Escritos

Pesquisar
Pesquisa avançada – clique aqui para melhorar a pesquisa
N° Escrito
Destinatário
Sinal (*)
Remetente
Data
501
P.e Estanislao Carcereri
1
Cartum
22. 5.1873
N.o 501 (470) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI

APCV, 1458/314



Cartum, 22 Maio de 1873



Sua nomeação como vigário-geral da África Central.





502
P.e Estevão Vanni
1
Cartum
25. 5.1873
N.o 502 (471) - A P.e ESTÊVÃO VANNI

AVAE, c. 31



Cartum, 25 de Maio de 1873



Dimissórias.





503
Madre Emilie Julien
0
Cartum
4. 6.1873

N.o 503 (473) - À MADRE EMILIE JULIEN

ASSGM, Afrique Centrale Dossier

V. J. M. J.

Cartum, 4 de Junho de 1873

Minha muito venerada madre,

[3172]
Acabo de receber a sua estimada carta, que me deixou muito satisfeito; e quando entreguei as suas às nossas três irmãs, elas beijaram-nas e ficaram a chorar de alegria: tal é o poder de uma mãe. A madre não viveria em nenhuma parte do mundo tão intensamente como na África Central. Estas três filhas são incomparáveis.

Agradeço-lhe imenso pelas quatro irmãs que me mandou, as quais já estão no Cairo e também lhe exprimo o meu agradecimento pelas que me irá mandar em Setembro. Devo dizer-lhe que a missão de Cartum não pode estabelecer-se bem sem, pelo menos, seis irmãs.


[3173]
Consequentemente, por amor de Deus, faça com que a expedição de Setembro seja pelo menos de sete irmãs. Quanto às que já estão no Cairo, vou dar ordem para que deixem de imediato o Egipto e se dirijam a Schellal, na Núbia Inferior, a fim de que no mês de Agosto possam atravessar o deserto, por esta época ser muito fresca. As que chegarem ao Cairo em Setembro, partirão para Cartum no mês de Outubro. A Ir. Josefina diz-me que algumas das quatro chegadas ao Cairo podiam ser nomeadas superioras, dado que se a morte sobreviesse a uma superiora, a casa poderia estar sem superiora durante muito tempo, por causa da imensa distância, porque aqui, devido ao deserto, estamos mais distantes da Europa que a Austrália do Japão. Uma carta pode chegar desta capital do Sudão a Marselha em quarenta dias, mas nós gastámos noventa e nove dias para ir do Cairo a Cartum.


[3174]
Rogo-lhe que me autorize a destinar as irmãs quer a Cartum quer ao Cordofão, conforme eu o julgar oportuno para o bem destas duas casas e isto de acordo com as superioras das mesmas, porque aqui só nós podemos julgar sobre as necessidades das missões. Entendeu-me? Assim que, nas cartas obedienciais não ponha que tal irmã vem destinada a Cartum ou ao Cordofão, mas ponha ao Sudão. Deste modo, o pró-vigário apostólico e a superiora provincial do Sudão decidirão de comum acordo os diferentes destinos, porque nós devemos olhar pela saúde tão preciosa das irmãs. Se uma está cansada pela febre ou pelo trabalho em Cartum, mudamo-la para o Cordofão e vice-versa, etc., etc. Por outro lado, é difícil encontrar irmãs tão boas, tão generosas e tão heróicas como as três daqui.


[3175]
Quanto às negras que ofereceu P.e Biagio, nãos as admito. A Ir. Josefina e eu, assim como todos os nossos missionários e as nossas irmãs, determinámos não admitir mais negras que tenham sido educadas na Europa: são a ruína das missões e a morte das irmãs. A viagem do Cairo até Cartum custou-me 22 000 francos e éramos vinte e oito. Cada negra que faça esta viagem provoca, pois, um gasto de 800 francos, soma com a qual poderíamos comprar seis delas. Depois, a alimentação, roupa, etc. de uma negra no Cairo custa-nos muito e não tiramos nenhum proveito. Ainda por cima, estas negras, vindas da Europa, não pensam senão em casar-se e tiram-nos o tempo e os recursos que devíamos dedicar à missão.


[3176]
Além disso, nunca admitirei uma negra oferecida por P.e Biagio, porque esse santo varão sempre proibiu às negras válidas, residentes nos mosteiros da Europa, que viessem connosco para o Cairo: essas têm vocação de se tornarem religiosas. Ele manda-as todas para as clarissas do Cairo e até teve a coragem de me escrever a pedir-me que mande para as Clarissas as nossas negras que se querem tornar religiosas. Em contra-partida, a nós manda-nos sempre aquelas que, rejeitadas pelas clarissas, não podem ficar noutros conventos da Europa. Portanto, que Deus abençoe P.e Biagio; porém, nunca mais admitirei nenhuma das suas negras, as quais foram sempre um martírio para as nossas irmãs e uma peste para as nossas casas. Como também nunca admitirei negros do P.e Ludovico, de Nápoles: são a escória e o barro da Nigrícia, porque esse santo homem carece de bons educadores.


[3177]
Porém, passemos a Cartum.

É impossível descrever o entusiasmo com que foram recebidas aqui as irmãs. O cônsul veio de grande gala ao barco dar-nos as boas-vindas e, em nome do Imperador da Áustria, do paxá do Sudão e da colónia europeia, agradeceu-me por ter sido o primeiro a trazer as Irmãs para o Sudão. Igualmente o paxá veio à minha formosa residência agradecer-me por ter trazido as irmãs e o mesmo me repetiu num grande jantar que deu em minha honra. Coisa digna de menção: o grande mufti, o chefe da religião muçulmana do Sudão, num brinde felicitou-me pela vinda das irmãs. Para a colónia europeia elas são o braço direito do meu apostolado. Só duas famílias católicas vivem aqui cristãmente: todas as demais vivem em concubinato. Agora, um mês após a nossa chegada a Cartum, as irmãs instruem as concubinas e, dentro de pouco tempo, teremos muitos matrimónios.


[3178]
A Ir. Josefina é uma apóstola e uma pregadora de primeira. Já se introduziu em muitas famílias e fala aos maridos, às mulheres, às concubinas, a todos; ela insinua a moral e a religião católicas e no nosso confessionário trabalha-se mais; numa palavra, temos uma grande missão a realizar em Cartum: as irmãs farão milagres, mas preciso que venham mais. A madre lerá nos Anais muitas coisas que não tenho tempo de dizer aqui, porque dentro de dois dias parto para o Cordofão. Vim para Cartum com um decreto do sultão de Constantinopla, que o imperador da Áustria me obteve. O grande paxá do Sudão converteu-se em meu amigo e protector: deu-me o seu barco a vapor para chegar, pelo Nilo Branco, mais rapidamente ao Cordofão. Com o vapor, até Abu-Gherab gastarei apenas cinco dias. Estou numa feliz situação aqui no Sudão. Em nenhuma parte do mundo o sacerdote e as irmãs são tão respeitados como na África Central.


[3179]
Escolhi o P.e Estanislau Carcereri como meu grande vigário: fez muito na África Central. Nomeei confessor das irmãs o cónego Pascoal Fiore, um santo que as guiará pelo caminho da perfeição. A Ir. Madalena e a boa Domitila foram as únicas que na terrível travessia do deserto, como em toda a viagem de noventa e nove dias do Cairo a Cartum, não sofreram a mínima indisposição, a mais pequena dor de cabeça; mas dir-lhe-ei o que dizem todos: «A mão de Deus está aqui.» Eu ando confuso sobre isso, porém, vejo que Deus se serve sempre dos fracos para as empresas mais difíceis. A de Canossa fez um grande milagre. Viajámos sempre pelo deserto dezoito horas por dia sobre camelos, com 50 graus de calor, na estação mais temível. A Ir. Josefina e as nossas Irmãs (eu levava sempre no bolso os Santos Óleos para a Unção dos Enfermos) atravessaram o deserto melhor que eu e que os missionários. Finalmente, depois de treze dias chegámos a Berber, no outro lado do deserto, na época mais crítica. Cumpriremos as nossas obrigações para com a de Canossa. Ela trouxe-nos até Cartum em perfeita saúde, por milagre.


[3180]
Uma palavra sobre as nossas casas.

A minha residência é um palácio bem mais longo que o da Propaganda em Roma, com um jardim de que vinte homens têm de cuidar todos os dias e que chega até às margens do Nilo Azul. Tinha pensado dividi-lo em dois, mediante um muro, deixando uma parte às irmãs. Porém, o P.e Carcereri tomou para elas um palácio perto do nosso, com um belo jardim. É uma das construções mais sólidas de Cartum, junto com a minha residência, que é não só de Cartum a mais imponente construção mas de todo o Sudão, e que custou ao meu predecessor mons. Knoblecher mais de um milhão de francos. Porém, a Ir. Josefina não gosta muito da sua residência, pelo que estamos prestes a meter-nos em obras para fazer a divisão do meu palácio. Ao mesmo tempo decidi construir uma igreja três vezes maior que a pequena que temos, que não é suficiente para os nossos fiéis. Quanto à comida, aqui é barata: com pouco, poderei tratar as irmãs como condessas. Porém, os alimentos provêm só da missão, porque tudo é produzido em casa, sai da nossa terra.


[3181]
Lamento muito ter rejeitado em Roma a Ir. Genoveva, antiga superiora do Cairo, quando me foi oferecida. Se quiser vir, mande-a já para o Cairo para que parta para Cartum com as quatro irmãs preparadas. Mandei ao P.e Carcereri que escrevesse neste sentido à Ir. Genoveva, cuja habilidade conheço; aqui em Cartum faria milagres. Nesta cidade de 50 000 habitantes somos mais professores que outra coisa: ela faria muito bem.


