Escritos

Pesquisar
Pesquisa avançada – clique aqui para melhorar a pesquisa
N° Escrito
Destinatário
Sinal (*)
Remetente
Data
521
Abade Casaretto
0
El-Obeid
20. 8.1873

N.o 521 (491) - AO ABADE PEDRO CASARETTO

ACSR – Corrispondenza Casaretto

El-Obeid, 20 de Agosto de 1873

Necrologia


 

[3381]
Com a mais viva dor da nossa alma apressamo-nos a comunicar que o R. D. P.e José Pio Hadrian, sacerdote beneditino da primitiva congregação de Montecassino e missionário apostólico da África Central, após prolongada doença crónica, desconhecida para a profissão médica, contraída bastantes anos atrás na Europa, confortado com todos os auxílios da nossa santíssima religião, voou para o eterno descanso no dia 17 de Agosto de 1873, às oito e meia da manhã, com cerca de 26 anos de idade, em El-Obeid do Cordofão, na África Central.


[3382]
Nascido numa das tribos da península do Sennar, junto ao Nilo Azul, com apenas quatro anos foi violentamente arrebatado e afastado do seio da sua família por ferozes traficantes de carne humana. Depois de ter sido repetidamente vendido na Núbia, foi levado para o grande Cairo do Egipto, onde o resgatou o muito rev.do P.e Nicolau Olivieri, de santa memória, que o levou para a Itália. Aí foi acolhido pela bondade dos monges beneditinos em Subiaco, perto de Roma, onde, graças aos cuidados mais solícitos e afectuosos, aprendeu os primeiros rudimentos da nossa santa religião, para depois, a 24 de Junho de 1853, receber o santo baptismo no Mosteiro de Santa Escolástica das mãos do Il.mo e Rev.mo P.e Pedro Casaretto, presidente da mencionada ordem e agora abade geral da primitiva congregação de Montecassino do patriarca São Bento. No dia 26 de Abril de 1856 fez com grande devoção a sua primeira comunhão no referido protomosteiro, onde a 18 de Outubro do mesmo ano recebeu o sacramento da confirmação, que lhe foi administrada por Sua Em.a o cardeal De-Andrea, de boa memória. Entrou no noviciado da citada ínclita congregação beneditina a 16 de Fevereiro de 1861, tomando o hábito monástico no dia 24 do mesmo mês e ano, e no dia 19 de Março de 1863 professou com votos simples.


[3383]
Em fiel correspondência à divina graça, o novo religioso africano foi admiravelmente imbuído do espírito do seu santo patriarca; e ao tesouro de uma distinta piedade, candura e pureza de costumes, juntou-se a riqueza intelectual de uma sólida formação nas ciências sagradas, acompanhada do conhecimento da liturgia, da música sacra, do desenho e decoração e de algumas línguas.


[3384]
Quando oferecia as melhores esperanças de se converter em modelo de exímia piedade e de religioso bem instruído, afectou-o desde 1867 uma lenta doença, que, desconhecida dos médicos mais ilustres, se mostrou rebelde a todos os remédios e cuidados que lhe prodigalizava a grande bondade dos seus superiores. Estes, julgando que o clima do seu país de origem podia devolver-lhe o antigo vigor e a perfeita saúde, com a aquiescência do imortal Sumo Pontífice Pio IX e da Sagrada Congregação da Propaganda Fide, o ano passado confiaram-no ao rev.mo pró-vigário da África Central, P.e Daniel Comboni, a fim de que o conduzisse à sua terra natal e, recobrada a saúde, consagrasse a sua vida ao apostolado daquela santa missão.


[3385]
No dia 26 de Maio de 1872, recebeu as ordens menores na sagrada gruta que é berço da ilustre ordem beneditina, das mãos de Sua Excelência rev.ma mons. Filipe Manetti, bispo de Trípoli in part. inf. e administrador apostólico da abadia nullius de Subiaco. A 2 de Junho seguinte, o mesmo prelado promoveu-o ao subdiaconado também na sagrada gruta, a 9 ao diaconado e a 16 ao sacerdócio. No dia 12 de Agosto chegou a Verona, ao Instituto das Missões para a Nigrícia. A 3 de Setembro teve a honra de ser recebido em Viena com o seu pró-vigário apostólico por Sua Majestade apostólica o imperador da Áustria e da Hungria e, três dias depois, a satisfação de visitar o ilustre e antiquíssimo mosteiro de S. Pedro em Salzburgo, bem como o celebérrimo das monjas beneditinas de Nonnberg, fundado por Santa Erentrude em 581 e que, ao longo dos seus treze anos de existência, nunca foi suprimido.


[3386]
Esta foi uma das mais doces recordações da sua vida, tendo admirado o espírito eminente do seu venerado patriarca São Bento naquelas pias e fervorosas religiosas benfeitoras da obra da redenção da sua querida Nigrícia, com as quais estabeleceu um sagrado vínculo de recíprocas orações quotidianas, que ele manteve fielmente até à morte. A 26 do mesmo mês chegou ao Grande Cairo, ao instituto de negros, onde difundiu admiravelmente o grato odor das suas formosas virtudes. No dia 26 de Janeiro do corrente ano deixou a capital do Egipto, fazendo parte da grande expedição apostólica guiada pelo chefe da missão, com destino à África Central, e, após 99 dias de penosíssima e desastrosa viagem pelo Nilo e pelo deserto chegava a Cartum, capital das possessões egípcias no Sudão. Depois de permanecer aí pelo espaço de um mês, partiu com o pró-vigário para o Nilo Branco e, tendo entrado no Cordofão montado num camelo, chegou no dia 19 de Junho a esta capital de El-Obeid.


[3387]
Estava há cerca de um mês nesta nova missão, onde o ar é saudável, quando a antiga doença começou a despertar com força e começou a declinar de forma perceptível, agravada por violenta disenteria, consequência de uma afecção crónica do aparelho intestinal, contraída há alguns anos. Após vinte dias de agudas dores, suportadas com cristã alegria e edificante resignação, chegou ao seu fim uma vida imaculada e eminentemente religiosa com a morte do justo, deixando na dor os seus queridos irmãos missionários, que jamais poderão esquecer esta primeira flor do sacerdócio indígena da África Central, a quem adornavam as esplendorosas graças da virtude religiosa da mais distinta e ilustre entre as famílias monásticas da Igreja Católica.

Dado em El-Obeid, na nossa residência de Cordofão, a 20 de Agosto de 1873.



P.e Daniel Comboni

Pró-vig. ap. da África Central



Rev.mo abade geral,




[3388]
Ao dar-lhe a dolorosa notícia da morte de P.e Pio, prometo fazer-lhe saber os pormenores da mesma por meio da Propaganda. Foi direito ao Paraíso. Como a 18 de Agosto do ano passado, eu o havia associado a uma congregação de Verona, comuniquei o seu falecimento ao presidente da mesma para que sejam celebradas por ele mais de 600 (seiscentas) missas a que tem direito.

Não lhe posso exprimir quão grande é a minha dor; porém, faça-se a santíssima vontade de Deus. Saúde da minha parte o P.e procurador e todos os padres e dê-me a sua bênção. Os meus respeitos a mons. Manetti, bispo de Subiaco.



Seu hum., dev. e verdadeiro servidor

P.e Daniel Comboni

Pró-vig. apostólico






522
P.e Germano Tomelleri
0
El-Obeid
31. 8.1873

N.o 522 (492) - AO P.e GERMANO TOMELLERI

APCV, 1458/317

J. M. J.

El-Obeid, Cordofão, 31 de Agosto de 1873

Meu caro e venerado P.e Germano,


 

[3389]
Há tempos que desejava escrever-lhe para o informar com pleno conhecimento de causa sobre os seus dois queridos discípulos, irmãos e filhos, os padres Estanislau e Beppi; porém, as múltiplas ocupações, a par de um pouco de negligência culpável, impediram-mo. Mas eu conheço a fundo o seu coração desde quando era ainda secular e debaixo do mesmo tecto comíamos a clássica e filosófica polenta de P.e Mazza; ou seja, desde quando eu era um jovenzinho com pouco juízo e o senhor um jovem mas dotado do juízo, sensatez e prudência de um homem feito. Por isso estou certo que me perdoa.


