desde a sua formação em que não palpitasse com o mais puro e misericordioso amor pelos homens. Desde o sagrado berço de Belém, apressa-se a anunciar pela primeira vez a paz ao mundo: menino no Egipto, solitário em Nazaré, evangelizador na Palestina, partilha a sua sorte com os pobres, convida os pequenos e desafortunados a que se aproximem, conforta e cura os doentes, devolve os mortos à vida, chama ao bom caminho os extraviados e perdoa aos arrependidos; moribundo na cruz, na sua extrema mansidão reza pelos seus crucificadores; glorioso ressuscitado, manda os Apóstolos pregar a salvação ao mundo inteiro.


[3324]
Este coração divino, que tolerou ser atravessado por uma lança inimiga, para saírem do seu lado aberto os sacramentos com que se formou a Igreja, de nenhum modo deixou de amar os homens, mas vive permanentemente nos nossos altares, prisioneiro de amor e vítima propiciatória de todo o mundo. E, não contente com isso, Ele mesmo, num aparição à beata Margarida M.a Alacoque, ofereceu-se trepidante de amor como remédio dos males que afligiriam o mundo, culpado e perecedouro, com promessas de protecção especial para aqueles que se consagrassem ao seu culto e adoração.


[3325]
Esta é a razão, ó dilectos filhos, pela qual estamos imbuídos da mais firme esperança de que no sagrado âmbito deste adorabilíssimo Coração estão reservados também os tesouros de graças que devem decidir a eterna salvação das imensas populações ainda curvadas sob o jugo de Satanás que foram entregues aos nossos cuidados. Daí que depois de enormes fadigas e desastrosas viagens, ao encontrarmo-nos finalmente entre vós, tenhamos resolvido proceder formalmente à solene consagração de todo o nosso querido vicariato apostólico da África Central ao Sacratíssimo Coração de Jesus. Por isso, convidamo-vos a todos vós a entrar com absoluta confiança nesta arca de salvação, a fim de nos livrar do dilúvio de tantos males que o Inferno continuamente vomita contra nós e que ameaçam todos os dias cada vez mais com o total extermínio do mundo.


[3326]
Confiamos que este fausto acontecimento, além de incrementar em vós a fé e o amor, abrirá novos caminhos de salvação ao grande povo, para nós tão dilecto, da Nigrícia interior, que ainda dorme nas trevas e na sombra da morte. Por isso, desejamos que se celebre com a maior solenidade e pompa possíveis; para esse fim, escolhemos para tal festa o dia 14 do próximo mês de Setembro, dia em que toda a Igreja comemora a solene Exaltação da Santa Cruz, símbolo do triunfo alcançado por Jesus Cristo sobre o Inferno e o pecado.


[3327]
Compete aos M. R. superiores e párocos das missões do nosso vicariato cuidar de que esse dia seja precedido por um tríduo de orações públicas e de que, em tal circunstância, se dê ao povo a instrução necessária sobre o tema, explicando a natureza, a importância e a edificação da sublime devoção ao S. Coração de Jesus, e convidando todos os fiéis a receberem os santíssimos sacramentos, para ganharem indulgência plenária que, em conformidade com as faculdades que nos foram conferidas pela Santa Sé no dia 12 de Junho de 1872, resolvemos aplicar em favor de todos os que, contritos, confessados e comungados, participarem na comovedora cerimónia desta solene consagração.


[3328]
O som festivo dos sinos durante meia hora depois do Maghreb anunciará a grande solenidade em cada um dos três dias e uma geral abstinência na véspera, com alimentação de estrito jejum, contribuirá para atrair sobre nós mais copiosamente as bênçãos divinas. Por outro lado, na manhã de 14 de Setembro, na santa missa, acrescentarão a colecta do Sagdo. Coração da missa própria «Miserebitur» e a missa solene será «Ritu votivo solemni de SS. Corde J. ut in die cum com. dom. occor. sub unica conclusione». Terminada a missa solene, expor-se-á o Santíssimo e o superior ou o pároco recitará em voz alta, em língua árabe, a fórmula da consagração que nós estabelecemos e que nós mesmos pronunciaremos na igreja da nossa actual residência do Cordofão. Finalmente será cantado o «Te Deum», concluindo a sagrada função com a bênção do Santíssimo Sacramento.


[3329]
Além disso, para que fique perene memória desta solene consagração do vicariato apostólico da África Central ao Sagrado Coração de Jesus, ordenamos que em todas as igrejas do nosso vicariato, todas as sextas-feiras do mês, depois da costumada devota prática da Guarda de Honra do Sagrado Coração de Jesus, seja igualmente repetida, coram SS.mo in perpetuo, esta fórmula de consagração e dê-se também a bênção ao povo. Será, além disso, especialíssimo empenho nosso dirigir quanto antes à Santa Sé os mais ardentes rogos, a fim de que se digne conceder que na sexta-feira seguinte à oitava do Corpus Domini, consagrado à festa do S. Coração de Jesus, seja formalmente consagrado dia santo obrigatório para todo o vicariato apostólico da África Central e que o nosso clero secular e regular o celebre com rito duplo de primeira classe, com oitava, segundo as regras gerais dos patronos.


[3330]
Estamos profundamente convencidos de que o faustíssimo dia desta solene consagração marcará uma nova era de misericórdia e de paz para o nosso caro vicariato e que do seio misterioso deste divino Coração trespassado brotarão torrentes de graça e rios de bênçãos celestes sobre este grande povo da África Central que nos é tão dilecto e sobre o qual ainda pesa tremendo, ao cabo de tantos séculos, o anátema de Cam.

Dado em El-Obeid, desta nossa residência do Cordofão, no dia 1 de Agosto de 1873.



P.e Daniel Comboni, pró-vig. ap.