[3182]
Deixe que lhe diga uma coisa: dentro de cinco anos, o vicariato da África Central será dos mais florescentes, mas só se me mandar ao menos cinquenta irmãs nesses cinco anos e todas as irmãs árabes que puder. É preciso que crie uma província e me dê como madre provincial uma eficiente e santa mulher. Sóror Josefina tem todas as qualidades, excepto a saúde. Trabalha dia e noite, até com febre, e não há força na Terra que consiga dissuadi-la. Isto não pode durar: é um milagre ela continuar viva. Assim, embora a veja sempre activa, não deixo de temer o pior, porque Deus quer que cuidemos de nós, não que nos matemos. O milagre da de Canossa foi extraordinário, mas, se a pessoa miraculosamente curada quer matar-se, é culpa sua se morre.


[3183]
Se houver uma superiora provincial que, por obediência, meta em ordem a superiora Ir. Josefina, esta viverá mais tempo para salvar almas, porque a Ir. Josefina é incomparável como missionária. Com certeza a madre não tem outra igual em toda a sua congregação e para mim seria uma grande desgraça perdê-la. Ela continua a beber leite de burra; mas, como me inteirei de que o leite de camela é melhor, farei comprar uma para a Ir. Josefina: colocá-la-á no seu jardim. Obrigue-a a cuidar da sua saúde. E não deixe de me enviar as irmãs em Setembro; pense que o atraso em me mandar as cartas obedienciais no passado Janeiro me custou mais de 12 000 francos e todos os incómodos de uma viagem de noventa e nove dias. Avisei-a, mas não acreditou em mim. As irmãs que partirem do Cairo no mês de Agosto, chegarão a Cartum em cinquenta dias e com muita comodidade. A madre terá recebido 5000 francos de Lião e agora vou escrever a Colónia para...

(folha incompleta).


[3184]
Mons. Ciurcia, pressionado pelos franciscanos, proibiu-nos de baptizar no Cairo, pois fui denunciado em Roma por causa da negra de P.e Biagio, que fugiu às nossas irmãs. Que esta negra (a que me mandou com a Ir. Germana) tenha fugido do nosso instituto é um crime, mas que se tenha escapado vinte dias depois das clarissas, isso tem indulgência plenária. Enfim, os franciscanos não são nossos amigos no Cairo, salvo o P.e Pedro e algum outro santo religioso. Eu mantenho abertas as casas do Cairo para conservar o direito, para fazer mais tarde o que tenho no pensamento; mas, por agora, preciso de concentrar o grosso das forças no vicariato, onde temos a missão directa de converter estes povos. Se não podemos baptizar no Cairo, para que destinar para lá 25 000 francos anuais? Por isso, de momento, vou reduzir o Cairo a uma espécie de procuradoria para a África Central. As necessidades mais urgentes estão no vicariato...

(folha incompleta)


[3185]
A casa de Cartum vai custar-me mais de 100 000 francos. A fachada é mais comprida que o palácio da Propaganda da Piazza di Spagna até à livraria poliglota da Piazza di S. Andrea delle Fratte e o jardim é maior que o seu de Cappelletta. Tive que fazer o mesmo projecto para as irmãs igual ao do palácio da minha residência, que custou mais de 600 000 francos. A porta das Irmãs com os Sagrados Corações de Jesus, Maria e José sai-me por mais de mil francos. Porém, este instituto de irmãs é uma construção eterna e a casa estará intacta ao fim de mil anos.


[3186]
Espero a superiora provincial de Cartum. Por cada irmã árabe que der bom resultado, como Sóror Ana, pagar-lhe-ei – ficaremos nisso – quinhentos francos.

Saudações da minha parte à Ir. Catarina e a todas as irmãs de Roma, bem como à madre assistente. Reze a Jesus por



Seu devot.mo

P.e Daniel Comboni



Rogo à madre geral que ponha um selo de vinte cêntimos na carta à Unità Cattolica e que a envie.



Original francês

Tradução do italiano






504
Card. Alexandre Barnabó
0
Cartum
5. 6.1873
N.o 504 (474) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SOCG, v. 1003, ff. 726-731

N.o 5

Cartum, 5 de Junho de 1873



Em.o e Rev.mo Príncipe,



[3187]
A notícia de que V. Em.a, por especial favor divino, recuperou totalmente a vista, encheu o meu coração de indizível conforto e alegrou os meus bons companheiros e as irmãs; de modo que ontem, reunidos diante do altar, cantámos o hino de acção de graças. Era previsível que o Senhor se dignasse conceder-lhe tal mercê, como prémio pela maravilhosa calma e edificante resignação com que a insigne piedade de V. Em.a suportou tão grave adversidade.


[3188]
Não é minha intenção expor-lhe o miserável estado em que encontrei a missão de Cartum, sobretudo no que respeita às almas. A falta do pão da Palavra divina, que desde 1861 não se tinha pregado mais, e relaxamento do espírito, em que insensivelmente costuma cair o obreiro evangélico mais bem preparado e disposto quando em tão perigosos lugares, longe dos olhares de um bispo, permanece muito tempo só e isolado ou quando não é vigiado de maneira periódica pelos superiores ou quando não vem despertá-lo e reanimá-lo alguma salutar visita apostólica, foram as principais causas do estado tão deplorável em que encontrei o pequeno rebanho de Cartum, cujo maior vício não é o da mancebia.


[3189]
Se não soubesse que V. Em.a experimentou noutras missões as lamentáveis consequências do vae solis, sugerir-lhe-ia com a mais fervorosa solicitude que não permitisse nunca que uma missão ficasse só com um ou dois missionários. Não posso compreender como é que a Santa Sé não mandou nunca um visitador apostólico à África Central, tendo tomado tão sábia e saudável medida com outras missões menos árduas e perigosas que esta. Certamente também nisto teve Deus os seus adoráveis desígnios.


[3190]
A minha primeira preocupação foi instaurar cada domingo e festa a pregação evangélica na missa paroquial e, dentro de pouco, introduzirei também o ensino da doutrina cristã na tarde dos domingos. Já tenho a satisfação de que, desde a nossa chegada, a nossa capela é tão frequentada que não chega para acolher todos os fiéis, pelo que decidi construir uma nova igreja com maior capacidade. Para este fim, na homilia em árabe que pronunciei no dia de Pentecostes, expressei o desejo de levantar um novo templo, convidando os fiéis a contribuir com as suas esmolas. Em apenas três dias recebi subscrições no valor de 1256 táleres, que equivalem a 6280 francos em ouro, os quais, juntos com outras receitas que espero da Europa e com outras que receberei no vicariato do Governo turco e dos fiéis, me porão em condições de colocar a primeira pedra do sagrado edifício no próximo mês de Outubro, ao regressar do Cordofão.


[3191]
Além disso, começámos a abordar, em nome de Deus e com hábil solicitude, os nossos católicos para os reconduzirmos para os caminhos da salvação e parece que Deus abençoa a nossa humilde obra, na qual se revela de capital importância a colaboração das nossas santas e capazes irmãs, de tal modo que, dentro de pouco tempo, a graça de Deus e a piedade cristã reinarão no pequeno rebanho de Cartum. Em suma, o sagrado ministério está aqui em plena actividade e exerce-se entre as ovelhas tresmalhadas não menos que em favor dos infiéis, porque bastantes catecúmenos recebem instrução todos os dias em ambos os institutos.


[3192]
Quanto às irmãs, na próxima segunda-feira, 9 do corrente, elas começarão as escolas femininas. E graças ao dom que Deus me fez de religiosas de excelente espírito e valor e de boas mestras negras, espero ver, dentro de pouco, uma escola católica florescente nesta capital, que nunca tinha visto uma freira nem os portentos de caridade das mulheres evangélicas. Graças também ao abundante pessoal docente de que actualmente dispõe esta missão, trabalhou-se muito no passado mês na preparação dos que iam receber a confirmação. Desde 1860 que não se administrava este Sacramento na África Central.


[3193]
Na recente festa do Pentecostes, depois da homilia e da missa solene, administrei a sagrada confirmação a 35 pessoas, entre velhos e jovens; e estão a ser preparados mais outros tantos. A escola masculina não poderá abrir-se antes de Novembro.


[3194]
A cidade de Cartum tem uns 50 000 habitantes, com 200 católicos, 1000 hereges de diversas seitas, 25 000 escravos negros; os restantes são muçulmanos nubianos, egípcios, abexins, gallas, turcos, etc., além de 8000 soldados. Na colónia cristã existem mais de 200 gregos e 70 sírios.


[3195]
A casa da missão é o edifício melhor e mais sólido não só de Cartum como de todo o Sudão e de toda a África Central. Custou a Knoblecher, juntamente com o jardim anexo, mais de 200 000 (duzentos mil) escudos romanos. É um palácio de um só piso, que tem um comprimento de uma vez e meia a do Palácio da Propaganda e que representa só a oitava parte do projecto. O jardim anexo, tão extenso que chega até ao Nilo Azul, é agora um bosque, porém, em poucos anos espero convertê-lo numa quinta tão produtiva que manterá toda a missão de Cartum.


[3196]
A minha posição, perante os católicos dos diversos ritos, é muito satisfatória: todos mostram uma ilimitada confiança para comigo e para com os missionários e as irmãs. Esperamos valer-nos dela para benefício das suas almas.


[3197]
Em relação aos muçulmanos, sobretudo ao Governo local e às autoridades consulares, a minha posição não pode ser melhor. A missão católica é a primeira potência no Sudão, e todos, grandes e pequenos, nos respeitam e nos temem.


[3198]
O decreto de Constantinopla e o nome do imperador da Áustria, de quem soube valer-me no momento oportuno, produziram os mais esplêndidos resultados. Ainda não sei a que se deve tudo isso, mas não deixa de estar relacionado com o que hoje sucede. Sua Excelência Ismail Paxá, governador-geral, que domina até às nascentes do Nilo, veio visitar-me para me oferecer a sua amizade e todo o seu apoio, para que possa realizar o meu desejo a respeito da missão católica.


[3199]
É um homem informado de tudo, um turco instruído, um finório, um bisbilhoteiro e um intriguista de primeira, mas para comigo e com a missão sumamente benévolo. Desta benevolência deu-me esplêndidas provas em pouco tempo, oferecendo-me o seu barco a vapor para as visitas pastorais, dando-me madeira para a missão e declarando livre qualquer escravo ou escrava que, em meu nome, lhe fosse apresentado no Divã, coisa nunca vista no Sudão, no Egipto, nem em nenhuma parte do império turco. Para não falar doutras coisas, citarei só o jantar diplomático dado por ele em minha honra, para o qual convidou todos os paxás, os beis, os principais do Governo e da colónia europeia e os chefes da religião muçulmana. Neste solene banquete, muito mais esplêndido que alguns de Paris, fizeram-se quatro brindes, os quais têm aqui o mesmo significado que na Inglaterra.