[3390]
Os dois camilianos são agora o ornato e a coluna do meu imenso vicariato apostólico, o qual vê em S. Camilo um valioso protector e favorecedor da infeliz Nigrícia. Com os poucos meios que eu lhes dispensei, eles foram os primeiros a abrir uma missão nesta capital, que tem uma população superior à de Verona, e a fundar aqui uma comunidade cristã. Por ser esta missão a verdadeira porta da Nigrícia, oferece as melhoras esperanças e a ordem de S. Camilo pode dar fruto neste lugar mais que em qualquer cidade da Europa; porque, sendo estas gentes infiéis na sua totalidade, é preciso estabelecer aqui todas as obras católicas, entre as quais são importantíssimas as de S. Camilo. O mesmo pode dizer-se de Cartum, cujo clima melhorou muito desde os tempos em que lá estavam os missionários do Instituto Mazza. Porém, o clima de El-Obeid é sensivelmente melhor, e o Verão que estou a passar aqui, desde 20 de Junho até hoje, é como a Primavera em Verona.


[3391]
Para dizer tudo numa palavra, o P.e Estanislau é um poço de energia, capaz de grandes coisas, que pode ser posto à frente de uma grande diocese, sobretudo se estiver ao meu lado, porque tem uma grande influência sobre mim, bem como me deu provas de que eu (indigníssimo) tenho influência sobre ele. E assim, sendo nós dois diabinhos, como se disse em Roma, eu estou em condições de moderar a sua fogosidade, que o levaria mais longe que o devido, e ele tem a força para me conter a mim nos limites da prudência e do que é justo. Este providencial encadeamento deu tão bons resultados, que em menos de seis meses, com a prodigiosa ajuda de Deus, fizemos ressuscitar este imenso vicariato, que estava moribundo, levámo-lo a uma situação de prosperidade que não alcançou nem nos bons tempos do meu ilustre predecessor mons. Inácio Knoblecher. Por seu lado, Beppi – digo-o com orgulho, porque com os sãos e excelentes princípios que possuía, graças à escola do Paraíso, tornou-se, sob a minha bandeira, naquilo que é mediante o exercício do mais activo apostolado – é um homem de cinquenta anos pela sensatez, prudência, critério, solidez e firmeza de ânimo.


[3392]
São dois valiosíssimos e autênticos missionários, dois bons e eficientes operários da vinha do Senhor e dois verdadeiros e fiéis filhos de S. Camilo de Lelis, que se desejariam matar e cortar em pedaços – e, em consequência, capazes de renunciar a toda a glória e ao seu mais apreciado desejo – para se manterem fiéis aos seus quatro votos e à obediência aos seus legítimos superiores camilianos. A educação religiosa recebida no paraíso de Verona tem, pois, que ser muito sólida. A saída de Perinelli e de algum outro napolitano e veronês, que estiveram nos meus institutos do Cairo, faz-me apreciar cada vez mais estes dois apóstolos camilianos; fazem-me convencer, na prática do que escrevi nas minhas regras do nascente Insto. de Verona: que para trabalhar numa vinha árdua como esta da África se requer uma sólida formação religiosa e uma escola de abnegação extraordinária e segundo o espírito de Jesus Cristo crucificado, porque a renúncia a si mesmo e a tudo o que é próprio para se lançar nos braços da obediência e de Deus, não se obtém sem a ajuda extraordinária da graça. E isto é necessário para a África Central.


[3393]
Estes dois missionários familiarizaram-se de tal maneira com a vida árabe, tão cheia de privações nestes países, que nunca vi nenhum missionário da África Central assim: eles viajam em camelos e dormem vestidos, estendidos sobre uma pele; comem o locma com os árabes, gozam de uma saúde de ferro e trabalham como um natural do país, sob o Sol e em toda a parte. Eu tenho que ter os meus cuidados, a que devo o excelente estado de saúde de que desfruto.


[3394]
Porém, eles, apesar das minhas severíssimas ordens, não pensam em si mesmos: lá onde o ministério os reclama, acorrem imediatamente. Em resumo, é difícil que eu possa ter dois missionários tão formados para a Nigrícia como estes; por isso pode imaginar-se quanto os estimo e até que ponto tenho esperança no seu trabalho. No dia da Assunção baptizei onze adultos infiéis, um deles muçulmano. No dia 14 de Setembro baptizarei outros doze e ainda temos bastantes mais catecúmenos. Nunca mais acabaria se tivesse que lhe descrever as perspectivas que existem nesta missão por eles fundada.


[3395]
Agora é necessário chegar a uma definitiva resolução sobre o futuro destes camilianos, que estão aqui por graça de Deus, de Pio IX e do P.e Guardi. O P.e Estanislau, como meu vigário-geral que é, encontra-se em Cartum, a minha sede principal, e Beppi está aqui. Nenhum dos dois sabe que eu lhe escrevo agora a si. Porém, ontem, Beppi recebeu uma carta de Guido, na qual, entre outras coisas, lhe diz que se lembre que é camiliano e que, à voz da obediência, ele está obrigado a voltar ao ninho, etc. Deve saber, meu caro P.e Germano, que fui e sou ainda talvez um grande ignorante. Mas Deus, nos seus imperscrutáveis e sempre adoráveis desígnios, permitiu que eu cometa tantos erros e fez-me passar por tantas armadilhas, que agora não raramente as vejo de longe.


[3396]
Tratei com o mundo e com a mais alta e multiforme diplomacia bastarda, com santos e com patifes, com os grandes e com os pequenos; de maneira que, por disposição de Deus, creio não ser agora o ignorante que era em S. Carlos, onde não se podia conhecer nem o mundo profano, nem o sagrado, nem o maçónico, nem o papista, nem nada. Aquilo era estudar e pronto. O P.e Guido escreve como verdadeiro filho de S. Camilo, o que aprecio. Porém, entre as veneráveis razões apresentadas parece-me vislumbrar que, talvez com louvável e justa intenção, pensa chamar estes dois padres à Europa. Os venerados superiores camilianos não farão mais do que aquilo que o Senhor lhes inspirar; e, por outro lado, conhecendo eu tão profundamente Beppi e o P.e Estanislau e a sua firmeza no cumprimento dos sagrados deveres, estou certo de que deixariam um paraíso para obedecerem aos seus superiores.


[3397]
Por isso, em nome de Deus, dado que a minha obrigação e o motivo pelo qual a Santa Sé me pôs aqui é velar pelos interesses dos mais de cem milhões de infiéis que a Igreja me confiou para os converter à fé, dirijo-me a si para que seja meu patrono e protector perante o P.e Guardi, a fim de que se levem a cabo os projectos concebidos desde há mais de seis anos de fundar na África Central uma casa camiliana, a qual seria como o centro e o viveiro para assumir uma ou mais missões no interior da Nigrícia.


[3398]
Ao caducar o famoso breve pontifício quinquenal, tive a honra de me pôr em comunicação com o P.e Guardi, o qual, animado da mais viva caridade de que está repleto, visto ser camiliano, permitiu aos seus dois queridos filhos que permanecessem em África indefinidamente, assegurando-me que, chegado o momento em que se pudesse estabelecer uma casa camiliana num lugar seguro do vicariato, com as condições requeridas pela santa regra leliana, ele, em vista do autêntico desejo destes dois filhos, consentiria nisso, após autorização da Propaganda. Porém, como vejo que em Verona se abriu o noviciado e que, em França e na Inglaterra, há procura de camilianos, considero que este é o momento de tratar o importantíssimo assunto do trabalho dessa ordem em favor da África Central, onde há mais almas, mais infelizes, mais necessitados que na França e na Inglaterra, almas africanas que se podem salvar com mais facilidade e em maior número que na Europa e que também foram remidas pelo sangue de Jesus Cristo.


[3399]
Portanto, tendo à minha disposição os meios necessários para satisfazer as justas exigências do rev.mo vigário-geral Guardi e todas as condições estabelecidas por ele e pela regra camiliana e contando com estes dois incomparáveis missionários formados de propósito para a África Central, que desejam sacrificar a sua própria vida por esta obra santíssima, creio chegado o tempo fixado pela Providência para determinar sobre bases duradoiras e perpétuas a fundação de uma obra camiliana na Nigrícia central. Pense que se estes dois sacerdotes fariam na Europa dois graus de bem, aqui fazem trinta, porque salvam um grande número de almas, o que atrai sobre a ordem camiliana as maiores bênçãos.