P.e José Franceschini, pró-secretário






516
P.e Francisco Bricolo
0
El-Obeid
2. 8.1873

N.o 516 (486) - A P.e FRANCISCO BRICOLO

ACR, A, c. 14/27

J. M. J.

El-Obeid, capital do Cordofão

2 de Agosto de 1873

Meu muito estimado P.e Francisco,


 

[3331]
Realmente não sei que pensar do seu eterno silêncio. Escrevi do Egipto duas vezes para Vicenza, e agora, ainda que assoberbado de mil graves ocupações, não posso esquecer um instante o meu estimado P.e Bricolo e procuro por meio de P.e Guella fazer chegar as minhas cartas às suas mãos. Oh, como sinto não ter roubado dois dias para os ir passar consigo em Vicenza ou em Veneza! Porém, tinha tais compromissos que não soube, como devia, desembaraçar-me deles. Agora que estou tão longe é que dou conta da falta, porque já não tenho a esperança de poder brevemente dar uma saltada a Vicenza, ao separarem-me daí imensas e fadigosas viagens. Meu Deus!


[3332]
Agora, a primeira coisa que desejo dizer-lhe é que quero novas suas e uma carta de seis folhas, pelo menos. Estou completamente em jejum de notícias suas: não sei se está vivo ou morto. Ordenei a P.e Squaranti (ah, se se fizesse membro da minha obra apostólica, que abrange tantas partes, um P.e Francisco Bricolo) que lhe enviasse sempre os nossos pequenos Anais para lhe dar a conhecer notícias minhas. Por certo, em Lião, a Propagação da Fé publica semanalmente Les Missions Catholiques, e em Milão, no seminário de S. Calocero, imprime-se cada ano a tradução: também elas falam de mim. Mas eu não sei nada de P.e Francisco. Por isso, quero notícias.


[3333]
Em segundo lugar, pretendo pessoal: clérigos ou sacerdotes, ou santos agricultores, ou santos carpinteiros, ou santos pedreiros para a África. Portanto, desejaria que fornecesse à África Central missionários, sacerdotes e leigos de primeira classe, mandando-os primeiro ao modesto instituto do seminário. Também boas mestras com vocação religiosa, as quais seriam primeiro enviadas para Verona, ao instituto antes Astori, em Santa Maria in Organo, mas que agora é meu.


[3334]
E passo a dar-lhe rapidamente algumas notícias minhas, por falta de tempo. Na necessidade de trabalhar como pró-vigário, tenho mais de novecentas cartas para escrever, pois preciso de cultivar as relações que mantenho com tantos insignes benfeitores. Em menos de seis anos, desde que iniciei as pequenas fundações, gastei nas minhas obras mais de 500 000 (digo quinhentos mil) francos em ouro, ou melhor, nas obras de Deus (das quais eu sou o lava-pratos e S. José o ecónomo), criadas em favor da Nigrícia; tenho, pois, que fazer. Aí vão, pois, como um relâmpago, as minhas notícias.


[3335]
Com mais de dezasseis pessoas entre sacerdotes, leigos, irmãs, etc. fui de Verona para o Cairo. Trouxe comigo Perinelli, do Insto. P.e Mazza, como meu secretário. Porém, talvez seduzido pelos inimigos das boas obras, abusou do segredo de secretário e tornou público o que devia ter mantido secreto, porque afectava uma terceira pessoa. Em suma, formou partidos e criou divisões entre o pessoal, em vez de servir o seu chefe, que o tinha cumulado de gentilezas, gastando dinheiro com ele e dando-lho em abundância e apresentando-o a altas personalidades em Roma, Nápoles, Trani, Bari, etc. Ele, para apoiar P.e José Ravignani, queria que eu mandasse embora dois dos melhores missionários que tenho, entre eles um distinto cónego que foi pároco de 30 000 almas. Eu opus-me por amor da justiça.


[3336]
O facto foi que (provavelmente já tinha aprendido a formar partidos nas comunidades) me vi obrigado a expulsá-lo da missão. O mesmo fiz com o sobrinho do P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles, dois sujeitos que eu havia admitido sem os submeter a nenhuma prova. Fiat!


[3337]
Após superar imensas dificuldades, a 26 de Fevereiro, parti do Cairo em duas grandes embarcações com trinta pessoas, entre sacerdotes, monjas, negros e negras. E depois de grandes fadigas e mil perigos, dos quais nos salvámos por milagre, ao cabo de 99 (noventa e nove) dias de viagem cheguei a Cartum, onde a colónia, os paxás, os cônsules, todos, me receberam com um entusiasmo tal que ainda me sinto confundido. O grande paxá Ismail, de Cartum, cuja autoridade se estende até às nascentes do Nilo, ofereceu-me plena liberdade e o seu apoio para fazer o que eu quisesse e dispusesse dos escravos como eu quisesse e pôs-me à disposição os seus barcos para as minhas visitas pastorais pelo Nilo Branco, Nilo Azul, Berber, etc.


[3338]
De facto, pôs o seu vapor gratuitamente à minha inteira disposição para a minha viagem ao Cordofão, em que tive que fazer 127 milhas pelo Nilo Branco e entrar na selva. Em Cartum fizemos ressuscitar aquela estação já moribunda e agora a paróquia está em plena actividade. Administrei a confirmação a quem a não tinha recebido desde 1858. Noutro palácio, tomado de arrendamento, abri o instituto feminino, onde alojei as irmãs e as mestras negras e agora esse instituto floresce e faz milagres de caridade. Tenho freiras orientais de Jerusalém, de Alepo, do monte Líbano, bem como francesas e fazem prodígios, pelo que estou muito contente. Mas já irei mais ao pormenor noutras cartas sobre este assunto. A minha superiora, Sóror Josefina Tabraui, de Jerusalém, estava às portas da morte em Schellal, depois de ter tido vómitos de sangue, etc.; porém, com um assombroso milagre da venerável Canossa (a quem fizemos uma novena), curou-se em três dias e pôde cruzar o deserto na estação mais crítica, viajando dezassete horas ao dia, suportando 60o Réaumur, desde o meio dia às 4 da tarde e indo em marcha acelerada, de modo que aquele deserto entre Korosko e Abu-Hamed, que é o mais perigoso pela falta de água e que em 1857 atravessámos em 15 dias, agora, com as irmãs, com dezanove mulheres, passámo-lo em apenas seis dias e meio.