[3200]
O primeiro pronunciou-o o próprio grande paxá, que expressou uma admiração própria de um católico, por eu e os meus companheiros termos deixado a pátria e as comodidades da Europa para vir para a África Central difundir a civilização e agradeceu-me em nome dos sudaneses e do Governo por ter vindo encabeçar a corrente do progresso no Sudão. O segundo esteve a cargo do grande mufti, o chefe do Islamismo no Sudão, o qual me felicitou por ter trazido as irmãs para Cartum. O terceiro brinde foi o do cônsul austríaco, que agradeceu ao Sumo Pontífice por ter feito ressuscitar o vicariato da África Central, por me ter posto à frente do mesmo e ter enviado as irmãs; após o que fez um brinde a Sua Majestade o Imperador da Áustria por ter assumido com nova solicitude a protecção do vicariato da África Central. E o quarto, que foi o meu, dediquei-o a S. A. o quedive do Egipto e a S. E. o paxá do Sudão, agradecendo-lhes a protecção concedida à missão e manifestando a esperança de que continuasse no futuro; isto depois de ter feito votos pela sua vida e prosperidade.


[3201]
Quanto ao cônsul austríaco, trata-se de um antigo membro da missão que foi trazido a África pelo falecido pró-vigário Knoblecher. Chama-se Martinho Hansal e é um distinto geógrafo, além de um verdadeiro amigo e servidor da missão.


[3202]
Por tudo isto, pode V. Em.a deduzir quão favorável é a minha posição actual. Contudo, longe de me deixar levar por vãs lisonjas, depois de tantos hossanas, espero a pé firme o crucifige. Toda a minha confiança está depositada na cruz e nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria. Por isso fixei o terceiro domingo de Setembro, dia 14, dedicado à Exaltação da Santa Cruz, o dia para consagrar solenemente todo o vicariato da África Central ao Sagrado Coração de Jesus.


[3203]
Nesse dia, os devotíssimos membros do Apostolado da Oração associados ao Messager du Sacré Coeur, espalhados pelas cinco partes do mundo, acompanharão e farão eco ao meu acto solene de consagração com fervorosas preces a este divino Coração, que deve inflamar toda a África Central e converter à fé todos estes povos e todas estas infelizes tribos, sobre as quais ainda pesa o tremendo anátema de Cam. Por isso, compus recentemente uma oração em latim, que costumamos rezar diariamente pela conversão da Nigrícia e que está no anexo A, que junto.


[3204]
Eu suplicaria a V. Em.a que rogasse ao nosso gloriosíssimo Santo Padre a concessão a todo o fiel do orbe católico que rezasse em qualquer língua esta oração pro conversione chamitarum Africae Centralis ad Ecclesiam Catholicam as seguintes indulgências:

1.o De 300 dias cada vez que se reze.

2.o Indulgência plenária a quem a rezar todos os dias durante um mês, servatis servandis. E ao mesmo tempo rogaria a V. Em.a que modificasse ou corrigisse tal oração, onde não estivesse exactamente formulada.


[3205]
Embora sejam grandes as fadigas e os sacrifícios que deveremos suportar pelo amor de Cristo, todavia parece-me ver um futuro risonho para a África Central. O clima de Cartum, nos meus tempos tão funesto para o europeu, hoje melhorou notavelmente. A construção do caminho de ferro do Cairo até Cartum, passando por Schellal, Wadi Halfa, Dôngola e Schendi é algo já decidido. Eu soube-o oficialmente por Sua Excelência o paxá e falei com a comissão inglesa que projectou o traçado da via. Assim, com os barcos a vapor e os comboios, demorar-se-á um mês para ir de Alexandria a Gondokoro, situada no 4o de latitude Norte. E isto dentro de quatro anos.


[3206]
Amanhã à tarde partirei para o Cordofão. S. E. Ismail Paxá pôs o seu vapor à minha disposição. Ele mesmo me acompanhará durante cento e dez milhas até Abu-Gharat, no Nilo Branco, onde montarei a camelo e, em oito dias chegarei à capital, El-Obeid. Rogando-lhe uma bênção especial a Sua Santidade para todos nós, beija-lhe a sagrada púrpura



O hum. e indig.mo filho de V. Em.a

P.e Daniel Comboni




[3207]
P. S. Suplico também a V. Em.a que obtenha de S. Santidade uma indulgência plenária para todos os fiéis do vicariato e os que vivendo sob a minha jurisdição, como são os membros dos pequenos institutos do Cairo, que, confessados e comungados e rezando pela Igreja e pelo Sumo Pontífice, assistam aos sagrados mistérios no domingo, dia 14 de Setembro próximo, quando eu realizar o solene acto de consagração da África Central ao Sagrado Coração de Jesus; o mesmo realizarão os responsáveis de Cartum e do Cairo no mesmo dia e à mesma hora em que eu o fizer no Cordofão.

Beijo-lhe a sagrada púrpura, confiando-me de novo aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria.



De V. E. Rev.ma, hum. e obed.mo Filho

P.e Daniel Comboni

Pró-vigário ap. da Afr. Central



Segue a oração para conversão da África em latim.






505
P.e Estanislao Carcereri
0
El-Obeid
23. 6.1873

N.o 505 (475) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI

«Annali Buon Pastore» 5 (1873), pp. 11-13

El-Obeid, 23 de Junho de 1873


 

[3208]
«Esta é a primeira carta que escrevo da Portae Nigritiae haec e, de entre todos, merece-a o meu queridíssimo primogénito. Dir-lhe-ei que estou confuso pelas honras e a solene entrada em El-Obeid. Em Fula (lugar a duas horas de El-Obeid) encontrei toda a colónia oriental, que tinha acorrido a receber-me... A meio caminho, os coptas cismáticos com o seu sacerdote vieram-me ao encontro, de modo que entrei em El-Obeid em procissão. Chegado à porta da casa da missão, onde me impressionou a magnífica inscrição Porta Nigritiae haec, estava a banda militar do paxá, de maneira que, depois de rezar um pouco na nossa bela capela, entrei no Divã, onde recebi as saudações de todos os católicos, dos coptas e gregos cismáticos, dos turcos, presidentes dos tribunais, chefes dos soldados, etc. etc., e de um enviado do paxá, o seu primeiro ajudante, que tinha vindo a cumprimentar-me em nome de S. E. o mudir.


[3209]
Na manhã do dia 20 fiz uma visita ao paxá, que me recebeu in formis e veio depois retribuir-ma com todos os chefes do Divã, todos a cavalo e precedidos de alguns grupos de soldados, no meio de uma multidão que enchia hic et inde a grande esplanada e a imensa avenida que há em frente da casa da missão. Em resumo, todos em El-Obeid, desde o paxá aos comerciantes e ao povo simples, renderam a máxima honra ao indigno representante do Papa no Sudão. Além disso fiquei maravilhado pelo grande trabalho que o senhor e o P.e José fizeram nesta incipiente missão: Deus abençoará os seus esforços. E o que me conforta é o crédito de que goza a missão entre toda a classe de pessoas. Por outro lado, estou contentíssimo do P.e José, que agiu e trabalhou com uma firmeza e uma gravidade próprias de um homem de mais idade que ele. É um autêntico e fiável missionário, capaz de fazer grandes coisas pela glória de Deus. O Senhor deu-lhe muito talento, mas ele soube fazer bom uso dele...»


[3210]
Numa outra carta subsequente, monsenhor diz-me:

«O clima do Cordofão não pode ser melhor. Além disso, a situação de El-Obeid como Porta Nigritiae é da máxima importância e não compreendo como é que os primeiros missionários não pensaram antes nesta capital. Quanto a vós, os dois camilianos, em pouco mais de um ano fizestes aqui prodígios, e eu não trocaria agora a estação de El-Obeid por nenhuma das do Alto Egipto, que contam com mais de um século. O nome e a reputação de que os senhores, meus dois caros primogénitos gozais aqui entre todos é muito grande, pelo que Deus vos abençoará a vós e à missão. O princípio está lançado, é mister continuar o caminho. O divino Coração de Jesus está connosco.»



P.e Daniel Comboni






506
P.e Estevão Vanni
1
El-Obeid
24. 6.1873
N.o 506 (476) - A P.e ESTÊVÃO VANNI

AVAE, c. 31



El-Obeid, 24 de Junho de 1873

Dimissórias.





507
Um sacerdote de Trento
0
El-Obeid
24. 6.1873

N.o 507 (477) - A UM SACERDOTE DE TRENTO

«La Voce Cattolica» IX (1874), n. 5-8

A REGENERAÇÃO DA ÁFRICA

J. M. J.

El-Obeid, capital do Cordofão

24 de Junho de 1873

Il.mo e rev.mo senhor,


 

[3211]
Vou contar-lhe agora algo da obra. Esta já se encontra em andamento e asseguro-lhe que certamente terá êxito e se converterão muitos milhões de almas; e isto não porque todos nós, missionários, irmãs e operários, estejamos decididos a vencer ou morrer, mas porque a obra vai ser confiada ao Sdo. Coração de Jesus, que deverá incendiar toda a África Central e enchê-la do seu fogo divino. No próximo dia 14 de Setembro, aqui em El-Obeid, farei a solene consagração de todo o vicariato ao Sagrado Coração de Jesus, enquanto o meu vigário-geral fará, em igual data, a mesma consagração em Cartum. Nesse dia, os associados do Apostolado da Oração farão o mesmo acto de consagração, cuja fórmula foi composta pelo nosso caro amigo P.e Ramière.