[3400]
Contrapor-me-á o P.e Germano que hoje há aqui apenas dois membros da sua ordem e que esta se encontra na Europa em estado tão calamitoso que não pode oferecer mais. Eu respondo-lhe que se hoje são dois, daqui a dez anos serão vinte os missionários camilianos na África, e quarenta outros em França associados à ínclita ordem por causa da África. Eu conheço os franceses e a sua maneira de pensar mais a fundo do que o senhor ou qualquer outro. Em França, enquanto a ordem camiliana se limitar aos hospitais e à sua finalidade específica, não prosperará muito, o mesmo tendo acontecido à de S. João de Deus, porque os franceses não querem homens, mas mulheres, nos seus hospitais, e quase todos os hospitais franceses estão em mãos femininas. Para se arreigar em França, uma ordem hospitalar precisa de se dedicar a qualquer obra de caridade (oeuvres de zèle, como dizem os franceses) e ao mesmo tempo ao apostolado ou à pregação ou às missões diocesanas. Eu visitei quase a totalidade dos estabelecimentos de toda a França, onde há mais de trezentas congregações religiosas, entre as masculinas e femininas.


[3401]
Apenas os Irmãos das Escolas Cristãs têm setecentas e cinquenta casas. Porém, nem os trinitários, nem os agostinhos, nem os Irmãos de S. João de Deus tiveram um êxito comparável ao dos dedicados às missões. Se a ordem de S. Camilo aderir a qualquer obra de apostolado, por exemplo à da África Central, asseguro-lhe que acorrerão em bom número os postulantes para se associarem a S. Camilo, que então disporá de gente para a França para a Inglaterra e para a África. Talvez o senhor não acredite, uma vez que não tem a experiência que Deus me deu sem o saber sobre tais coisas. Mas conserve esta carta durante alguns anos e comprovará a verdade da minha afirmação.


[3402]
Basta que, terminadas as diligências com o geral e com a Propaganda sobre estes dois, eu publique na Propagação da Fé, nas Missions Catholiques de Lião, no L’Univers, no Le Monde e nalguma Semaine Réligieuse da França, um elogio sobre estes dois camilianos, incitando os franceses a ingressarem no Insto. que os senhores têm agora na diocese de Autun, dizendo que, tornados camilianos, podem vir a ser missionários da África Central e verá que muitos se vão pôr à sombra de S. Camilo e sob a chefia do estupendo Tezza (é muito bom que o mestre de noviços seja um italiano como Tezza).


[3403]
Isto espero eu com a ajuda de Deus e do Sagrado Coração de Jesus, a quem consagro todo o vicariato no próximo dia 14. Ora bem, como estes assuntos tão delicados e importantes não se podem tratar por carta e posto que os superiores têm direito a considerar bem, sondar e reconhecer todo o terreno para descobrir a pura verdade e a vontade de Deus (que é a única que desejo e quero, porque doutro modo se trabalha sobre areia), decidi mandar de seguida o P.e Estanislau à Europa, o qual tratará bem este assunto e também alguma outra pequena coisa minha na Alemanha e na França. Tinha decidido mandá-lo em Janeiro; mas, ponderado tudo, partirá no início de Outubro ou, ao menos, dentro desse mês.


[3404]
Irá a Roma e a Verona e falará com os senhores. Entretanto eu, sabendo que os Corações de Jesus e de Maria são mais fortes e poderosos que os padres Guardi e Germano, rezarei e farei com que se façam novenas nos meus institutos de África e em La Salette e em Lourdes e em N. D. des Victoires, etc., para que se cumpra a santíssima vontade de Deus com base na minha santíssima vontade. Se o senhor decidiu chamar os dois, suspenda, por agora, o projecto e rogue a S. Camilo e a Maria Santíssima que se cumpra só a divina vontade para honra e bem da ordem. Saúde da minha parte Regazzini e todos os bons padres. Irá ver a transformação que teve em seis anos o P.e Estanislau: certamente que se alegrará. Reze por seu af.mo amigo



P.e Daniel Comboni

Pró-vig. ap. da África Central




[3405]
Rogo-lhe que, por agora, mantenha estas coisas em segredo. Tratemo-las em primeiro lugar diante de Deus e depois esperemos todo o bem. O senhor, rogo-lho in visceribus Christi, fale e actue em favor da África Central, porque assim trabalhará também em favor da sua ínclita ordem, a qual adquirirá do espírito apostólico em prol da Nigrícia essa vida que agora não tem entre os maçónicos da Europa. Aqui estamos no paraíso no respeitante às autoridades políticas. Os paxás são nossos humildes servidores e fazem quanto queremos. Nove dias atrás, o P.e Estanislau fez tremer o paxá de Cartum, o qual teve que recorrer a mediadores para fazer as pazes. Louvado seja Deus.

Faça todos os dias um memento por mim. Muitas saudações a Bonzanini, a quem sempre tenho presente; diga-lhe que reze todos os dias pela Nigrícia e por este que é seu devotíssimo.



P.e Daniel Comboni

Pró-vigário ap. da África Central






523
Comité da Marienverein
0
El-Obeid
2. 9.1873

N.o 523 (493) - AO COMITÉ DA MARIEN VEREIN

«Bericht des Marienverein» (1873)

El-Obeid, 22 de Setembro de 1873

Ilustre comité,

[3406]
Depois de ter tomado conta da estação missionária de Cartum e com isso da escola feminina, que viu aumentar o número das que a frequentam e que provi de professores e professoras, a minha tarefa mais urgente era fundar uma nova estação missionária em El-Obeid, a capital do distrito do Cordofão. Também esta se encontra já em plena actividade e tem o número necessário de sacerdotes e de professoras. Agora estou prestes a erigir uma filial da estação do Cordofão em Gebel Nuba e assim propagar o mais possível o Cristianismo entre as tribos negras para cumprir quanto possível a tarefa que corresponde à missão. Mas para isto necessita-se não só de recursos humanos (pessoal) mas também e especialmente meios pecuniários.


[3407]
Digne-se ter em conta o ilustre comité que a comida em Cartum e no Cordofão custa o dobro que na Europa, que, à excepção da carne, o café e o sal, os produtos alimentícios quadruplicam aqui o preço europeu, que hoje em dia viajar em África sobe para o dobro do que custava nos tempos do pró-vigário apostólico Knoblecher e que o aluguer de uma embarcação fluvial, que antes andava pelas cem piastras, agora ascende a 180. Por outro lado, agora há em Cartum dois estabelecimentos, um masculino e um feminino, e outros dois em Cordofão e todos devem ser providos, ainda que limitadamente, de víveres, vestuário, quartos, mobiliário, ferramentas e utensílios de artes e ofícios, de agricultura e também é preciso abastecê-los de remédios. Considerando tudo isso, esse ilustre comité compreenderá que, com o escasso pecúlio que tinha à minha disposição, houve que fazer gincanas na economia para poder realizar tanto trabalho.


[3408]
Merece, pois, toda a consideração que em tempo tão breve e com meios tão limitados se tenha conseguido dar uma nova vida a tão vasto vicariato, que estava já nos limites da subsistência, se tenham ampliado as instalações preexistentes, fundado outra estação em El-Obeid, feito vir irmãs cheias de zelo e habilidade, que antes não havia aqui e que agora dirigem uma escola pública. Eu precisava de formar e educar negros e negras para estarem em condições de fazer de mestres e mestras nas suas tribos.


[3409]
E tendo conseguido formar competentes mestres e catequistas negros, além de sapateiros, pedreiros, carpinteiros, etc., provi com eles as estações de Cartum e Cordofão. Indígenas, assim preparados, são indispensáveis para a existência de uma missão: foi precisamente a falta de tal pessoal o que, após a morte de Knoblecher, deixou a missão perto do fim, embora estivesse bem fornecida de meios. Considerando tudo o exposto, creio ter feito com muito esforço e muitas dificuldades o máximo pela prosperidade da missão, e com isso ter ganho também o reconhecimento desse alto comité, dos reverendíssimos membros e de todos os benfeitores da missão.