[3339]
Eu cheguei a Berber mais morto que vivo. Como ia munido de um decreto do grande sultão de Constantinopla, obtido pelo imperador da Áustria, todos os paxás e mudires do Sudão me receberam jubilosamente e me ofereceram os seus serviços. Em Berber, obtive o barco desse paxá. A minha entrada em Cartum e na capital do Cordofão e o que se fez até agora sabê-lo-á pelos nossos Anais de Verona. À minha chegada ao Cordofão, o paxá publicou o decreto da abolição da escravatura, o que nunca se tinha feito aqui; pelo que este mercado, que estava todos os dias cheio de milhares de escravos amarrados, agora encontra-se vazio. E que eu não veja pela rua nenhum escravo amarrado, porque o levo imediatamente para a missão e não o devolvo.


[3340]
Na viagem entre o Nilo Branco e El-Obeid encontrei milhares de escravos de todas as idades e de ambos os sexos. Uns iam em grupos de dez ou doze atados ao pescoço com uma corda, cuja ponta era agarrada por um jilaba; outros, em grupos de oito a dez, raparigas e rapazes misturados, levavam o pescoço atado a uma viga que apoiavam nos ombros; outros tinham cadeias de ferro nos pés ou os braços amarrados às costas ou arrastavam a scheva, uma trave atada ao pescoço. E iam todos nus, empurrados por aqueles esbirros; a maior parte eram raparigas de dez a vinte anos completamente nuas. Compreenda bem a sublimidade da minha missão. Mas basta.


[3341]
Esta cidade de El-Obeid é a verdadeira porta da Nigrícia. Mais à frente saberá a história desta magnífica missão nascida recentemente quase por encanto, onde há um clima óptimo – agora temos 18 graus –, chove bem e não existem nem febres nem nada. Em Outubro de 1871 mandei os padres Carcereri e Franceschini explorar o Cordofão. Resultou bem e agora tenho aqui uma magnífica casa com jardim e a casa feminina em ordem, ambas compradas e pagas. É uma missão que promete muito. Além disso é a porta da Nigrícia. Em cinco dias vai-se a Gebel Nuba, pátria de Bajit Miniscalchi. Um dos chefes de lá veio convidar-me a construir aí uma casa e uma escola: são um terreno e clima magníficos.


[3342]
Noutros dois dias, indo para noroeste, chega-se a Darfur e em doze ao lugar onde reside o sultão. Num mês de viagem alcança-se daqui o vasto império de Bornu, enquanto a partir de Trípoli são precisos cento e catorze dias. Bornu está sob a minha jurisdição. O meu vicariato encontra-se entre o Egipto e os 12o de latitude Sul, e entre o mar Vermelho e Suakin, Abissínia, os Gallas e o Níger. É o maior e mais povoado do universo. Portanto, por caridade, procure-me candidatos e mande-os para Verona.


[3343]
Saúde da minha parte o senhor bispo, P.e Sartori e todos os da casa, assim como P.e Quinto e todos os jovens. A 14 de Setembro faço a solene consagração de todo o vicariato ao Sag.do Coração de Jesus, do qual espero a conversão de todos. Em Outubro continuo a minha visita pastoral e, no vapor que puseram gratuitamente à minha inteira disposição, irei a Gondokoro. Em Janeiro subirei o Nilo Azul até aos confins da Abissínia e Suakin. Baker, que regressou das nascentes do Nilo, diz que devo estabelecer lá uma missão. Estabelecê-la-ei, mas encontre-me missionários. Sou seu af.mo em J. C. usque ad mortem (cumprimente P.e Bártolo, em Veneza).



P.e Daniel Comboni

Pró-vig. ap. da África Central






517
Circular ao clero do Vicariato
0
El-Obeid
10. 8.1873

N.o 517 (487) - CARTA CIRCULAR AO CLERO DO VICARIATO

AP SOGG, v. 1003, ff. 740-741

El Obeid, 10 de Agosto de 1873

DANIEL COMBONI

Pró-vigário apostólico da África Central

- - - - - -

Aos M. R. párocos e vigários paroquiais e confessores

do nosso muito dilecto vicariato apost. da África Central,

saúde e todo o bem de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor


 

[3344]
Desde que nos entregámos ao cuidado espiritual do imenso vicariato, que nos foi confiado pela Santa Sé Apostólica, a nossa primeira e especial preocupação foi a de conhecer o estado moral dos fiéis sob a nossa jurisdição, a fim de lhes prestar a ajuda que nos fosse possível e eles pudessem necessitar. Deste modo, tornou-se-nos fácil encontrar também entre eles a dualidade do bem e do mal que se encontra em toda a sociedade humana. Assim, enquanto nos confortou não pouco esse impulso de fé que os leva geralmente a respeitar as autoridades eclesiásticas quase até ao entusiasmo e esse ânimo com que alguns se sentiram dispostos a retornar aos caminhos da eterna salvação, por outro lado entristeceu-nos a quase indiferença moral que leva muitos outros a violar com demasiada frequência alguns dos mais importantes preceitos da lei divina, natural e eclesiástica.