[3212]
Sem dúvida, o senhor lerá no Messager du Sacré Coeur. Pois bem, como é possível que o Coração de Jesus não escute as fervorosas orações de tantas almas justas associadas ao Messager, que são a flor da piedade e da virtude? Jesus Cristo é o rei dos cavalheiros: sempre manteve a palavra. Ao petite... quaerite... pulsate sempre respondeu e responderá com o accipietis... invenietis... aperietur. Portanto, a Nigrícia verá a luz e os seus cem milhões de infelizes ressuscitarão para uma nova vida pelo Sagrado Coração de Jesus.


[3213]
Uma vez que, graças à munificência régia, se pôde comprar a casa Caobelli junto ao seminário de Verona, eu, ainda em viagem pela Alemanha, pus-me a trabalhar nas regras do instituto para as apresentar em Roma. Entretanto, no Cairo, os meus companheiros, especialmente o meu imprevisível P.e Carcereri, realizavam estudos acerca dos pontos da África Central onde, pela amenidade do seu clima e pela importância da sua situação estratégica, seria oportuno estabelecer os membros do instituto já maduros para o apostolado da Nigrícia interior. Estudou-se, escreveu-se, falou-se, viajou-se e, finalmente, acordou-se tentar uma exploração no Cordofão.


[3214]
Como a experiência levada a cabo desde 1848 até 1864 no Nilo Branco foi calamitosa, pelos imensos pântanos que lá geram febres mortais e enfermidades perigosíssimas para o europeu, eu tinha o olhar posto nas tribos interiores que se encontram entre o Nilo Branco e o Níger, em cujo território há montes e ar sadio. Aceitei de muito boa vontade a proposta do P.e Carcereri sobre o Cordofão e, mediante uma carta de 15 de Agosto de 1871, enviada de Dresden, ordenei-lhe que fizesse os preparativos para uma próxima exploração do Cordofão. A 15 de Setembro, de Mogúncia, ordenei aos exploradores que saíssem do Cairo em Outubro, época propícia para a navegação pelo Nilo. E foi assim que o valoroso Carcereri, com Franceschini e dois leigos, em apenas 82 dias de viagem, passando por Cartum, chegaram ao Cordofão. Exploraram-no pela parte de Darfur, assim como pelo sul, até Tekkela e os confins dos Nuba e julgaram oportuno estabelecer uma missão aqui, em El-Obeid, que, realmente, segundo posso ver agora, é o centro de todo o verdadeiro interior da África e cujo clima é muito melhor que o de Cartum e o do Nilo Branco.


[3215]
De facto, desde El-Obeid, em apenas três dias de viagem a camelo, entra-se no território de Darfur e em quinze dias chega-se à capital onde habita o sultão. Em três dias, daqui chega-se aos primeiros montes das grandes tribos dos Nuba, pátria de Bajit Miniscalchi, onde há bastantes milhões de africanos ainda não contaminados, que nunca quiseram saber de Maomé. Em trinta dias chega-se ao vasto império de Bornu, enquanto para ir aí de Trípoli ou Argel seriam precisos mais de cem dias e a viagem seria perigosa. Aqui em El-Obeid estão os procuradores e os correspondentes dos sultões de Darfur e de Bornu, os quais fornecem àquelas regiões mercadorias e objectos europeus por meio de trocas.


[3216]
Em Setembro passado cheguei com uma boa expedição ao Cairo, onde o Demónio, permitindo-o o Senhor, me tinha preparado imensas dificuldades, que ameaçavam pôr-me na impossibilidade de empreender a viagem da grande expedição à África Central e ocupar o vicariato, segundo as ordens da Propaganda e de acordo com o que eu tinha anunciado às sociedades benfeitoras europeias, que para tal fim me tinham dado alguma ajuda. Para não falar de muitas e muito graves oposições que se desencadearam contra mim por vontade de Deus e, pela minha indignidade, direi que tive bastantes personalidades muito estimáveis que escreveram a Marselha, à rev.da madre geral das minhas irmãs, esconjurando-a a não permitir nunca que nenhuma das suas irmãs fosse para a África Central, onde encontrariam uma morte certa, como tinha acontecido a todos os missionários precedentes.


[3217]
A madre geral, que tinha oito irmãs preparadas para mas enviar para o Cairo, assustou-se e, como consequência disso, mandou-as para a Bélgica para aí abrirem uma nova casa. Igualmente, com todas as artes e modos, se procurou insinuar às três irmãs, que já tinham recebido a obediência da madre geral para irem comigo para o centro da África e que já viviam há mais de dois anos no meu instituto, que não fossem para a África Central. Porém, neste caso, não tiveram êxito: elas, já na posse das suas obediências, permaneceram inamovíveis no seu santo propósito, dispostas a morrer por Cristo.


[3218]
Não obstante, vi-me num grave aperto. Porque, embora a rev.ma madre geral, convencida de se ter deixado enganar, assegurou-me de novo que me mandaria as irmãs depois da festa de S. José, em que tinha mais de trinta novas profissões, eu encontrava-me na embaraçosa impossibilidade de empreender a expedição, dado que a superiora destinada a Cartum estava doente e não parecia prudente aventurar-se com duas ou três irmãs e dezasseis mestras negras. Para esfriar a madre geral e algumas irmãs contribuiu um novo assalto lançado pelos mesmos que tinham procurado assustá-las. Consistiu no seguinte.


[3219]
A Congregação das Irmãs de S. José tem mais de sessenta casas na Europa, Ásia, África e Austrália; a todas a madre geral deve prover de pessoal. A mim constava-me com certeza que todos os bispos e vigários apostólicos em cujos territórios se encontram tais casas insistem continuamente para obter novas irmãs, sendo uma congregação de excelente espírito e criada de propósito para as missões, cujo cardeal protector é o próprio em.o prefeito da Propaganda. Porém, a madre geral não pode sempre atender às necessidades de todos.


[3220]
Por isso, prevendo que tão-pouco eu poderei obter sempre desta congregação o número de irmãs que é necessário para o imenso vicariato da África Central, então, depois de ter inutilmente tentado sondar, por meio de mons. Canossa, se as canossianas assumiriam a direcção de algum instituto feminino na África Central e obtida a conformidade de Pio IX com sumo prazer de mons. Canossa, abri um instituto feminino em Verona para formar missionárias para a África, que provisoriamente chamei Pias Madres da Nigrícia. Para este fim comprei o convento Astori em Santa Maria in Organis, no qual instalei as Pias Madres da Nigrícia, instituto que vai muito bem, como me escreve o monsenhor e que dentro de poucos anos me dará boas missionárias.


[3221]
Pois bem, informados disto, os meus bons amigos do Cairo escreveram à madre geral de S. José e insinuaram às irmãs do Cairo que Comboni se valia no momento das Irmãs de S. José, enquanto esperava ter as suas de Verona preparadas; porém, quando pudesse dispor destas, haveria de se dirigir às de S. José e, agradecendo-lhes por o terem ajudado a iniciar a sua obra, dar-lhes-ia o passaporte. Isto comoveu não pouco a firmeza da madre geral; porém, finalmente, por graça de Deus e pelos meus rogos e garantias, decidiu dar-me todas as irmãs que pudesse, tal como faz com os outros responsáveis de missão e obrigou-se a isso mediante documento assinado por ela, por mim e pelo cardeal-prefeito da Propaganda. Veja como Jesus é bom e como me tratam bem a Virgem e o seu Santíssimo Esposo São José.


[3222]
Não falo de outras tempestades levantadas por divina vontade, como o ter tentado abalar a constância dos meus missionários, o ter-me denunciado à polícia turca como réu de ter baptizado negros já muçulmanos (o que é verdade), etc., etc. Todos nós seríamos demasiado afortunados se os turcos nos cortassem a cabeça pela fé; até estamos preparados para isso desde há muito tempo, na certeza de que Deus suscitaria outros depois de nós segundo a sábia economia da sua Providência.


[3223]
Embora eu soubesse que já se havia escrito para a Europa contra mim, e até a Roma, dizendo que eu ia conduzir à morte os missionários e as irmãs e, apesar de só ter três destas e doentes, que tinham respeitado a obediência da madre geral, contudo quis partir do Cairo, consciente de que ia enfrentar ventos contrários, o terrível khamsin do deserto e a estação mais crítica. Consultados os meus companheiros, decidimos lançar-nos nos braços da Providência e cumprir os desejos da Propaganda, bastante claros e manifestos.


[3224]
No dia 26 de Janeiro, a bordo de duas grandes dahhabias, numa das quais estavam os missionários e irmão leigos e na outra as irmãs e as negras, partimos do Cairo em direcção ao centro da África. Após uma penosíssima viagem de noventa e nove dias e depois de ter perdido nas Tebaidas um irmão leigo atingido pela varíola, chegámos, quase por milagre, sãos e salvos, a Cartum. Em dez dias mais, eu fui com outros a El-Obeid. Como a descrição desta viagem lhe chegará impressa a partir de Verona, não lhe falarei agora dela...


[3225]
A cidade de Cartum e sobretudo o grande paxá, cuja autoridade se estende desde Meroe até às nascentes do Nilo, acolheram-me com demasiadas honras, o que me levou a pensar que Nosso Senhor Jesus Cristo depois dos hossanas teve o crucifige. Contudo, o paxá recebeu-me como amigo, ofereceu-me o seu total apoio para fazer tudo o que eu quisesse para o bem da civilização e da religião, deu uma grande festa em minha honra e ofereceu-me gratis os seus barcos a vapor para as minhas visitas pastorais pelo Nilo Azul e Branco até Gondokoro, como de facto fez logo que eu vim ao Cordofão, porque pôs à minha disposição o seu vapor, que me levou 127 milhas pelo Nilo Branco até Tura-el-Khadra, onde desci a terra e a camelo alcancei El-Obeid em nove dias.


[3226]
Não somente os turcos me deram as boas-vindas por ter chegado a Cartum, mas o próprio grande mufti, chefe da religião muçulmana, me felicitou por ter levado para lá as irmãs para a educação das meninas. O mesmo se passou aqui em El-Obeid, onde, no dia anterior à minha chegada, o paxá aboliu a escravatura, publicou pela primeira vez os decretos de 1856 do Congresso de Paris e pôs em liberdade a mais de 300 escravos de sua casa. Depois veio com grande pompa visitar-me, acompanhado de dois generais e dos chefes do seu Divã e ofereceu-me o seu apoio em todos os meus desejos.