[3410]
Dentro de um ano, graças ao laborioso zelo dos meus irmãos e se conseguir obter o desejado subsídio da Europa, espero até poder declarar que o vicariato da África Central é um dos mais florescentes do mundo.



P.e Daniel Comboni






524
Card. Alexandre Barnabó
0
El-Obeid
15. 9.1873

N.o 524 (494) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SOCG, v. 1003, ff. 742-743

El-Obeid, 15 de Setembro de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

[3411]
Foi enorme o júbilo que ontem sentimos todos os membros desta santa missão, quando realizámos a solene consagração de todo o vicariato ao Sagrado Coração de Jesus. A festa da Exaltação da Santa Cruz de 1873 marca uma nova época de misericórdia e de ressurreição para a África Central, subjugada desde há tantos séculos por Satanás. E nós abrimos o coração não já a uma doce esperança, mas sim a uma infalível certeza de que o Coração de Jesus, que derrama abundantemente as suas graças nestes tempos de universal calamidade para a Igreja e para o mundo, se dignou, em sua infinita piedade, escutar os nossos votos e os de centenas de milhares de piedosos associados do Apostolado da Oração e do Messager du S. Coeur, os quais nas cinco partes do mundo acompanharam ontem com edições especiais o acto de consagração que solenemente pronunciei em El-Obeid. Por isso, estamos profundamente convencidos de que agora começa o grande acontecimento da verdadeira regeneração da Nigrícia, para a qual, sob os auspícios da Virgem Imaculada, de S. José, dos apóstolos e dos santos e mártires africanos, começa o fim das suas seculares desditas, sob que gemem os mais de cem milhões de infelizes que constituem este vicariato.


[3412]
Nós, se bem que pela nossa debilidade não sejamos indiferentes à série de cruzes (que são sempre o selo das obras de Deus) de que estamos cercados, encontramo-nos sempre dispostos aos mais duros padecimentos, às mais árduas fadigas e à própria morte, para alcançar o objectivo de consolidar estas missões da África Central e chamar estes povos à fé. Sob o glorioso estandarte do Sagrado Coração de Jesus, que palpitou na cruz também por estas pobres almas, o nosso grito de guerra até ao último alento será este: Nigrícia ou morte.


[3413]
Ontem, a solene função celebrada segundo as normas da minha circular do dia 1 do passado mês de Agosto foi precedida do solene baptismo de 12 adultos e seguida da confirmação de vinte e cinco neófitos desta nascente missão de El-Obeid.


[3414]
No intuito de dar a V. Em.a uma sucinta ideia da situação religiosa dos comerciantes católicos do vicariato, mando-lhe uma cópia da minha circular de 10 de Agosto passado (que produziu óptimos efeitos), na qual se assinalam brevemente as principais desordens que actualmente predominam entre os nossos cristãos. Há uma outra desordem sobre a qual não considero oportuno prescrever agora nenhuma norma, depois das prescrições da S. Penitenciária, mas sobre que me reservo para mais tarde: é a usura. Aqui todos os cristãos emprestam e pedem emprestado dinheiro a 5, 10, 15 por cento ao mês e até mais: 60, 120, 180 e até 200 por cento. Nalgumas ocasiões, nós procurámos impedir, não sem fruto, esta usura extraordinariamente judaica, que se pretende justificar sobretudo com o frequente perigo de perder todo o capital; procura-se assim o excesso de lucro, com juros que às vezes atingem a soma de cem, duzentos e até trezentos por cento ao ano. Sobre isto não tomei qualquer medida definitiva.


[3415]
O que tomei, isso sim, foi uma medida importantíssima dirigida especialmente aos cristãos que cooperam no comércio e no tráfico de negros fornecendo fuzis, pólvora, dinheiro e com mil formas de ajuda. Embora de momento seja absolutamente impossível destruir esta enorme calamidade na África Central, a influência real da missão católica e as prudentes e bem ponderadas medidas que estou a tomar com o Governo local e com a autoridade consular austro-húngara contribuirão poderosamente para enxugar muitas lágrimas e ferir o infame tráfico de escravos, em prol da humanidade e da Igreja Católica.


[3416]
A escravatura e o comércio de escravos estão por aqui em pleno vigor, apesar dos tratados da pretendida abolição e das fingidas ordens de Sua Alteza o quedive aos governadores do Sudão. Várias vezes ao mês partem de Cartum e de El-Obeid várias centenas de jilabas (traficantes de escravos), que armados não já de lanças como nos anos passados, mas de faiscantes fuzis, invenção moderna, de gatilho à Chassepot, internam-se nas tribos e dão caça aos pacíficos negros nos seus povoados; e, depois de terem morto todos os que lhes oferecem resistência, reúnem os rapazes e raparigas, as grávidas, as jovens mães com seus filhos e famílias inteiras; levam-nos a todos nus, a pé, por árduos e duros caminhos, para El-Obeid ou Cartum ou até através da selva e do deserto conduzem-nos para a Núbia, para o Egipto ou para o mar Vermelho, para os venderem ou explorarem na prostituição.


[3417]
Eu tenho na missão rapazes e raparigas roubados há menos de um mês, a quem mataram, diante dos seus olhos, o pai, a mãe, o tio, no momento em que foram raptados. Faz agora um mês, partiram de El-Obeid mais de dois mil jilabas, com magníficos fuzis, que foram massacrar os habitantes de uma montanha chamada Dajo, habitada por mais de catorze mil negros. Segundo notícias que recebi recentemente, parece que mataram os chefes e fizeram escravos os sobreviventes. Até à altura da minha chegada ao Cordofão, o governo local recebia uma taxa por cada escravo. O anterior paxá de Cartum veio há dois anos ao Cordofão e com vários milhares de soldados armados de fuzis e dois canhões foi à terra dos Nuba caçar negros. Capturou 9400 e matou muitíssimos. Porém, ao Governo do Cairo não declarou mais de 1800 e o produto dos 7600 restantes foi repartido entre ele, os seus oficiais, o médico Giorgi, que estudou em Pisa, e alguns escrivães.


[3418]
Com frequência os governadores do Sudão recebem ordens do Divã do Cairo para arranjarem e enviarem para o Egipto tantas centenas de belas abissínias, tantas centenas de fortes dincas, tantas centenas de negros bem gordos para os fazerem eunucos, etc., e isto para satisfazer as petições e desejos de altos funcionários do Cairo, de Alexandria, etc., ou para prendas que têm que fazer. Por hoje limito-me a expor só isto, porque enviarei a V. Em.a o trabalho sobre a actual escravidão que, por ordem minha, realizou o P.e Carcereri, depois de o termos revisto e verificado a sua veracidade sob todos os aspectos. Como viajam e como são tratados estes pobres escravos?


[3419]
Só responderei com o que viram os meus olhos no trajecto de Cartum a El-Obeid, em que encontrei mais de mil escravas dos dois aos trinta anos, completamente nuas e mais de quinhentos varões também nus, misturados com as mulheres. Eles e elas caminhavam todos a pé, empurrados pelas lanças daqueles malandros, com excepção de alguns meninos que iam a cavalo. As jovens mães que levavam o seu bebé e os meninos e meninas de seis ou sete anos, iam a pé desamarrados. Mas os rapazes e raparigas dos sete ou oito aos vinte anos caminhavam em grupos de quatro, seis, dez, atados juntos varões e mulheres, para não escaparem. Alguns e algumas iam amarrados com uma corda cujo extremo ia ligado a uma soga larga, que era agarrada por um daqueles tratantes. Havia outros grupos também de ambos os sexos, em que cada indivíduo estava atado separadamente a uma larga viga, a qual assentava no seu ombro e cujo peso era suportado e levado por todo o grupo de escravos.


[3420]
Uns tinham as mãos atadas atrás com cordas, outros levavam nos pés cadeias de ferro e outros, enfim, estavam sujeitos à scheva, que é um madeiro de três ou quatro metros de comprimento e que tem num dos extremos duas peças de madeira que, unidas com cavilhas de madeira ou de ferro, se fecham sobre o pescoço do escravo, o qual, ao caminhar, vai arrastando a scheva somente com a força do pescoço. E em tais condições, esses escravos e escravas, absolutamente nus, viajam toda a noite e parte do dia. Sinal de que alguns não conseguiam suportar tantas fadigas e morriam durante a viagem eram os cadáveres recentes que encontrei pelo caminho.