[3345]
Isso obriga-nos a levantar, por vossa mediação, a voz contra o lobo que assola o rebanho e a dizer com as palavras do Apóstolo (2 Tim 4) a cada um de vós, nossos mui queridos e solícitos colaboradores e irmãos nas nossas graves tarefas pastorais: «Praedica verbum, insta opportune, importune: argue, obsecra, increpa in omni patientia et doctrina», «ne quis eorum ignoranter pereat». Fazei-lhes compreender primeiro que a fé sem obras está morta, como diz Santiago (Ep. Cath. c. 2), e que a verdadeira fé, sem a qual é impossível agradar a Deus (Hb 11), é aquela que, como diz S. Gregório Papa (Hom. 29 in Ev.), não nega com as obras o que afirma com as palavras. Depois, mostrai-lhes como e quão grave é o pecado da mancebia.


[3346]
Desde que Jesus Cristo chamou de novo o matrimónio à sua primitiva unidade e o elevou à dignidade de sacramento, é uma grave culpa toda a união fora deste estado único; porém, quanto a isto, muito mais se deve dizer do concubinato, que é um estado e uma união habitualmente oposta ao matrimónio. Fazei-lhes ver também o grande escândalo que os concubinos causam aos restantes fiéis e até aos infiéis, muitos dos quais sabem muito bem que isso é pecado para os cristãos. E não vale, para diminuir a culpa, o pretexto de que nestas terras do Sudão é esse o costume: Jesus Cristo não fez nenhum excepção para o Sudão, mas instituiu uma lei geral para todos os tempos, lugares e pessoas e não se salva quem não observa esta lei.


[3347]
Ele condenou directamente o concubinato na Samaritana (Jo 4) e depois todos os padres e concílios ecuménicos consideraram-no sempre como um grave pecado, de tal modo que o Concílio de Trento decretou em especial (Ses. 24, c. 8) contra os que o cometem a pena de excomunhão ferendae sententiae post trinam monitionem e a de os expulsar da cidade e da diocese com a ajuda das autoridades seculares. Sem dúvida, sabeis que em quase todos os sínodos se considera este pecado como um dos maiores e mais prejudiciais e que as próprias leis da Europa o castigam severamente (Scavini T. I, tr. 4, Disp. 2, c.2, art. 1); e tão-pouco ignorais que aos amancebados públicos se lhes proíbe pelo Ritual Romano (De Patrinis et de quibus non licet dare eccl. Sepult.) ser padrinhos e privam-se da sepultura eclesiástica, como pecadores manifestos, nisi dederint signa poenitentiae.


[3348]
Declarai, pois, publicamente, que estamos decididos a aplicar contra os que para sua desgraça se obstinassem no concubinato todas essas penas e censuras eclesiásticas; e mais, desde agora vos mandamos observar o que prescreve o Ritual Romano contra eles, tanto na administração dos sacramentos como na sepultura eclesiástica, de maneira que depois desta ordem nenhum amancebado público deve ser aceite como padrinho na administração dos sacramentos, nem enterrado eclesiasticamente se morrer impenitente. E além disso deixamos ao nosso critério proceder com penas maiores contra os que pertinazmente se obstinassem em não atender às nossas paternais admoestações.


[3349]
Outro deplorável delito temos que lamentar em alguns dos nossos fiéis e é a cooperação directa ou indirecta no desumano comércio de escravos e no horrível tráfico de negros. Alguns chegaram ao ponto de considerar os negros como uma espécie de seres diferentes dos seres humanos, intermédios entre os puros animais e o homem; e pretendem que os negros, dada a sua condição, devem ser escravos e servir como artigo de especulação comercial. Assim, descobrimos, com grande dor da nossa parte, que há alguns cristãos que com dinheiro ou com armas prestam apoio a quem se dedica a arrancar violentamente das suas famílias e a levar da sua pátria essas desditosas vítimas da forma mais cruel, elas que são nossos caríssimos filhos e nossa preciosa herança; e não faltam outros que os compram para os venderem logo de novo, nem faltam os que os maltratam com golpes cruéis até fazê-los sangrar, nem os que ilegitimamente os casam para depois venderem a prole ou para vender separadamente a mulher, o marido e os filhos.


[3350]
Contudo, não há quase ninguém entre os cristãos do nosso vicariato que pense em fazer instruir os seus criados negros na verdadeira religião, como lhes impõe Deus no quarto dos seus mandamentos, pelo que merecem a repreensão do Apóstolo: «Qui suorum et maxime domesticorum curam non habet, fidem negavit, et est infideli deterior» (1 Tm 5). O nosso ânimo, profundamente indignado contra os autores destes delitos, dirige-se a vós, dilectíssimos colaboradores nesta árdua e laboriosa vinha de Cristo, para que façais saber a todos os nossos fiéis que nós, em nome da religião e da humanidade, detestamos e proibimos este desumano comércio. Jesus Cristo disse-nos expressamente (Mt 23, 8) que todos nós somos irmãos, sem distinção entre brancos e negros e que (Mt 7) não devemos fazer aos demais o que não queremos que nos façam a nós mesmos.


[3351]
E o Apóstolo escreve de Onésimo a Filémon (Ad Phil.): «non ut servum, sed pro servo charissimum fratrem, maxime mihi, quanto autem magis tibi, ut in carne et in Domino! Si ergo habes me socium, suscipe illum sicut me». Então, se no Cristianismo a escravidão é um delito, quanto mais o há-de ser o abominável comércio de escravos e o horrível tráfico de negros? Por isso os Sumos Pontífices Paulo III, Urbano VIII, Bento XIV, Pio VII e Gregório XVI, entre outros, condenaram estes abusos como ultrajantes para o Cristianismo. Assim pois, querendo nós prover tanto quanto possível ao bem espiritual do nosso querido vicariato, ordenamo-vos que lhes anuncieis que não é sem grave pecado que eles podem vender os negros, nem dá-los a quem não lhes pode procurar a eterna salvação, nem fornecer dinheiro ou munições aos que vão arrebatá-los das suas terras à força, nem muito menos roubá-los eles mesmos ou mandá-los roubar por sua conta, nem colaborar de nenhuma outra maneira nesse infame tráfico. E que estão obrigados a tratar humanamente e instruir ou fazer instruir na verdadeira religião os que têm ou vierem a ter, e encarregamo-vos a vós de velar com toda a solicitude e de me informar quanto a isso, a fim de que seja erradicado tão hediondo comércio, reservando-nos, em caso de necessidade, de tomar, com as autoridades locais, as correspondentes disposições da lei civil contra os que reincidissem e que foi referendada pela Sublime Porta e pelos tratados com as grandes potências europeias.