[3227]
Não é que sejam espontâneas estas ovações, pois o turco odeia o Cristianismo, nem tão pouco que a escravidão seja eficazmente abolida, porque, como direi depois, na África Central e no Egipto está em pleno vigor, dado que o turco nunca abolirá a escravatura: subscreverá tratados, suprimi-la-á no papel, fingirá não querê-la, para enganar os bobos; mas o muçulmano, enquanto for maometano, jamais acabará com o tráfico de negros. Não obstante, a mim, que ameacei muitos paxás a respeito disso, quiseram render-me tal homenagem, tendo sido advertidos oficialmente pelo Divã do Cairo que sou encarniçado inimigo da escravidão. Mas deve saber que eu estava munido de um grande decreto do sultão de Constantinopla, obtido pelo nosso munificentíssimo imperador de Áustria-Hungria, por meio do qual o grande sultão ordena ao paxá do Egipto que proteja o vicariato da África Central. De vez em quando puxei por este decreto, esplendidamente escrito, porque por aqui a bandeira austríaca é respeitada e temida e, durante toda a minha longa viagem, os governadores e paxás ofereceram-me os seus serviços.


[3228]
Agora dir-lhe-ei uma palavra sobre este vicariato, o maior do mundo e o mais difícil e laborioso, para cujo cultivo se precisariam dois mil jesuítas, cinquenta estigmatinos de Verona, quinhentos beneditinos dos da nova reforma Casaretto, etc., e que agora estão em Subiaco. Actualmente somos poucos aqui; porém, vou escrever-lhe os meus projectos, que já expus e que agradaram a esse bom do P.e Beck, general chefe dos granadeiros do Papa.


[3229]
O vicariato da África Central tem como limite a norte o Egipto, Barqa, Trípoli e Tunes; a este o mar Vermelho, a Abissínia e os Gallas; a sul estende-se até aos 12o de latitude austral, compreendidos os lagos ou nascentes do Nilo, Udschidschi, etc. e o Congo; a oeste confina com as duas Guinés e a linha recta desde a ponta ocidental meridional da prefeitura apostólica de Trípoli até ao Níger, chegando ao norte do vicariato apostólico da Costa do Benim. Como vê, este vicariato é maior que toda a Europa.


[3230]
Pois bem, em tão imenso vicariato fundaram-se e prosperaram de 1848 a 1861, sob o governo dos meus antecessores Knoblecher e Kirchner, as quatro seguintes estações, situadas ao longo do Nilo Branco, que constituem a parte oriental do vicariato: 1.o, Gondokoro, nos 4o de lat. N.; 2.o, Santa Cruz, nos 6o; 3o, Cartum, nos 15o; e 4o, Schellal, sobre os 23o de lat. N. Sob o governo dos franciscanos, desde 1861 até 1872, abandonaram-se nos dois primeiros anos as estações de Gondokoro, Santa Cruz e Schellal e, por nove anos, mantiveram apenas Cartum com um ou dois missionários da excelente província do Tirol. Os pobres franciscanos, dada a supressão na Itália, não têm pessoal suficiente para manter e conservar todas as inumeráveis missões que têm, como me dizia o venerabilíssimo P.e Bernardino, seu padre geral.


[3231]
As casas e os jardins de Gondokoro e Santa Cruz estão completamente destruídos. De Schellal resta a casa, mas em muito mau estado. Em Cartum, ao contrário, permaneceu muito firme e é, sem dúvida, a melhor e mais sólida construção de todo o Sudão; porém, o jardim converteu-se num bosque e precisarei de um ano para que dê à missão, a que pertence, o fruto de 2000 francos anuais. A isto acresce que o estabelecimento de Cartum ficou despojado de tudo, enquanto nos tempos em que esteve lá como responsável Knoblecher se encontrava tão bem equipado como uma casa de beneditinos na Europa. Os bons franciscanos encontraram-se numa época crítica, na qual na Europa havia revolução e na qual, quase como agora, a Sociedade de Viena tinha ficado reduzida ao mínimo. Quando sofre o Papa, sofrem os membros da Igreja.


[3232]
Agora, a fim de lançar firmes bases sobre as quais se estabeleça de forma consistente o vicariato, limitar-me-ei a consolidar o melhor que puder as duas estações centrais, para que sirvam de base de operação a todas missões que no futuro hão-de surgir no centro da África. Estas são as de Cartum e El-Obeid; e como a viagem do Cairo a Cartum é suficiente para matar ou incapacitar o missionário, por isso, e para cumprir além disso o desejo da Propaganda, que me foi expresso pelo Em.o cardeal Barnabó mediante a sua venerada carta de 29 de Abril, quero abrir Schellal.


[3233]
Quanto aos institutos do Cairo, estou a deixá-los consideravelmente reduzidos, porque eu mesmo trouxe de lá para o centro da África mais de trinta pessoas maduras para o apostolado e outras e vinte virão numa segunda expedição no próximo Agosto. Não obstante, no Cairo são sempre necessários dois pequenos estabelecimentos para aclimatar neles os missionários e as irmãs e provar a sua vocação; e além disso constituem como uma procuradoria do vicariato para as relações com a Europa e o aprovisionamento da missão. Mas a passagem do Cairo para Cartum é demasiado violenta e perigosa para a saúde dos missionários; daí a necessidade de Schellal, que é a média proporcional entre o Cairo e o Sudão. Porque, depois de ter assistido à morte de tantos missionários, é mister que eu estude os meios para conservar a sua vida.


[3234]
No Cairo, ao regressar agora o cônsul-geral de Viena, teremos o terreno que nos ofereceu o quedive para construir os dois estabelecimentos. O terreno vale no Cairo 20 fr. o metro, por isso o paxá vai fazer-nos uma mercê muito grande. Viver no Cairo custa o dobro ou o triplo que na Alemanha, depois da abertura do canal de Suez. Por isso tenho intenção de reduzir os dois Institutos ao mínimo, deixando-os só para os europeus e europeias que se preparam para o apostolado da Nigrícia.


[3235]
Os negros são caros no Cairo (500 fr. cada um) e já estão contaminados pelos muçulmanos; aqui não custam quase nada, de 15 a 30 táleres, e são melhores, tendo uma boa índole, que os muçulmanos não fizeram perder. Por isso, enquanto até hoje os institutos do Cairo me custaram 34 000 fr. ao ano, espero que, a partir de 1874, me custem a quarta parte. Em Schellal, além da casa masculina, temos doze feddan de bom terreno (60 000 metros quadrados), onde, com a compra de umas máquinas para tirar água do Nilo, se podem obter metade dos alimentos que se consomem na estação. Mas é preciso construir uma pequena casa para as irmãs, a qual se fará toda de granito oriental, como os obeliscos de Roma, cujas pedras foram todas cortadas em Schellal ou perto; de modo que a casa custará pouco. E a igreja também se fará de granito. A Schellal chegam doentes desde a distância de sessenta milhas para serem tratados na missão. Num único dia, a 16 de Março, baptizei quatro meninos moribundos, que foram todos logo para o Paraíso.


[3236]
Em Cartum, precisa-se da casa das irmãs e da igreja. Cartum tem uns 50 000 habitantes e melhorou de clima, devido aos grandes edifícios e jardins que se construíram; agora pode-se ali viver como nas zonas baixas de Verona ou de Pádua. Desde que mandei ocupar esta estação pelo meu vigário-geral, Cartum ganhou nova vida e espero que em breve teremos lá uma boa cristandade. Actualmente há muitos catecúmenos e na festa do Espírito Santo confirmei 34 recém-convertidos. Agora está lá em vigor o catecismo, as pregações e o ministério, como na paróquia de Verona: dentro de uns anos, se Deus nos der vida, espero anunciar-lhe óptimos resultados desta missão. Aqui, em El-Obeid, onde os primeiros missionários que chegaram foram os meus exploradores Carcereri e Franceschini, já começou a formar-se uma pequena cristandade.


[3237]
Temos a nossa casa e uma preciosa igrejinha. Teria que fazer ampliações para a escola e para o ensino de artes e ofícios, porque agora as aulas são dadas debaixo duma grande árvore e desde as nove até às quatro faz calor. Além disso é preciso a casa para as Irmãs. Agora tenho comigo três mestras negras, além da minha prima, que é professa da Companhia de Santa Ângela Merici, as quais vivem em cabanas de palha. Aqui as casas são cabanas, mas como ocorriam e ocorrem sempre incêndios, por ordem do governador constroem-se agora todas de areia, porque aqui não há pedras, nem terra para fabricar tijolos. Antes da estação das chuvas, estas casas de areia são cobertas com uma mistura de areia e excrementos de vaca e com isto resistem às chuvas desse ano. Mas cada ano é preciso repetir a operação. A actual casa com a igreja que temos custa 13 000 francos; porém, exige-nos anualmente um gasto de 600 francos entre vigas e barro para conservar. E é uma das mais sólidas e bonitas desta capital.


[3238]
Todo o mérito desta missão cabe aos padres Franceschini e Carcereri da Ordem de S. Camilo, que, com a autorização do seu geral e mediante um breve pontifício, se associaram a mim; e espero que permaneçam sempre na missão, como é seu desejo. Para este fim, criarei mais adiante, como prometi ao seu geral, um hospital, que nesta capital será uma bênção de Deus, porque aqui mais de metade dos que morrem – e às vezes até antes de morrerem – são retirados da cidade e, como não recebem sepultura, são devorados pelas hienas e pelas aves.


[3239]
Tendo visto anteontem com os meus próprios olhos mais de sessenta mortos, todos eles negros, retirados assim da cidade, enviei ao grande paxá do Cordofão um escrito propondo-lhe que ordenasse que todos os que morram sejam enterrados, porque o costume aqui predominante vai contra a religião e civilização, por estes desditosos serem nossos semelhantes. No momento ele ditou a lei que eu desejava e agora vão mensageiros e pregoeiros pela cidade, dando a conhecer a ordem, cujo incumprimento é punido com penas severíssimas. Entre os convertidos está o primeiro comerciante (grego cismático) de El-Obeid, que há sete meses abjurou perante mim, vigário-geral, e o P.e Carcereri e com ele converteu-se toda a sua família, que agora é extremamente exemplar.