[3421]
Este quadro não dá mais que uma apagada ideia da realidade dos horrores da escravidão e do tráfico de escravos que actualmente tem lugar no vicariato. Por agora não acrescento mais nada, a não ser que confio que a protecção do Sagrado Coração de Jesus consolide a santa, humanitária e importantíssima obra deste vicariato apostólico e, a pouco e pouco, dê um golpe terrível, senão mortal, ao tráfico de negros e ao Islamismo no Sudão. Espero-o do Sagrado Coração.

Beija-lhe a sagrada púrpura o seu hum. e dev.mo filho



P.e Daniel Comboni

Pró-vigário ap.






525
Jean François des Garets
0
El-Obeid
24. 9.1873

N.o 525 (495) - A M. JEAN FRANÇOIS DES GARETS

APFL, Afrique Centrale, 11

J. M. J.

El-Obeid, capital do Cordofão

24 de Setembro de 1873



Senhor presidente,


 

[3422]
Com o coração cheio de emoção e de reconhecimento, acabo de receber a sua gentil carta de 12 de Junho, em que me informa de que essa divina Obra da Propagação da Fé concedeu ao meu vicariato a ordem de pagamento no valor de 49 991 francos. Ainda que a minha caneta seja incapaz de exprimir tudo o que os meus caros missionários e eu sentimos por si, senhor presidente, e por todos os membros dos conselhos centrais, que votaram por uma ajuda tão considerável em favor desta imensa missão, posso assegurar-lhe que, destas ardentes terras, os nossos corações imploram continuamente de Deus as bênçãos celestiais para os dois veneráveis presidentes, para os membros dos Conselhos e para os sócios do mundo inteiro da Propagação da Fé.


[3423]
Pode o senhor compreender o imenso fruto que a sua grande caridade produziu já, de modo que o vicariato mais vasto do universo ressuscitou e agora trabalha-se, as coisas funcionam e floresce a missão mais povoada, mais laboriosa, mais difícil e mais temível que existe no mundo.


[3424]
Apresso-me a preparar-lhe a informação anual sobre este vicariato; mas é impossível que a receba para o primeiro de Dezembro, apesar de o comboio do Egipto chegar agora até perto de Siut, no Alto Egipto. Não Ihe poderei dar uma informação completa, porque não terminei a visita pastoral. Devo visitar a parte oriental da Núbia até Suakin, no mar Vermelho, que está sob a minha jurisdição e que dista da minha residência presidencial de Cartum mais de um mês; igualmente devo visitar os Bari, que habitam numa região a 4° de latitude Norte, perto das nascentes do Nilo, a mais de um mês de Cartum. No entanto estou certo de que, pelo pequeno relatório que receberá, poderá ver bem o imenso fruto que produziu a admirável obra a que o senhor admiravelmente preside, consolidando e perpetuando a missão da África Central, que contém a décima parte de todo o género humano.


[3425]
No presente, todos os meus esforços são dedicados a estabelecer bem e consolidar as missões principais do vicariato, que se estende desde o trópico do Câncer, de Schellal até aos 12° da latitude Sul e que tem por limite o mar Vermelho, Abissinia, o vicariato dos Gallas e a prefeitura de Zanguebar. A missão de El-Obeid, que constitui a porta da Nigrícia interior, é a base de operações para difundir a fé católica até à parte central do vicariato. De facto, desta capital chega-se em quatro dias ao reino de Darfur e em catorze à residência do sultão. A partir daqui, em três dias, entra-se no extenso território dos Nuba, que são todos pagãos e, num mês de viagem, alcança-se o vasto império de Bomu, onde fica o grande lago Chade, etc.


[3426]
Estou convencido de que nos veio de Deus a inspiração de estabelecer uma missão no Cordofão. O ano passado, quando os meus exploradores chegaram a El-Obeid, não havia nem uma cruz, nem sinal de Cristianismo. No Cordofão, nunca tinha penetrado o Evangelho de Jesus Cristo. Nunca se tinha celebrado a santa missa. Hoje há uma próspera missão nascente nesta cidade de El-Obeid, que tem mais de cem mil habitantes e é o centro e a base de operações de todas as missões que Deus nos conceder que fundemos na África interior. Isto é o que produziu a Propagação da Fé.


[3427]
No dia 14 de Setembro, fiz a consagração solene do vicariato ao Sagrado Coração de Jesus, com a maior satisfação por parte do nosso Santo Padre Pio IX, que nos concedeu por escrito uma indulgência papal.


[3428]
Quando voltar a Cartum no próximo Novembro, escrever-lhe-ei sobre o horrível comércio de escravos de negros e o tráfico de escravos. Os jornais falaram muito sobre a supressão da escravidão, realizada por Sir Samuel Baker, etc.; sobre a conquista que o exército do quedive levou a cabo desde o território compreendido entre o Nilo Branco e o equador e sobre os caminhos livres desde as nascentes do Nilo até Zanzibar. É completamente falso, não há nada de verdade em tudo isso. O que poderá suprimir o tráfico de negros será a pregação do Evangelho e a fundação das missões católicas.


[3429]
Permita-me, sr. presidente, agradecer-lhe de novo pela imensa caridade mostrada para com este vicariato e para comigo em Lião a última vez que tive a honra de o ver. Os nossos trabalhos, as nossas fadigas, os nossos sofrimentos, o terrível clima, as privações, tudo isso se torna muito suave sabendo que a Propagação da Fé, com as suas ajudas, está em condições de fazer que tenha eficácia e seja frutífero para o apostolado da África Central. Digne-se apresentar os meus respeitos a todos os membros do Conselho e à sua piedosa família, enquanto me honro de me declarar nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria



Seu dev.mo servidor

P.e Daniel Comboni

Pró-vig. apostólico da A. C.

Original francês

Tradução do italiano






526
Card. Alexandre Barnabó
0
El-Obeid
12.10.1873

N.o 526 (496) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SOCG, v. 1003, ff. 752-754

J. M. J.

El-Obeld, capital do Cordofão

12 de Outubro de 1873

Em.° e Rev.mo Príncipe,


 

[3430]
Chegou-me a sua venerada carta de 29 de Junho, que foi motivo de imenso conforto para mim, porque nela vejo claramente a vontade, os sentimentos e os desejos de V. Ema. rev.ma sobre algumas coisas concernentes à minha dificultosa tarefa, os quais, com a ajuda de Deus, serão sempre a base da minha actuação. Além disso, agradeço-lhe infinitamente as suas paternais recomendações, que recebo de todo o coração como se fossem do próprio Deus, relativas ao proceder com muita cautela e prudência, à contracção de dívidas, etc.


[3431]
Na minha árdua e espinhosa posição, a prudência é mais necessária que nenhuma outra coisa, uma vez que tenho que tratar com as raposas mais astutas e os maiores tratantes do mundo. Se Deus me ajudar como até agora a ter sob controlo estes paxás, governadores e negociantes, em beneficio da fé, e se puder continuar a manter a missão na digna posição em que agora se encontra, talvez a Igreja Católica consiga obter, pouco a pouco, a abolição real do infame comércio de negros e fazer o que as grandes potências da Europa não puderam com os seus tratados e o seu dinheiro.


[3432]
Por isto e por muitas outras circunstâncias do meu difícil ministério, é necessária uma grande cautela. Eu farei todo o possível para não incorrer em erros garrafais e com a assistência dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria e da prodigiosa sabedoria da S. C. da Propaganda, espero consegui-lo; porque nunca empreenderei nada relevante sem consultar a S. C., cuja perspicácia, prudência e experiência incomparáveis, para além do sopro do Espírito Santo, superam em muito as modestas luzes de qualquer chefe da missão. Quanto às dívidas, desde há uns anos que me causam tanto medo e calafrios, que espero não vir a contraí-las: foi para mim uma grande lição o caso das veneradas personagens P.e Nicolau Mazza, meu antigo superior, e mons. Brunoni, agora patriarca de Antioquia, i. p. i., o primeiro dos quais deixou os seus sucessores carregados com uma dívida de duzentas mil liras e o segundo legou ao vicariato de Constantinopla a pouco grata herança de mais de um milhão em dívidas.