[3352]
Imobilizados com a má consciência de um ou outro destes delitos ou sob o peso de outros costumes desordenados, alguns dos nossos fiéis deixaram passar o tempo pascal sem se apresentarem aos ss.mos. sacramentos, como tínhamos estabelecido até por via extraordinária. Tal facto afligiu-nos sobremaneira, e mais, dado que vós os exortastes repetidamente com zelo incansável, tanto em público como de forma pessoal em privado. Pelo que tomamos a decisão de aplicar contra os renitentes as especiais disposições do Ritual Romano (De Comm. Pasq.), além de uma das penas eclesiásticas pelo Concílio Lateranense IV, celebrado em 1215 sob o Pontífice Inocêncio III. Por isso, ordenamo-vos que nos denuncieis cada ano todos aqueles que, depois de serem reiteradamente advertidos, se negarem por culpável negligência a cumprir o preceito pascal; que não permitais que desempenhem a função de padrinhos nos sacramentos e que lhes negueis a sepultura eclesiástica, quando por extrema desgraça morressem obstinados na impenitência.


[3353]
Finalmente, recomendamo-vos com todo o fervor da nossa alma que inculqueis também em nossos dilectíssimos fiéis a obrigação de santificar as festas e de guardar nas sextas-feiras a abstinência prescrita e que, quanto possível, induzais todos a frequentar os ss.mos. sacramentos.


[3354]
Sorri-nos na alma a mais doce esperança de que, por obra do vosso louvável zelo, os nossos fiéis se convencerão de que a nós só nos guiam o seu bem espiritual e o interesse da sua eterna salvação. Por isso, temos a mais viva confiança em que quererão escutar a nossa voz e seguir os nossos paternais conselhos, com os que sentimos no dever de os chamar ao recto caminho dos mandamentos divinos e eclesiásticos. Para tal efeito, dirigimos ao céu as nossas orações diárias e estamos certos de que vós fareis outro tanto pelas almas dos fiéis que estão confiados ao vosso especial cuidado.


[3355]
Com todo o fervor do nosso espírito recomendamo-los de novo ao vosso zelo apostólico, na convicção de que sabereis chegar a cada um deles, a fim de os preservar a todos para a graça redentora de Jesus Nosso Senhor, em cujo nome, com todo o coração, invocamos sobre vós e cada um dos fiéis do nosso vicariato apostólico todas as bênçãos celestiais em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim seja.

Dada na nossa actual residência do Cordofão.



El-Obeid, 10 de Agosto de 1873



P.e Daniel Comboni, pró-vigário ap. da África Central

P.e José Franceschini, pró-secretário






518
Uma personalidade austriaca
0
El-Obeid
18. 8.1873

N.o 518 (488) - A UMA PERSONALIDADE AUSTRÍACA

«Annali B. Pastore» 6 (1874), pp.21-27

El Obeid, 18 de Agosto de 1873

Ex.mo senhor,
 

[3356]
A exímia bondade e condescendência que sempre mostrou para comigo e o sentimento mais vivo e profundo de devoção e gratidão que guardarei indelével para com V. S. até à morte, não me permitem demorar por mais tempo uma brevíssima informação sobre a evolução, desenvolvimento e progressos da obra da regeneração da Nigrícia, que o inteligente e sábio juízo da sua mente e a sensível piedade do magnífico coração de V. S. tiveram a alta honra de me solicitar.


[3357]
Tendo formado e educado nos institutos do Cairo mais de cinquenta indígenas capazes de ajudar poderosamente no apostolado da Nigrícia central, enviei quatro exploradores ao centro da África, a fim de encontrar um lugar favorável para iniciar com sucesso uma missão no interior. Os quatro exploradores, dirigidos pelo rev.mo P.e Estanislau Carcereri, meu actual vigário-geral, após oitenta e dois dias de viagem, chegaram a esta capital, que conta com mais de cem mil habitantes. Depois de estudar bem a conveniência de uma missão em El-Obeid, onde nunca o Evangelho tinha chegado, e encontrando aqui um clima muito saudável e muito menos quente que o do Cairo, corri a Roma com ânimo de solicitar da Santa Sé para o meu instituto a missão de Cordofão, que é uma província tão grande como toda a Hungria. A Sagrada Congregação da Propaganda, após maduro exame e profundos estudos, não só me confiou o Cordofão mas toda a África Central, que é a mais vasta e trabalhosa missão do universo, por ter uma extensão maior que a de toda a Europa e uma população de mais de cem milhões de infiéis.


[3358]
Além disso, o Santo Padre Pio IX nomeou-me pró-vigário apostólico desta imensa região, dando-me todas as faculdades episcopais necessárias para exercer a minha função.

Estes são os limites do vicariato: a norte, o Egipto, Trípoli e a Argélia; a oeste, o Níger; a sul, a Guiné Meridional e o 12o grau de lat. sul; e a Este, o mar Vermelho, a Abissínia e as tribos dos Gallas. Com a ajuda do Sagrado Coração de Jesus, a quem no próximo dia 14 de Setembro consagrarei todo o vicariato, espero conseguir implantar a fé estavelmente na Nigrícia interior e consolidar aí a missão católica.