[3240]
Passo a dizer-lhe algo da mais dolorosa calamidade que aflige o meu vicariato, a escravidão, que aqui está em pleno vigor, em parte por culpa do ateísmo e dos delírios das actuais potências europeias e sobretudo por culpa do Islamismo, que prometerá qualquer coisa, assinará todos os tratados das potências europeias, mas no papel: nunca de facto. Eu, pela minha situação, estou em condições de, neste aspecto, fazer o bem, porque no Sudão a missão católica tem muito poder, em grande parte devido à bandeira austríaca que nela flutua.


[3241]
Todos os paxás e os traficantes de escravos nos temem e procuram fugir dos nossos olhares. Eu declarei ao paxá de Cartum e ao do Cordofão que quantos escravos encontrar na cidade ou fora, atados, etc., faço-os levar à missão e já os não devolvo; e que todos os que se apresentarem na missão a denunciar maus tratos por parte dos seus amos, verificada a verdade, retenho-os e tão-pouco os devolvo, limitando-me tão-só a denunciar que retive fulano ou sicrano na missão e até que se faça o juízo e seja aprovado por mim ou pelo meu instituto na minha ausência, o escravo deve lá permanecer. Os ditos paxás ou governadores, que se sentem em falta, porque o primeiro traficante de escravos é o Governo, não se atreveram a dizer palavra e concederam-me tudo; de modo que já libertei mais de quinhentos. Os cornos de Cristo, como dizia P.e Mazza, são mais duros que os do Diabo.


[3242]
Porém, como triunfa o horror da escravidão nestas terras! Por El-Obeid e por Cartum, assim como pelo território intermédio, passam cada ano mais de meio milhão de escravos, a maior parte do género feminino, mas misturadas sem consideração com varões de todas as idades – embora a maior parte de 7 a 18 anos – todas nuas e a maior parte amarradas. Gente que foi roubada e arrancada violentamente do seio das suas famílias nas tribos e reinos do Sul ou do Sudoeste de Cartum e do Cordofão, às vezes depois de os seus pais terem sido assassinados por serem velhos ou levados também, se forem jovens. Todos passam por aqui para serem levados para o Egipto ou para o mar Vermelho e vendidos! Às mulheres que dão mais nas vistas preparam-nas sumariamente para a prostituição ou para os haréns, e os demais para o trabalho.


[3243]
Desde o Cairo até Cartum vimos mais de quarenta embarcações de escravos, nas quais homens e mulheres iam metidos como sardinhas. Ao passar o deserto encontrámos mais de trinta caravanas deles, que, nus, mães com os seus filhitos, meninos e meninas de sete ou oito anos, iam a pé pela areia ardente, realizando assim uma viagem que cansa os mais fortes viajantes montados a camelo e recebendo de comer – não todos os dias – um pouco de sorgo ou de outro grão demolhado em água.


[3244]
Porém, o que mais me horrorizou de tudo foi o que vi entre Cartum e El-Obeid, onde encontrei vários milhares de escravos, a maior parte mulheres misturadas com varões e sem sombra de roupa. Os pequenos até três anos eram levados por outras escravas, que pareciam as mães e estas iam a pé. Outros, homens e mulheres, em grupos de oito e de dez, iam atados ao pescoço e amarrados a uma barra que descansava sobre os seus ombros e que deviam transportar; isto para que não se escapassem. Outros, em grupos de dez e de quinze, com idade entre os oito e os quinze anos, levam ao pescoço uma corda de pele de cabra atada a uma corda mais grossa que um jilaba ou traficante de escravos segurava com a mão. Outros eram ligados dois a dois pelo pescoço a uma trave, um dum lado, outro do outro.


[3245]
Outros levavam a scheva, barra com um extremo em forma triangular a que estava amarrado o pescoço do escravo, que, ao caminhar, ia arrastando o madeiro. Outros tinham as mãos e os braços amarrados atrás das costas e a uma longa corda segurada por um canalha. Outros tinham os pés apertados com cadeias de ferro; alguns assim atados levavam fardos e embrulhos dos patrões. Os velhos caminhavam sem amarras. Todos eram impelidos barbaramente com lanças e paus, se não caminhavam suficientemente depressa ou estavam cansados; e quando, esgotados, alguns caíam no chão, então aqueles canalhas acabavam com eles à paulada ou com as lanças, ou abandonavam-nos pelo caminho. Eu encontrei alguns deles mortos pelo caminho e as nossas pobres catequistas ficaram horrorizadas e cheias de medo.


[3246]
Isto é apenas uma pálida ideia do mais que poderia contar. Eis aqui, pois, senhor, uma das tarefas da nossa missão. Nenhum tratado, nenhuma potência, poderá abolir aqui a escravidão, porque é permitida por Maomé e os muçulmanos julgam-se com direito a exercê-la. Será destruída unicamente com a pregação do Evangelho e com a definitiva implantação do Catolicismo nestas terras. O Governo, que aderiu ao tratado de 1856, só o fez no papel, não na prática. Os governadores do Sudão são os primeiros a exercer o infame tráfico, de que tiram proveito. Os próprios paxás efectuam incursões no território dos Nuba, no dos Teggala, no Nilo Branco, etc., levando consigo soldados armados de fuzis, voltando de cada vez com seis ou oito mil escravos! Tudo isto é sabido no Cairo. Sabem-no o Divã, o vice-rei, e, creio, muitos cônsules europeus. Mas hoje todos estão comprados e, como o grito destes povos não chega à Europa, onde agora reinam o ateísmo e a maçonaria, a desolação destes lugares continua e continuará por muito tempo.


[3247]
Porém, o Coração de Jesus, suplicado por almas justas, e a caridade dos corações santos e generosos fautores do apostolado católico em tão santa e espinhosa missão hão-de bastar para enxugar as lágrimas destes povos infelizes por cuja redenção nós sacrificamos a vida. Veja também, por este lado, a enorme importância deste vicariato apostólico...


[3248]
Em Dezembro passado, o embaixador da Inglaterra veio visitar-me no Cairo. Tivemos uma longa conversa e combinámos manter correspondência. Porém, foi grande a minha surpresa quando me disse que se dirigia não à África Central, que é o teatro mais colossal da escravidão, mas sim a Zanzibar e a Mascate. Tinha falado com o vice-rei do Egipto e estava muito satisfeito da audiência, porque o quedive, após louvar a sua filantrópica missão, lhe tinha prometido toda a ajuda ad hoc. Eu, que sei como estão as coisas, calei-me e deixei-o na sua boa-fé; só lhe disse que os Turcos, apoiando-se nas afirmações dos seus muftis, intérpretes do Alcorão, consideram lícita e benemérita a escravidão, etc. Então Sua Ex.cia perguntou-me: «Pensa que terei sucesso na minha missão perante o sultão de Zanzibar?»


[3249]
Eu respondi-lhe: «Senhor embaixador, o sultão vai recebê-lo esplendidamente, vai dar-lhe uma hospitalidade principesca; porém, vai negar-se a cumprir o seu desejo, porque o Alcorão, para ele palavra de Deus, não proíbe, mas permite o tráfico de carne humana. Ou, se o sultão se mostrar disposto a agradar-lhe, assinará um tratado com S. M. a rainha da Inglaterra e, quando o senhor tiver partido de Zanzibar, continuará como antes, praticando o mesmo e permitindo aos outros muçulmanos o tráfico de escravos.» Sua Excelência não ficou muito satisfeito com a minha opinião e exprimiu-me a esperança de alcançar os seus intentos com as cartas do seu Governo e com os canhões. «Com os canhões, sim – respondi-lhe –, porém, só naqueles lugares onde se ouvir o seu estampido.»


[3250]
Despedimo-nos amigavelmente, depois de ter almoçado com ele e com o seu grande séquito, no qual figurava um bispo anglicano, doutíssimo em árabe e persa, que partilhava dos meus pontos de vista e que era o secretário daquela embaixada. Não sei o resultado da mesma, porque eu vim para a África Central; mas eu continuo com a minha opinião. Só a fé de Cristo implantada no centro da África e os Sagdos. Corações de Jesus, de Maria Imaculada e de S. José, mais que a rainha da Inglaterra e o Tratado de Paris de 1856, abolirão a escravidão...


[3251]
Por outro lado, o Santo Padre Pio IX tem muito interesse por esta missão e disse-me que rezou e rezará sempre por mim. E nós aqui na África Central, depois de ter pregado a Trindade, a Redenção e N. Senhora, pregaremos imediatamente o Papa, que é tanto maior quanto mais perseguido. Oh, que delícia sofrer com o Papa!...

Receba todo o coração de



Seu devot.mo e hum. P.e Daniel Comboni

Pró-vigário apostólico da África Central






508
P.e Camilo Guardi
0
El-Obeid
5. 7.1873

N.o 508 (478) - AO P.e CAMILO GUARDI

AGCR, 1700/33

J. M. J.

El-Obeid (Cordofão), 5 de Julho de 1873

Rev.mo P.e geral,

[3252]
Devia ter-lhe escrito antes e falar-lhe dos seus dignos filhos e meus caríssimos filhos e irmãos Carcereri e Franceschini. Porém, nunca me pude decidir a fazê-lo até não ter ocasião de os abraçar no campo das suas apostólicas fadigas e ver com os meus próprios olhos tudo o que realizaram, a fim de lhe dar exactas e conscienciosas notícias disso ao veneradíssimo pai, e informá-lo com pleno conhecimento de causa.