[3433]
Graças ao Senhor e ao meu querido ecónomo S. José, em seis anos, desde que comecei a redenção da Nigrícia, entre dificuldades de todo o género e numas condições económicas do mundo excepcionalmente críticas, a Providência pôs-me nas mãos mais de cem mil escudos romanos e encontro-­me em óptimas relações com todas as sociedades católicas e com benfeitores altos e principescos em suas pessoas e a eficaz generosidade com que continuam a favorecer-me; pelo que não só deixei a obra de Verona sem um centavo de dívida, mas provida até de um fundo para eventuais necessidades extraordinárias, como também, para além disso, libertei o meu vicariato da África Central das dívidas que nele encontrei e vou-o dotando de úteis aquisições de casas e terrenos. Assim, sem dever nem um tostão, encontro-me agora na posse de um bom fundo de caixa para poder avançar e operar segundo os santíssimos fins do apostolado que me confiou a Santa Sé, como V. Ema. poderá ver pelo relatório sobre a missão, que não tardarei muito a enviar-lhe da minha residência principal de Cartum.


[3434]
Em todo o caso, embora tenha tido estas bênçãos de S. José (que foi, é e será sempre o rei dos cumpridores e um administrador e ecónomo de muito juízo e também de bom coração), eh, não deixe V. Ema. de me chamar de vez em quando à atenção, nem de me confortar e iluminar com toda a sorte de admoestações, advertências e exortações, que são sempre muito sábias e saudáveis e sem nunca poupar as reprimendas, nem o argue e o increpa do Apóstolo por ser este um grande meio para cometer menos desatinos e caminhar rectamente conforme o espírito de Deus.


[3435]
Agora que V. Ema. Rev.ma com a sua carta acima mencionada me autoriza a favorecer de muitas maneiras a actividade de S. E. ilma. Sir Bartle Frère, embaixador da Inglaterra, fá-lo-ei de seguida e também no futuro. Não obstante, como o horizonte actual da Europa é menos sombrio que no passado, parece-me útil não deixar de efectuar certas sondagens e pôr-me em contacto imediato com alguns altos funcionários de sentimentos católicos que conheço nos gabinetes de França e de Viena, para ver se posso tirar partido das duas potências católicas e especialmente da França, em favor da real abolição do tráfico de escravos, no meu desejo de evitar, por agora, o recurso aos cônsules-gerais do Egipto, que na sua totalidade estão comprados pelo quedive. O que farei, depois de ter submetido tudo ao sapientíssimo juízo da S. Congregação e isto por meio de cartas que Ihe entregará no próximo mês de Março em Roma o meu vigário-geral Carcereri, que irá ai tratar não só de assuntos privados com o seu rev.mo geral, mas, além disso, por encargo meu, submeter importantes questões a V. Ema. Rev.ma, a respeito da escravidão e da utilidade prática da árdua e espinhosa missão do meu imenso vicariato.


[3436]
Com a minha carta n.° 7 de 25 de Julho passado, eu notificava-lhe que um dos grandes chefes das tribos dos Nuba, que habitam no Sudoeste do Cordofão, tinha vindo a El-Obeid e, com o seu numeroso séquito, se tinha apresentado perante mim na manhã de quarta-feira de 16 de Julho, dia da Virgem do Monte Carmelo, no momento em que nós acabávamos de sair da hora de adoração do Ss.mo Sacramento, que eu estabeleci se realizasse em todas as quartas-feiras pro conversione Nigritiae em todas as minhas casas do Egipto e da África Central. Esse chefe tinha vindo para me convidar a erigir uma igreja ou seja uma missão entre o seu povo, que em parte é tributário do Governo egípcio e em parte completamente independente. Eu, para andar com pés de chumbo, depois de o ter tratado muito bem a ele e a todos os seus, convidei-o a regressar em Setembro a El-Obeid, no intuito de, entretanto, obter exactas informações, começar com a língua dos Nuba e tentar saber o pensar, os enredos e o apoio do Governo do Cordofão, o qual (como fazem o paxá de Cartum e o de Fazogl) tempos atrás enviou para o meio dos Teggala e dos Nuba muftis e sacerdotes muçulmanos a pregarem o Alcorão.


[3437]
Pois bem, o chefe dos Nuba não pôde vir a El-Obeid pessoalmente em Setembro; mas mandou em seu lugar o cojur dos Nuba, ou seja, o grande mago, dito em língua Nuba oeck, que é, simultaneamente, sacerdote, médico e mago e tem mais autoridade que os próprios chefes. Acompanhado de 12 ou 15 nuba entrou na missão na quarta, pela manhã, quando saíamos da igreja, depois da costumada hora de adoração ao Ss.mo pro conversione Nigritiae, no dia 24 de Setembro, dia dedicado à Virgem das Mercês. Depois de três horas de conversação comigo, após ver a nossa igreja, a oficina dos artesãos, as ferramentas de carpinteiro, sapateiro, serralheiro e agricultor, bem como as fotografias, após escutar o som do acordeão e do harmónio, por mim tocados na igreja, o canto e as palavras dos alunos, alguns dos quais são nuba, recentemente arrebatados e roubados das suas terras, o grande mago com o seu séquito ficou estupefacto e cheio de admiração.


[3438]
Impressionaram-no sobretudo a bela imagem de Nossa Senhora, a fotografia e a atitude dos nossos alunos nuba; pelo que me rogou calorosamente que estabelecesse uma missão entre a sua gente e que não tardássemos em ir lá, onde seríamos recebidos como seus pais e irmãos. Permaneceu em El-Obeid cinco dias, em cada um dos quais esteve várias horas connosco e no último dia falou-me com franqueza deste modo: «Ainda que o chefe e o seu séquito ao seu regresso de El-Obeid há dois meses me tenham contado maravilhas de ti e do teu “serraye” (estabelecimento), não acreditei nele e confesso que te vim ver com não muito boa disposição.


[3439]
Mas agora que estes olhos viram e estes ouvidos ouviram, acredito em tudo e, por isso, sou o primeiro a rogar-te que venhas à nossa terra para nos ensinares a nós e a nossos filhos a rezar, porque sabemos que há um Deus, que é Deus, mas não sabemos rezar-lhe, porque ninguém nos ensinou.» Não quero alargar-me neste escrito, já demasiado extenso, com as interessantíssimas coisas que aconteceram nas longas e variadas conversas que houve entre ele e mim nos dias em que veio visitar-nos este excelente cojur dos Nuba, o qual deixou em El-Obeid alguns dos seus para esperarem pelos missionários e os levarem ao seu país.


[3440]
Só Ihe acrescento que, por muitos dados, me parece ser vontade de Deus que tomemos em séria consideração o apostolado entre os Nuba, depois de tantos séculos de trevas e de morte. Pelo que, confiando o assunto ao dulcíssimo Coração de Jesus, já dono absoluto por modo especial do vicariato, decidi empreender uma atenta exploração das terras dos Nuba mais vizinhas e depois submeter uma informação exacta destas novas tribos à S. C., para que decida sobre o nosso primeiro passo fora da órbita das possessões muçulmanas, em regiões livres e independentes, como são a maior parte das terras dos Nuba. Assim pois, após ter examinado tudo, decidi chamar de Cartum o meu valoroso vigário-geral, o qual se encontra já connosco em El-Obeid; e estamos a fazer os preparativos para esta nova exploração, para a qual partirá, dentro de poucos dias, o dito vigário-geral P.e Carcereri à frente de um grupo formado por outro missionário e sete ou oito indivíduos mais. Creio que chegou o tempo da redenção da Nigrícia.


[3441]
Estou cheio de cruzes; mas o remédio está escondido no Sagrado Coração de Jesus, que, além de querer salvos o Papa e a Igreja, salvará, sem dúvida, a infeliz Nigrícia.

Digne-se V. Ema. abençoar aquele que cheio de veneração lhe beija a sagrada púrpura e que, com todo o respeito, se honra de se declarar de V. Eminência



Hum., dev.mo e obed.mo filho

P.e Daniel Comboni,

Pró-vig. ap. da A. Central






527
Card. Alexandre Barnabó
0
El-Obeid
20.10.1873

N.o 527 (497) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SOCG, v. 1003, ff. 756-759

N.°11 J. M. J.