[3359]
No dia 26 do passado Janeiro, em duas embarcações, dahhabias, saí do Cairo com trinta e três pessoas, entre missionários, irmãs, mestras negras e irmãos artesãos coadjutores e, depois de 99 (noventa e nove) dias de lenta e penosíssima viagem, montados em 65 camelos com que tínhamos atravessado o deserto de Atmur, chegámos a Cartum, onde, após um mês de estada, pus em andamento dois importantes institutos e uma paróquia. Depois, a bordo do vapor que o paxá de Cartum pôs gratuitamente à minha disposição, entrei no Nilo Branco; e depois de ter viajado pelas suas águas 127 milhas desci em Tura-el-Khadra. Daí parti com 17 camelos e, depois de atravessar os imensos bosques dos árabes Hassanieh em nove dias de rápida marcha, cheguei a esta capital, que é a verdadeira porta da Nigrícia interior. Aqui já se está a formar uma comunidade cristã, abriu-se um instituto feminino e a missão está em plena actividade. Em apenas quatro meses que estou no Sudão, começo a ter a certeza de em breve ver o vicariato bem encaminhado, de modo que se possam fazer nele grandiosas conquistas.


[3360]
Todos os meus esforços actuais se orientam de modo particular para consolidar as importantíssimas missões de Cartum e do Cordofão.

Cartum é a base de operações para levar a fé às inumeráveis tribos da parte oriental do vicariato até mais para além das nascentes do Nilo. El-Obeid é o ponto a partir do qual se implanta pouco a pouco a cruz nas tribos, regiões e impérios que constituem a parte central do vicariato. Em quatro dias, a partir de El-Obeid entra-se no território do reino de Darfur e, em quinze dias, chega-se à residência do sultão; em trinta dias chega-se à capital do império de Bornu, e, em cinco dias, chega-se às tribos que formam o grande povo dos Nuba.


[3361]
Agora, tanto em Cartum como em El-Obeid, há paróquia, escolas públicas masculinas e femininas e temos aqui um grande orfanato em várias cabanas, que instalarei numa grande casa quando Deus me der os meios para a construir com areia, como se usa no Cordofão. Todas as semanas baptizo e confirmo um bom número de adultos, porque, sobretudo nas mestras negras formadas no Cairo, tenho umas habilíssimas colaboradoras para catequizar e instruir os indígenas.


[3362]
Conto com o favor de todas as autoridades egípcias, que prestam verdadeiro apoio ao meu apostolado. Os paxás de Cartum e do Cordofão mostram-me a sua amizade e estão-me agradecidos sobretudo por ter trazido as irmãs para a instrução da juventude feminina. É a primeira vez que a África Central vê estas heroínas da civilização cristã.


[3363]
Deixando para outra carta notícias ulteriores deste imenso vicariato para V. S., limito-me agora a informá-lo brevissimamente sobre o horrível tráfego de escravos, que neste vicariato está no auge. V. S. terá lido não há muito despachos telegráficos, nos quais se comunicava ao mundo inteiro que se tinha acabado completamente com o tráfego de escravos e que estavam abertos os caminhos desde Gondokoro até ao equador e desde o equador até Zanzibar. Tudo é falso. E a missão da África Central vê-se obrigada a ser testemunho dos horríveis estragos que os infames traficantes de carne humana fazem entre os desditosos negros das tribos vizinhas destas duas fundamentais estações, onde tenho a minha residência.


[3364]
Várias vezes por mês saem de Cartum e de El-Obeid grupos de jilabas armados de fuzis, que vão às tribos vizinhas e mesmo a outras mais distantes e arrebatam violentamente do seio de pacíficas famílias de negros os rapazes e raparigas e as jovens mães, matando quase sempre os pais e os que se defendem.


[3365]
Depois de juntarem um despojo de mil, dois mil, cinco mil pessoas, regressam às suas cidades, de onde logo saem para vender os escravos na Núbia, nos portos do mar Vermelho e no Egipto. Aquelas infelizes criaturas fazem tão longas viagens a pé, empurradas pelas lanças dos bandidos! E como numa montanha do território de Darfur, onde há uma população de mil e quatrocentos negros, há três meses foi repelido um assalto de jilabas, que iam raptar os meninos e meninas, a semana passada subiram de El-Obeid dois mil homens armados de fuzis para vingarem a derrota sofrida nessa montanha e matarem todos os chefes dessas gentes.


[3366]
Na minha viagem de nove dias desde Tura-el-Khadra até El-Obeid vi mais de mil destes infelizes divididos em diversas caravanas. Iam rapazes e raparigas todos nus, misturados promiscuamente em grupos de oito ou dez, atados pelo pescoço a uma viga para não fugirem; uns eram arrastados com cordas, com os braços atados às costas, outros tinham cadeias nos pés, outros arrastavam a scheva, uma viga terminada em triângulo, onde vai atado o pescoço do escravo. As jovens mães de catorze ou quinze anos iam amarradas duas a duas e só os meninos e meninas de 4 a 7 anos não iam atados. Todos estavam nus, iam a pé, empurrados cruelmente pelas lanças. Encontrei bastantes cadáveres de escravos, que, incapazes de suportar a fadiga, tinham caído mortos pelo caminho.


[3367]
A abolição do tráfego de escravos na África Central ficou letra morta. Creio que é impossível levá-la a cabo, porque os escravos constituem uma das principais fontes de receita do Governo e dos negociantes do Sudão... O que realmente abolirá o tráfego de escravos será a pregação do Evangelho e a implantação da fé católica nestes desditosos países. Eu agora estou a estudar o modo de pôr a missão católica em condições de obrigar os paxás e o Governo a diminuir e parar praticamente com os estragos que se fazem entre os pobres negros e já há muitos que têm medo da missão.