[3253]
Sem mencionar quanto bem fizeram estes dois bons padres nos meus Institutos do Egipto, pelo que guardarei para com eles e para consigo eterna gratidão, devo confessar-lhe abertamente que no meu vicariato (que consumiu as forças de mais de sessenta missionários) levaram a cabo maravilhas, porque, no espaço de apenas dezassete meses, deram vida à missão de El-Obeid, que pela sua situação geográfica é verdadeira porta da Nigrícia e talvez o ponto de apoio mais importante para implantar a fé no coração das imensas tribos do vicariato da África Central. Levaram a cabo em poucos meses o que um bom corpo de missionários teria podido fazer só em vários anos. De facto, com os modestos meios que eu lhes pude proporcionar, criaram em El-Obeid uma estação equipada de casa, capela e jardim, suficiente para uma comunidade em pleno vigor de apostolado; começaram a formar uma pequena cristandade, de modo que aqui as coisas funcionam como numa paróquia normal da Europa; ganharam, com a sua atitude e procedimentos dignos, a estima de todos, desde o paxá e os demais ricos comerciantes até à classe mais humilde do povo. E com uma coragem que só a fé e missão de Deus inspiram souberam fazer respeitar a nossa santa obra por parte das autoridades turcas e dos mais ferozes inimigos da fé, a ponto de gozarem da máxima consideração entre os habitantes desta cidade, que são mais de cem mil.


[3254]
Além disso, o P.e Estanislau, a quem eu tinha dado a incumbência de tomar posse em meu nome da estação de Cartum, porque, desde a minha nomeação como pró-vigário, se deixava deteriorar tudo aquilo e se vendia quanto de valor restava naquela outrora riquíssima missão, em apenas três meses, enquanto eu estava de viagem com a grande expedição, reanimou tão bem o espírito decaído daqueles católicos, que agora pensamos levantar aí o edifício espiritual de uma pequena e florescente cristandade católica. Numa palavra, o P.e Estanislau é um verdadeiro e santo religioso, digno filho de S. Camilo e um valiosíssimo missionário, que parece ter recebido de Deus especiais dotes para o árduo apostolado da Nigrícia.


[3255]
Por seu lado, o P.e Franceschini não é absolutamente inferior ao P.e Carcereri no que respeita às aptidões essenciais que constituem um verdadeiro operário evangélico, e parece feito de propósito para a África Central. Além disso, possui uma maturidade mental e um raciocínio muito acima da sua idade, pelo que se mostra um homem perito e seguro nas mais difíceis contingências. Em suma, já é um missionário experimentado e de valor, e continua a ser um religioso enamorado da sua congregação camiliana, que lhe deu a educação espiritual. Ambos falam árabe fluentemente, consideram que aprenderam muito sobre a prática do ministério apostólico nos seis anos em que se encontram na África sob a minha humilde bandeira e têm tão bons ânimos em relação ao apostolado da África Central que ambos estão dispostos a gastar toda a sua vida e a derramar mil vezes o seu sangue pela salvação dos pobres negros, sempre que contam com a autorização e a bênção de V. P. Rev.ma, a quem, por todos os títulos, estão subordinados e a quem guardam a mais sincera e filial veneração e afecto.


[3256]
Eu fiquei muito satisfeito quando em Cartum li a venerada carta de V. P. Rev.ma, na qual afirmava não ser contrário ao espírito e às regras da sua ínclita ordem que um ministro dos doentes pode exercer, attentis circumstantiis, o cargo de vigário-geral; em razão do que, mediante o correspondente documento, no passado Maio, eu nomeei o P.e Carcereri meu vigário-geral, a quem agora deixei provisoriamente à frente da estação de Cartum para que complete e continue a boa obra que já tinha começado em favor daquela cristandade. Entretanto, aqui em El-Obeid, apesar de ter comigo um missionário de óptimo espírito e prudência, de quarenta anos de idade, nomeei superior da estação o P.e Franceschini, que com seu juízo e serenidade, não dos 27 anos que tem, mas de mais de cinquenta, estou certo que saberá desempenhar bem o seu difícil e delicado cargo, por ter também para isto uma aptidão fora do comum.


[3257]
Agora, logo que cheguei com a minha grande caravana à minha residência principal de Cartum, pensei pôr em execução ad litteram o que prometi formalmente e de que falei a V. P. Rev.ma sobre a sua ínclita Ordem em relação à África Central, ou seja, erigir naquele lugar ou estação que fosse do maior agrado a estes dois queridos filhos seus e meus uma casa camiliana com todas as condições que me fossem manifestadas e expressas por V. P. Rev.ma: casa própria e rendimento adequado para o próprio sustento. E isto por me encontrar agora totalmente capacitado para manter as promessas que lhe fiz em Roma.


[3258]
Falei disso, pois, com o rev.mo vigário-geral Carcereri. Porém, ele observou-me que dois religiosos apenas não poderiam fazer frente a todas as condições requeridas para uma bem constituída casa camiliana e convenceu-me do que me dizia em Verona o P.e João Baptista Carcereri, isto é, que hic et nunc torna-se muito mais fácil a estes dois padres, Estanislau e José, e mais útil para a missão, que continuassem por algum tempo a trabalhar unidos a mim e sob a minha direcção; firmes, não obstante, na opinião de que, quando pudessem contar com outros irmãos seus de religião, vindos da Europa, lhes seria possível pôr em prática a supramencionada ideia de V. P. Rev.ma e minha.


[3259]
De facto, por serem só dois, penso que fazem muito mais trabalhando unidos a mim do que fariam de maneira isolada numa casa independente; e darão um resultado ainda muito maior se V. P. Rev.ma me conceder a graça de utilizar os seus serviços livremente, segundo as necessidades do vicariato. Na verdade, é bem difícil encontrar dois missionários e religiosos com tal espírito e firmeza para o apostolado extremamente árduo e penoso da África Central como estes dois dignos filhos seus. Há seis anos que os conheço a fundo, e por ter visitado diversas missões na Europa, na África, na Síria e nas Índias, sei o que significa ser missionário, sobretudo quando eu mesmo o sou da Nigrícia desde há dezasseis anos, e trabalhei ao lado dos mais distintos e denodados campeões da África Central; por isso, com pleno conhecimento de causa, repito-lhe que missionários como Carcereri e Franceschini, que apresentem verdadeiras aptidões para trabalhar com óptimo resultado nesta dura e laboriosa vinha que me confiou a Santa Sé, há poucos nas cinco partes do mundo.


[3260]
São, além disso, excelentes religiosos, que vivem, diria, quase como se estivessem no noviciado. Assim, para mim será uma grande alegria também se V. P. Rev.ma mos conceder para que trabalhem unidos a mim, como fizeram até agora. Bem entendido que este beneplácito de V. P. Rev.ma não seria in perpetuum, mas só até que apareça na Europa um horizonte mais claro para as ordens religiosas e concretamente para a camiliana e até que eu possa encaminhar devidamente a dificultosa obra do meu vicariato. Para isto encontro uma ajuda inestimável na experiência, nos dotes especiais e na firme constância destes dois incomparáveis religiosos e trabalhadores evangélicos, cujo zelo e actividade tenho que acalmar e refrear, mais que incentivar e estimular.


[3261]
Pelo que me dirijo à extraordinária bondade de V. P. Rev.ma para lhe suplicar fervorosamente que tenha por bem conceder a estes dois padres, filhos seus e meus, a graça de poderem trabalhar por alguns anos unidos a mim e sob a minha bandeira. Graça que atrairá sobre si e sobre toda a sua ordem as bênçãos divinas, porque milhares de infiéis convertidos pelos dois solicitarão do trono de Deus a conservação e prosperidade da ilustre ordem camiliana.


[3262]
Passo a expor-lhe a minha ideia para o futuro, a qual submeto ao parecer de V. P. Rev.ma. Tenho uma firme e inamovível certeza no triunfo não distante da Igreja; também no ressurgimento florescente das ordens regulares e da camiliana, que fará flutuar as suas bandeiras na França e na África e especialmente depois da tempestade da actual perseguição infernal e após a conclusão do Concílio Vaticano. O nobre e generoso programa da ordem camiliana está em consonância com as necessidades dos tempos e, além disso, é um poderosíssimo meio para ganhar a simpatia dos povos e conquistar os infiéis.


[3263]
Por isso estou disposto a realizar esse plano contra todos os obstáculos, sempre com o consentimento da Sagrada C. da Propaganda, à qual está sujeita toda a minha acção. O meu vicariato, mais extenso que a Europa inteira e o maior do mundo, é povoado por mais de cem milhões de infiéis. Até agora não ocupámos mais que as portas da Nigrícia e o umbral do centro do vicariato, no qual habitam grandes tribos impolutas, ainda não contaminadas pelos seguidores do Alcorão, às quais se pode fazer muito bem. Todos os que quiserem ir ao centro da Nigrícia, onde há povos ainda virgens, têm que passar por Cartum ou pelo Cordofão.


[3264]
Portanto eu construiria de muito boa vontade uma casa para os camilianos, segundo as exigências do seu espírito e das suas regras, em qualquer ponto da Núbia ou do Cordofão ou nas próprias capitais Cartum e El-Obeid, que servisse como ponto de apoio para uma missão no centro da Nigrícia; missão que, a seu devido tempo, se poderia confiar a S. Camilo, para cujo fim não faltariam, nem faltam, os meios pecuniários e materiais, porque tenho a certeza de dispor deles agora e no futuro, como tão-pouco faltam ou faltarão às outras missões do mundo, as quais contam como primeiro apoio com as mesmas sociedades benfeitoras da Europa que ajudam o meu vicariato; e isto à parte os recursos que vou encontrando no próprio vicariato. Em resumo, essa Providência, que em seis anos, em tempos tão difíceis, me deu meio milhão de liras para sustentar e continuar em frente com as minhas obras, saberá proporcionar-me os meios para estabelecer na África Central os camilianos, que tanto contribuíram para o êxito da minha empresa, contrariis quibuscumque obstantibus.