El-Obeid, capital do Cordofão

20 de Outubro de 1873

Em.° e Rev.mo Príncipe,


 

[3442]
Às três da tarde do dia dezasseis do corrente partiu de El-Obeid o grupo de exploradores com destino ao país dos Nuba, importante povo negro, em grande parte idólatra, que habita o Sudoeste do Cordofão. Essa terra, pelo que ouvi dizer ao grande chefe e ao cojur ou grande mago, tem um clima muito saudável e centenas de montanhas, algumas das quais são tributárias do Cordofão e, portanto, do Egipto, porém, na sua maioria são independentes e livres. Uma imensa planície que divide o Cordofão do império de Darfur e que se prolonga para sudeste, separa o Cordofão do território Nuba e é habitada por nómadas Bagara Omar tributários do Egipto, os quais são assassinos e ladrões consumados, professam um maometanismo rígido e exercem (talvez por conta do Governo) o ofício de jilabas, ou seja, o de carniceiros de seres humanos e traficantes de escravos.


[3443]
Como o grande chefe destes Bagara esteve aqui em El-Obeid há vinte dias para falar com o paxá, pude pôr-me em contacto com ele e entabular uma relação de amizade. Tendo-lhe feito perguntas sobre os Nuba e dito que eu tencionava fazer uma viagem talvez àquelas regiões ou mandaria algum dos meus missionários, ofereceu-se para me dar uma escolta de duzentos homens e para ele mesmo me conduzir lá, assegurando-me que a sua cabeça e a sua barba responderiam pela nossa vida. Ofereci-lhe roupa usada, um martelo e medicamentos e disse-lhe que no momento oportuno aproveitaria a sua bondosa oferta. Tomei informações exactas sobre o grande chefe dos Bagara e sobre os Nuba inquirindo várias pessoas, mas especialmente o sultão Hussein, que é o descendente dos sultões do Cordofão, que mandavam neste reino antes de ser ocupado pelo Govemo egípcio, o qual desfruta de uma pensão vitalícia do Governo usurpador e tem oficialmente o titulo de sultão.


[3444]
Este, que é nosso amigo e um autêntico cavalheiro, ofereceu-nos aqui um terreno, um pouco longe de nós, destinado a ser cemitério católico. É a pessoa mais bem informada sobre as tribos dos negros que há à volta do Cordofão até à distância de mais de um mês de viagem. Igualmente o grande paxá foi muito cortês comigo e ofereceu-me tudo o que eu desejasse: soldados, armas, munições, cavalos, camelos, etc. Porém, o apóstolo de Cristo deve ir de outro modo, segundo os santos ditames do Evangelho; e, embora deva tomar todas as medidas exigidas pela prudência e uma sábia cautela, em geral a Divina Providência é que deve ser o seu guia.


[3445]
Quando lhe anunciei que mais de duzentos homens podiam estar à sua disposição, o meu valoroso vigário-geral, o P.e Carcereri, a quem eu tinha destinado a chefia da ideada expedição exploratória, negou-se rotunda-mente: queria ir até aos Nuba sine sacco et sine pera, deixando tudo nas mãos de Deus. Mas obriguei-o, com total satisfação final de sua parte, a partir bem provido: 1.°, de uma carta especial de recomendação do paxá para o grande chefe dos Bagara, em que Sua Ex.cia Ihe ordenava que tratasse os missionários como à sua própria pessoa; 2.°, de uma carta de recomendação do paxá e do mencionado sultão para todos os chefes dos países por onde tinha que passar a nossa caravana, ordenando que lhes proporcionassem alojamento, comida, provisões, etc.; 3.°, de um guia do Governo, nativo e conhecedor daqueles territórios; 4.°, de um dos escrivães do paxá, que é amigo nosso, copta cismático, velho e conhecido até na montanha Nuba de Delen, de onde teve duas esposas e que me disse que se deixaria matar pela religião cristã.


[3446]
Rejeitei soldados, camelos e outras coisas que me ofereceu o paxá e, depois de um tríduo ao S. Coração de Jesus, Pai da missão, e outro a S. Judas Tadeu, partiu o P.e Carcereri à frente da expedição, na qual iam outro padre, um excelente leigo alemão que em 1868 esteve comigo no Nilo Branco, dois criados e mais cinco ou seis pessoas. A exploração durará quinze dias; e, quando voltar, o P.e Carcereri seguirá para Roma, como lhe escrevi. Pela minha parte, obtida uma exacta referência da exploração e tudo bem ponderado, redigirei um breve mas substancioso documento sobre o estabelecimento de uma missão entre os Nuba, submetê-lo-ei a S. Ema. Rev.ma e levarei a cabo o que a S. C. me mandar fazer, ela que é encarregada por Deus de governar e dirigir todas as missões do mundo.


[3447]
O meu principal empenho actual continua a ser consolidar bem e perpetuar as duas principais missões de Cartum e El-Obeid. Cartum é a base das operações para estender, pouco a pouco, o nosso apostolado para a parte oriental do vicariato até para lá do equador e das nascentes do Nilo, espaço em que há centenas de tribos e muitos milhões de idólatras; El-Obeid é a base de operações para difundir paulatinamente o Evangelho na parte central do vicariato, na qual se encontram imensas tribos, reinos e impérios e, certamente, mais de cinquenta milhões de infiéis.


[3448]
Até agora, graças aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, a missão vai andado como é devido; e no que diz respeito ao exterior, gozo de plena influência sobre todos os governadores do Sudão, os quais me concederam até ao presente tudo quanto pedi: correio gratuito (em El-Obeid não há nenhum cônsul, mas quero escrever ao imperador da Áustria para o estabelecimento de um consulado no Cordofão, por este ser utilíssimo no caso de os hossanna do Governo se tornarem no futuro em crucifige, para o que há que estar sempre preparados, porque esta é eminentemente uma obra de Deus), terrenos, protecção, etc.


[3449]
Até ao momento, todos os escravos cuja libertação pedi, todos, sem excepção, foram postos em liberdade; todos os que fugiram para a missão e aqueles para os quais pedi a carta de liberdade e a permissão de permanecer connosco foram-me concedidos na sua totalidade. Até em certas coisas do seu governo este paxá solicita a minha opinião. Porém, como amanhã pode acontecer que venham novos governadores que actuam de outro modo, tomo desde agora as minhas precauções e trato de conseguir dos actuais paxás grandes favores e concessões para poder fazer valer como direitos perante os futuros governadores; e ao mesmo tempo tenho o ânimo preparado para qualquer turbulência e perseguição, que serão inevitáveis, sobretudo quando chegar o momento - que chegará - em que a missão der o golpe mortal no comércio de escravos. Portanto, nós tudo esperamos do Sagrado Coração de Jesus.


[3450]
Ainda que as minhas actuais preocupações sejam preparar os materiais e as pessoas, as armas e os arneses para, a seu tempo, assaltar a formidável fortaleza da Nigrícia e, portanto, ando ocupado em estabelecer devidamente as paróquias, as casas, as escolas, os institutos e em pôr em prática sábios e oportunos regulamentos, etc., para afiar bem as armas e fazer com que cada casa e cada indivíduo da missão possua todos os conhecimentos, qualidades e virtudes, mediante os quais possa ser ou tornar-­se óptimo instrumento, soldado e operário de Cristo; contudo, não deixo de estudar cuidadosamente o povo do meu vicariato, isto é, as almas, a natureza e índole destas gentes, a fim de escolher, depois, os meios adequados para os conduzir à fé.


[3451]
Vou dar-lhe aqui uma brevíssima notícia sobre os coptas cismáticos que há no vicariato, os quais são objecto de diligente atenção da minha parte, porque quero completar os estudos que realizei tempos atrás no Egipto sobre a Igreja Copta herética, a qual, em minha opinião, pode constituir uma parcela importantíssima no apostolado do Oriente, enquanto as actuais disposições em favor do mesmo, adoptadas sensata e prudentemente pela Santa Sé, me parecem todavia muito limitadas e débeis. Os coptas heréticos, como bem sabe V. Ema. Rev.ma, alcançam no Egipto um número que oscila entre os 250 000 e os 300 000. Na Abissínia são mais de um milhão, talvez dois milhões. No meu vicariato há alguns milhares deles, com sede episcopal em Cartum e com algumas paróquias em Cartum, Dôngola e El-Obeid e pequenas capelas em Berber, Taqa, Suakin, etc. Agora a Igreja Copta herética ou Eutiquiana está limitada às seguintes sedes, a cuja frente se encontram como pastores os indivíduos enumerados com elas:


[3452]
1.° Sede patriarcal de Alexandria, com residência no Cairo. O patriarca vacat.