[3368]
Quando vejo escravos amarrados ou estes se apresentam na missão, levo-os ou mando-os levar ao Divã e faço com que lhes dêem a carta da liberdade.

Comprei fora de El-Obeid um grande terreno para o cultivar e pôr nele os escravos libertados, que viverão do produto que dele obtiverem. Já lá tenho muitos.


[3369]
Não escapa a V. S. que, mesmo só por este aspecto, a minha missão é importantíssima. Vendo tantos horrores e misérias, os meus missionários estão decididos a sacrificar a sua vida pela salvação destes desventurados povos. Não sentimos nem o calor equatorial, nem os trabalhos da vida apostólica desta missão, nem as fadigas das viagens, nem os alojamentos incómodos, nem as privações de tudo (a roupa branca, camisas, todo o tecido, gastámos tudo para fazer uma simples camisa para cada uma das escravas libertadas). Todos estamos dispostos a suportar seja o que for, para melhorar a situação destes povos e chamá-los à fé. O nosso grito de guerra será até ao último alento: «Nigrícia ou morte.» O Sagrado Coração de Jesus ajudar-nos-á.


[3370]
Como, por outro lado, grande parte dos cristãos são cúmplices no infame tráfico de negros na África Central, fulminei com a excomunhão os que cometem este delito e adverti todos os hereges de todas as paragens que, com base nas leis vigentes após o Tratado de Paris de 1856, em que foi abolida (no papel) a escravatura, eu conseguirei que as autoridades turcas os prendam a todos; eu obrigá-las-ei a fazer isso sob pena de denunciar os seus governos, submetendo-os ao opróbrio de todo o mundo. Há cerca de um mês que mandei essa circular e agora há um tal medo por parte dos turcos, dos cristãos e dos católicos, que confio em que a actuação do chefe do Catolicismo e da missão do Sudão será fecunda em bons resultados.


[3371]
Peço-lhe perdão, senhor, por me ter alargado em excesso. Desejo transmitir-lhe, pouco a pouco, uma ligeira ideia da minha missão, que pela importância, dimensão e dificuldade é a primeira do mundo, a mais santa, a mais benéfica e a mais humanitária.

Digne-se V. S. aceitar a expressão da minha mais profunda veneração e gratidão, com as quais tenho a honra de me subscrever nos Sagdos. Corações de J. e M.



De V. S. hum., dev. e obed. servidor

P.e Daniel Comboni, pró-vig. ap. da África Central






519
Cón. Cristóvão Milone
0
El-Obeid
19. 8.1873

N.o 519 (489) - AO CÓNEGO CRISTÓVÃO MILONE

«La Libertà Cattolica» 244(1873), pp 981-982

El-Obeid, capital do Cordofão

19 de Agosto de 1873



Caríssimo e venerado amigo, director de «La Libertà Cattolica»,


 

[3372]
Ocupadíssimo como estive com os preparativos feitos no Cairo para a maior expedição católica que até agora se viu na África Central e com a direcção da mesma até Cartum, viagem em que empreguei 99 (noventa e nove) dias desde o Cairo, bem como com o muito que fazer que encontrei no vicariato, não me foi possível cumprir até agora o que combinámos sobre a manutenção da nossa correspondência epistolar. Mas depois da solene consagração do vicariato ao Sagrado Coração de Jesus, que terá lugar no próximo dia 14 de Setembro, espero, uma vez regressado à minha residência principal de Cartum, estabelecer uma agradável e interessante correspondência. Este vicariato, o maior e mais laborioso do universo, tem mais de cem milhões de pobres infelizes, cujas misérias e desventuras, se se conhecessem, comoveriam os corações mais duros. Entre as muitas misérias, o tráfico de escravos e os horrores da mais cruel escravidão, chagas que estão no auge e em plena actividade e que não se podem explicar com palavras.


[3373]
Tenho a grande dita de contar no meu vicariato com dois bons e valiosos missionários da ilustre diocese de Trani. Um é P.e Salvador Mauro, de grande espírito e abnegação, que fala, prega e catequiza em árabe, e que é muito devoto de S. Judas Tadeu e de N. S. do Sagrado Coração de Jesus. O outro é o cónego P.e Pascoal Fiore, actualmente em Cartum, dotado de um valor heróico e de uma preocupação constante pelos negros e capaz de dirigir bem uma missão. Estes dois distintos missionários estão convencidos de que a nossa missão é a mais santa, a mais humanitária, a mais importante de todas, porque aqui primeiro temos que fazer homens os nossos negros e depois fazê-los cristãos. Porém, tudo se conseguirá com o Sagrado Coração de Jesus. Envia-lhe um cordial abraço



O seu af.mo amigo P.e Daniel Comboni

Pró-vigário ap. da África Central






520
Card. Alexandre Barnabó
0
El-Obeid
20. 8.1873

N.o 520 (490) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SOCG, v. 1003, ff. 738-739

N.o 8

El-Obeid, Cordofão, 20 de Agosto de 1873



Em.mo e Rev.mo Príncipe,


 

[3374]
Tomo a liberdade de lhe incluir a circular escrita por motivo da solene consagração do vicariato da África Central ao Sacratíssimo Coração de Jesus, que terá lugar no próximo dia 14 de Setembro. Dirijo-me humildemente a V. Ex.a rev.ma da maneira mais calorosa, também em nome dos meus missionários tão cheios de zelo, para que eleve ao trono augusto do Sumo Pontífice, o nosso adorado Santo Padre Pio IX, uma súplica, a fim de que se digne conceder benevolamente «que a sexta-feira depois da oitava do Corpus Domini, consagrado à festa do Santíssimo Coração de Jesus, seja formalmente declarada pela Santa Sé Apostólica dia festivo, obrigatório para todo o vicariato apostólico da África Central e que seja por todo o clero secular e regular deste vicariato celebrado com rito duplo de primeira classe, com oitava, segundo as regras gerais dos patronos».