[3265]
Estas são as ideias e as coisas que submeto à sabedoria e ao coração de V. P. rev.ma, declarando-me disposto a fazer quanto julgar oportuno e desejável e que esteja ao meu alcance. A única coisa a que não saberia adaptar-me seria a transferência para a Europa destes dois campeões do apostolado africano, o que representaria uma imensa dor para mim e para eles. Porém, eu confio na Imaculada Virgem Maria, Rainha da Nigrícia e no bendito S. Camilo, que, colocando-me no Insto. Mazza de Verona por meio do meu querido P.e João Baptista Peretti, de santa memória, me abriu o caminho do apostolado africano e que, desde há mais de 28 anos, me fez outros favores. Estes dois venerados objectos da minha devoção conceder-me-ão tal graça em prol do vicariato da África Central, que é a mais vasta e trabalhosa missão do universo e pela qual os seus dois queridos filhos e eu estamos dispostos a dar cem vezes a vida. O nosso grito de guerra é este: «Nigrícia ou morte.» Semelhante empresa é bem digna de S. Camilo e de nós.

Confiando na mente e no coração magnânimo de V. P. Rev.ma, que está cheio de zelo pelas almas e a quem dedico um respeito e gratidão filial, confio-me às suas orações, enquanto tenho a honra de me subscrever nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria



De V. P. Rev.ma

Hum., devot.mo e agrad.mo servidor

P.e Daniel Comboni

Pró-vigário apostólico da África Central






509
Card. Alexandre Barnabó
0
El-Obeid
8. 7.1873

N.o 509 (479) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SOCG, v. 1003, ff.732-733

N.o 6

El-Obeid, capital do Cordofão

8 de Julho de 1873



Em.o e Rev.mo Príncipe,


 

[3266]
Como lhe indicava na minha última carta, a núm. 5, de 5 de Junho, o paxá de Cartum punha gratuitamente à minha inteira disposição um vapor do Governo para me levar a mim e ao meu pequeno grupo pelo Nilo Branco até ao ponto em que se desce para tomar o caminho que conduz ao Cordofão. De facto, na manhã do dia 8 do mês passado, o vapor zarpava do jardim da missão; e, acompanhado do meu vigário-geral, em dezoito horas, fizemos cerca de 120 milhas pelo Nilo Branco até Tura-el-Khadra, não longe da grande tribo dos Schelluk. Aí, tendo encontrado o superior da missão de El-Obeid, que tinha vindo procurar-me para me acompanhar ao meu destino, desci a terra. Depois, após me despedir do vigário-geral, que regressou imediatamente a Cartum no barco, pus-me a caminho com a nossa caravana de dezanove camelos e, atravessando densas selvas e arenosas planícies salpicadas de árvores gomíferas, em apenas nove dias cheguei à capital do Cordofão.


[3267]
Duas horas antes saiu ao meu encontro quase toda a colónia cristã, incluídos os coptas cismáticos, que ocupam os cargos mais importantes no Divã; e, recebidas as felicitações de todos, entrei na missão engalanada para festa, entre o repenique dos sinos e os harmoniosos acordes da banda da guarnição militar (três mil soldados, entre infantaria e cavalaria) e no meio do júbilo dos membros da nossa casa e da pequena comunidade desta cidade, que conta com mais de cem mil habitantes. Devo dizer-lhe que também o próprio grão-paxá do Cordofão (que, dada a imensa distância do Cairo, tem amplos poderes e é como um pequeno rei), acompanhado de numerosos soldados, dois generais e as primeiras autoridades do seu Divã, se apresentou com grande pompa a visitar-me, oferecendo-me a sua amizade e colaboração em tudo o que eu desejasse fazer orientado para os altos fins de civilização e beneficência que ele sabia que me tinham trazido aqui.


[3268]
Este é o mesmo paxá que não queria reconhecer a missão católica do Cordofão em Abril do ano passado, facto de que V. Em.a teve conhecimento – assim como de outros problemas consulares – em Julho do ano anterior por carta de mons. Ciurcia. Porém, depois do Memini que provoquei em Viena em nome de Sua Majestade apostólica o imperador Francisco José I e, com a carta de recomendação que o I. R. Cônsul austro-húngaro por ordem de Viena dirigiu ao Divã do Cairo e de que eu me muni, não só o paxá de Cordofão mas também os de Cartum e de Berber me dispensaram o melhor acolhimento e me permitiram fazer o que me parecesse a respeito dos escravos que se apresentassem à porta das nossas missões; vali-me disso até agora para libertar centenas de infelizes que gemiam sob o peso do mais cruel e arbitrário despotismo.


[3269]
No dia anterior ao da minha chegada à capital do Cordofão, o referido governador-geral desta imensa região ordenou que fosse abolida em El-Obeid a escravidão (de palavra e no papel para enganar os ingénuos) e ele mesmo pôs em liberdade mais de duzentos escravos que tinha no seu Divã e nos seus haréns. Deste modo, desde o passado mês de Junho, dia da minha entrada nesta capital, fechou-se por completo o mercado de escravos de El-Obeid e não voltaram a passar por aí tantos milhares de infelizes de ambos os sexos que, totalmente nus, permaneciam atados pelo pescoço com cordas e com os pés apertados ou ambos os braços atrás das costas, com cadeias de ferro, ou com a scheva – longo madeiro terminado em triângulo, ao qual se fixava com ferros o pescoço do escravo –, esperando que viessem comprá-los.


[3270]
E aqui interessa-me descrever-lhe os horrores da escravidão, que está em pleno vigor em toda a África Central, apesar dos tratados das potências europeias e das fingidas proibições dos paxás e governadores do Sudão. Apesar da minha posição nestes lugares e do autêntico prestígio da missão estarem em condições de serem muito úteis para fomentar a civilização e limitarem o furor desta chaga da humanidade, isto é um assunto que requer a mais séria reflexão e o mais atento exame por parte da Sagrada Congregação. Portanto, escreverei sobre o assunto no futuro, pelo que passo agora a falar-lhe brevissimamente desta importante missão do Cordofão.


[3271]
Estou convencido de que foi verdadeira inspiração de Deus o ter estabelecido uma missão em El-Obeid, que é talvez a cidade mais povoada do Sudão; e isto sobretudo pela sua importantíssima e estratégica situação. É a verdadeira porta da Nigrícia. Para não mencionar muitas outras tribos, a três dias daqui, para noroeste, fica o império de Darfur e em quinze dias chega-se onde reside o seu sultão. Em três dias, indo para sudoeste, chega-se ao imenso e povoadíssimo território, habitado por milhões de almas, das grandes tribos dos Nuba, que nunca foram domadas pelas armas egípcias e com as quais se torna fácil para nós entabular relações a partir de El-Obeid. Num mês, a camelo, alcança-se daqui o império de Bornu, enquanto desde Trípoli, com maiores perigos, se precisam cento e tal dias. Em El-Obeid residem (e são já nossos amigos) os representantes dos comerciantes e dos sultões de Darfur e de Bornu, que adquirem tecidos e outras mercadorias europeias por meio deles. Além disso, o clima deste lugar é bom, absolutamente bom, e o calor é menos desagradável e excessivo que em Roma, além de que aqui não se conhecem as febres e doenças que reinavam no Nilo Branco.


[3272]
Estou ainda convencido de que esta florescente missão de El-Obeid é abençoada por Deus. Nós possuímos uma casa suficientemente grande para alojar seis missionários, quatro irmãos coadjutores e vinte alunos, equipada de salas de aulas e de locais para artes e ofícios e dotada de uma bonita capela com capacidade para cem pessoas e dum quintal que actualmente fornece hortaliça à missão durante todo o ano. Temos, além disso, uma pequena casa anexa à nossa, onde estão provisoriamente as negras catecúmenas, confiadas aos cuidados da minha excelente prima Stampais (que estava há cinco anos com as irmãs no Cairo) e de duas mestras negras que trouxe de Cartum; pode servir comodamente para quatro irmãs e trinta alunas e, com outra casa, que estou prestes a arrendar, torna-se, para as Irmãs que virão em Outubro, um estabelecimento muito mais cómodo e amplo que o das Irmãs de S. José de Piazza Margana, em Roma.


[3273]
Aqui estão em plena actividade as funções paroquiais, com pregação, catecismo e instrução em cada festa, para os trinta católicos que formam a nascente missão. Entre eles devo mencionar o mais rico comerciante da cidade, homem exemplar, que com a sua esposa abjurou do cisma grego perante os padres Estanislau Carcereri e José Franceschini, camilianos, os quais enviei o ano passado como exploradores ao Cordofão.


[3274]
E neste ponto, por dever de justiça, devo comunicar a V. Em.a que o estabelecimento desta nascente missão se deve aos ditos dignos filhos de S. Camilo. Foram eles que, com os modestos meios que lhes forneci, empreenderam a exploração do Cordofão, compreenderam a verdadeira importância de El-Obeid e criaram esta estação, pondo a missão em andamento e ganhando, com a sua prudente e edificante conduta, a estima e veneração de toda a cidade e especialmente dos principais funcionários e comerciantes. Ambos falam, catequizam e pregam em árabe e seriam felizes de poder consumir a sua vida na redenção da Nigrícia.


[3275]
Considerando tudo isto e com o fim de conservar, se for vontade de Deus, estes distintos missionários tão cheios de zelo e preparados para este árduo e espinhoso ministério, escrevi ao seu rev. do P.e geral com vista a estabelecer um regular acordo que seja conforme os seus desejos e os interesses da África Central, para depois submeter tudo à S. C.

Beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me



De V. Em.a hum. filho

P.e Comboni, vigário ap.






510
P.e Bartolomeu Rolleri
0
El-Obeid
16. 7.1873

N.o 510 (480) - A P.e BARTOLOMEU ROLLERI

AVAE, c. 31

El-Obeid, 16 de Junho de 1873

Caríssimo P.e Bartolo:

[3276]
Para a promoção de P.e Estêvão ao subdiaconado, ele deve ter e tem o seu património, quer dizer, o suficiente para constituir uma receita anual de 250 liras. Porém, se estas práticas atrasarem a ordenação, eu autorizo-o a ordená-lo titulo missionis, em conformidade com a autorização ad hoc recebida da S. Sé, ainda que com a obrigação absoluta de que P.e Estêvão retire cada ano o rendimento do seu património e o entregue à missão, porque a Santa Sé concedeu só a isenção e apenas aos pobres. Rogue por seu af.mo amigo



P.e Daniel Comboni

Pró-vigrio ap. da África Central