[3375]
Todos nós estamos profundamente convencidos de que a graça do Sacratíssimo Coração de Jesus nos fará triunfar sobre todos os obstáculos que o mundo e o Inferno suscitaram até agora contra a regeneração destes povos tão desditosos e de que dentro de não muito tempo a Santa Igreja os poderá contar entre os seus dilectos filhos, reunidos à sombra da arca mística da eterna aliança, do pacífico redil de Cristo, o único lugar onde se encontra a salvação.


[3376]
Não há muito, causou sensação na Europa científica um telegrama enviado de Alexandria, datado de 30 de Junho, elaborado nos seguintes termos: «Samuel Baker anuncia que as terras até ao equador foram incorporadas no Egipto. Todas as rebeliões, intrigas e tráfico de escravos foram eliminados por completo. O Governo está perfeitamente organizado e os caminhos ficam abertos até Zanzibar.» Pois bem, este despacho é completamente falso em todas e cada uma das suas partes.


[3377]
O audaz viajante inglês, que no passado dia 30 de Junho estava em Cartum, onde visitou a missão e a casa das irmãs, nesta última expedição não chegou muito mais além da nossa estação católica de Gondokoro (ele anunciou que a nossa casa e igreja, que custaram 200 000 francos, estão completamente destruídas). Ele gastou nessa expedição mais de vinte milhões e matou muitos milhares de negros – como soubemos de fonte bem segura – para obter um solene fiasco. Contudo, é digno de elogio o seu valor. Sua alteza o paxá de Cartum (que sempre me mostra a sua amizade e que agradeceu ao paxá do Cordofão por me ter dispensado um bom acolhimento), a quem o seu senhor, o quedive do Egipto, encarregou de obter exactas informações sobre a realidade do êxito da expedição de Baker, na qual gastou oitocentas mil libras esterlinas, escreveu-me há uma semana pedindo-me que lhe expusesse sinceramente o meu juízo acerca desta expedição e dissesse se os autênticos resultados dela estão à altura dos gastos efectuados. Sua excelência regular-se-á pela minha resposta para elaborar o relatório a enviar ao quedive. Compreende, pois, V. Em.a quão grande deve ser a minha prudência, moderação e exactidão ao responder à gentil pergunta do paxá de Cartum.


[3378]
Quanto à abolição da escravatura – que agora só é verdadeira no papel dos tratados e dos jornais, mas falsa de facto –, pela experiência vivida em poucos meses, estou em condições de assegurar a V. Em.a que a nossa missão, aproveitando-se da abolição da escravatura recentemente promovida pela Inglaterra e do grande prestígio que agora tem a missão, tanto no Divã como entre os traficantes de escravos, sem dúvida conseguirá com o seu poder, autoridade e energia assustar os Turcos e obter, mais que as grandes potências da Europa, a abolição real, ao menos em grande parte. Como no roubo, maltrato, venda e compra dos pobres negros estão muito implicados os nossos católicos, nos primeiros do corrente mês escrevi uma circular contra o tráfico de escravos, recordando as severas censuras dos pontífices romanos. Foi publicada em árabe e lida do púlpito de Cartum e assustou a todos, católicos, hereges e turcos, porque V. Em.a deve saber que o comércio de negros é aqui uma das principais fontes de receitas dos negociantes e do Governo.


[3379]
São horríveis as tropelias que aqui se cometem contra estes pobres negros, das quais somos testemunhas. Porém, nos momentos que conseguimos roubar às nossas ocupações, estamos a elaborar para V. Em.a um relatório sobre as atrocidades da escravidão e do tráfico de escravos, que estão no seu apogeu. O Coração de Jesus ajudar-nos-á a cumprir bem esta parte da missão do vicariato. Comprei e paguei um terreno muito barato a uma hora de El-Obeid, para que nele trabalhem e com o que ele der vivam os escravos libertados. É tão grande como o espaço que há desde a Propaganda até à Basílica de S. Pedro no Vaticano. Produz na época das chuvas, de Maio a Novembro. Também comprei e paguei uma nova casa a poucos passos da missão, que destinei às irmãs que agora devem ter partido para cá do Cairo. Espero que dentro de dois anos a missão do Cordofão tenha muito pouca necessidade da Europa para subsistir. Nós estamos contentes de sofrer agora para amealhar para a missão: nunca bebemos vinho e o nosso regime de vida é austero, mas muito adequado para este clima e para nos conservar sãos no corpo e na alma. Tudo se conseguirá com a ajuda do Sagdo. Coração de Jesus.


[3380]
Como os dois camilianos que trabalham a meu lado são dois esforçados e valentes missionários da África Central, perfeitamente aclimatados e com muito zelo pela Nigrícia, e como este assunto dos camilianos é muito importante para este vicariato e também para a própria ordem dos Ministros dos Enfermos, por isso, querendo eu unicamente o cumprimento da pura vontade de Deus (sem a qual se constrói na areia), decidi mandar a Roma no próximo Outubro o meu incomparável vigário-geral actual, o P.e Estanislau Carcereri, dos camilianos. Ele tratará todo o assunto com o seu geral e com V. Em.a Rev.ma, do que resultará a manifestação da vontade de Deus. Por meio dele mandar-lhe-ei um relatório sobre a estado actual do vicariato e o seu considerável ressurgimento. Na festividade da Assunção administrei o baptismo a 11 adultos e agora temos ainda aqui 23 catecúmenos quase instruídos.

Digne-se dar a sua bênção a todos os missionários, enquanto lhe beijo a sagrada púrpura e me declaro com toda a veneração



De V. Em.a hum. e ind. filho

P.e Daniel Comboni, pró-vigário ap.