2.° Sede episcopal de Alexandria: o bispo é um tal Morgos ou Marcos.

3.° Sede episcopal de Jerusalém: O bispo, Basilius, que reside no Cairo, forma parte da cúria patriarcal eutiquiana e, todos os anos, acompanha os peregrinos coptas cismáticos a Jerusalém.

4.° Sede episcopal do Cairo. O bispo Botros, ou Pedro, pertence também à cúria patriarcal do Cairo.

5.° Sede episcopal de Monutieh, perto de Tantah, entre o Cairo e Alexandria. O bispo é Joannes.

6.° Sede episcopal de Fayum, a antiga Arsinoe ou Crocodinópolis. O bispo é Issac.

7.° Sede episcopal de Minieh, a antiga Cinópolis. O bispo é Thomas.


[3453]
8.° Sede episcopal de Montallut, perto de um grande mosteiro com numerosíssimos monges. O bispo é Jussah, ou José.

9.° Sede episcopal de Sánaboh, entre Melaui e Siut. O bispo é Theófilos.

10.° Sede episcopal de Siat, a antiga Licópolis, capital do Alto Egipto. O bispo é Macarius.

11.° Sede episcopal de Abutig, a Abutis dos romanos. O bispo é Atanasius.

12.° Sede episcopal de Akmim, a antiga Panópolis, construída – diz-se­ – por Cam, filho de Noé, mas segundo quase todos os eruditos, fundada ou engrandecida por Misraim, ou Egipto, filho de Cam. O bispo é Jussah, ou José, que dispõe de numerosos sacerdotes. A uma hora daí está o povo de Hamas, onde nasceu o excelente mons. Bsciai, o bispo copta actual.

13.° Sede episcopal de Guss, ou Coptas, a antiga Justinianópolis, não longe da antiga Tebas. O bispo é Abraham.

14.° Sede episcopal de Negadeh, a antiga Maximianópolis. Vacante desde há muitos anos, fica sob a jurisdição do bispo de Guss.

15.° Sede episcopal de Gondar, na Abissínia. O bispo é Atanasius, que habitualmente reside em Adua, tal como o Negus ou rei.

16.° Sede episcopal de Esneh, a antiga Latópolis. O bispo é Mattha ou Mateus, que desde há uns meses fixou a sua residência em Luxor, que é a antiga Tebas.

17.° Sede episcopal de Cartum, na África Central, fundada em 1840. O novo bispo ainda não foi nomeado, porque, como dizem os coptas, hoje não há patriarca e só a este compete nomear e sagrar os bispos. Porém, esta razão não é válida, porque Mateus, o bispo de Esneh, foi nomeado e sagrado no corrente ano de 1873.


[3454]
Quando eu tiver estudado bem a maneira prática de tentar a conversão dos coptas cismáticos do meu vicariato, o que se tornará difícil, dada a enorme corrupção em que vivem, em regiões tão longínquas e quentes (coisa de que sem dúvida me ocuparei quando tiver tempo, na esperança de corrigir algum), escrever-lhe-ei expressamente sobre isso. Entretanto, não me parece oportuno assinalar-lhe uma coisa que certamente saberá: desde há quase quatro anos a sede patriarcal eutiquiana está vacante, e tal continuará talvez por muitos anos, ou seja, durante a vida do actual quedive do Egipto, o qual proibiu de modo absoluto que se eleja um novo patriarca.


[3455]
A razão disso radica no facto de um alto funcionário do grande Divã do Cairo - o qual, dizem, é copta cismático - por privada animosidade contra um bispo, que se presumia ser aspirante à sede patriarcal, insuflou à mãe do quedive, muitíssimo supersticiosa, a ideia de que o seu filho morreria sob o governo do novo patriarca eutiquiano. Dai que a mãe implorasse a Sua Alteza que impedisse a todo o custo a eleição do novo patriarca e que o quedive, muito devoto de sua mãe e também supersticioso, o cumprisse à letra; decisão a que os eutiquianos se submeteram humildemente, faltos da graça e da inspiração do Espírito Santo, por estarem fora da verdade.


[3456]
Pois bem, a Santa Sé, na sua extraordinária sabedoria e perspicácia, não poderia aproveitar tão longa vacatura da sede patriarcal eutiquiana para tentar a conversão destes hereges, que a poucos erros dogmáticos, mas, sem dúvida, a muitos vícios especialmente respeitantes a concupis-centiam oculorum et carnis, juntam uma fé fora do comum e muitas virtudes relevantes?... Desde há mais de 15 anos, os protestantes, tanto ingleses como americanos, têm feito estragos entre os coptas cismáticos, conseguindo levar muitos milhares deles para o seu campo (exteriormente, entenda-se, e não por convicção): hoje, muitos deles falam inglês e frequentam as escolas americanas e anglicanas no Cairo, Alexandria, Tantah, Fayum e Siut, onde ganharam os mais endinheirados e poderosos. E em Fayum, onde desde há 23 anos está estabelecido um jardim-de-infância católico, contemplei com horror a escola protestante, frequentada por cento e tal jovens cismáticos e católicos.


[3457]
É preciso avisar que os nossos missionários são pobres e os protestantes riquíssimos. Porém, não deixa de ser verdade que, entre os coptas cismáticos, há muitos que poderíamos convertê-los facilmente; no contacto que tive com quase todos os seus bispos, com muitos dos seus sacerdotes e muitíssimos dos seus fiéis, convenci-me disso. A graça está nas mãos de Deus e talvez na Santa Sé não faltem medidas para empreender uma conquista que seria fecunda em maravilhosos resultados no meu vicariato, especialmente na Abissínia, onde um só bispo, de nenhum valor, tem jurisdição sobre um ou talvez dois milhões de almas.


[3458]
Desejo renovar-lhe a humilde súplica que Ihe fiz na minha carta do dia 15 do passado mês de Setembro, sobre a festa do S. Coração de Jesus, que desejaria que o Santo Padre declarasse de preceito com rito duplo de primeira classe, com oitava, em todo o meu vicariato, porque do S. Coração de Jesus espero a conversão dos mais de cem milhões de infiéis que o habitam. O meu antecessor, Inácio Knoblecher, que tinha realizado profundos estudos sobre o vicariato, calculava noventa milhões, como nos dizia a nós, e como se lê na sua biografia, que o doutíssimo Mitterrutzner publicou; porém, então, os geógrafos colocavam os designados montes da Lua, limite meridional do vicariato, a 3° de latitude Norte, enquanto hoje pensam que devem encontra-se 15° mais a Sul, onde, segundo Speke e Grant, há tribos com populações muito numerosas. Portanto, não se está longe da verdade se se calcularem cem milhões de infiéis para o vicariato.


[3459]
O Sagrado Coração de Jesus, que difunde hoje mais que em tempos passados os tesouros das suas graças, ao haver-se incrementado maravilhosamente o seu culto, convertê-los-á a todos.

Aproveito esta oportunidade para Ihe apresentar a homenagem da minha profunda veneração e declarar-me nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria



De V. Ema. Ver.ma, Hum., obed.mo e indig. filho

P.e Daniel Comboni

Pró-vigário apostólico






528
P.e Estanislao Carcereri
1
El-Obeid
29.10.1873
N.o 528 (498) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI

ACR, A, c. 19/31



El-Obeid, 29 de Outubro de 1873



Testemunho em seu favor.





529
Card. Alexandre Barnabó
0
El-Obeid
4.11.1873

N.o 529 (499) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ

AP SOCG, v. 1003, ff. 760-761

J. M. J. N.o12

El-Obeid, capital do Cordofão

4 de Novembro de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,


 

[3460]
Parece que realmente soou a hora da redenção da Nigrícia e que o próprio Deus, em sua infinita misericórdia, dirige por seus amáveis caminhos esta sua obra. Os exploradores que enviei a terras dos Nuba sob a chefia do P.e Carcereri foram acolhidos com o máximo entusiasmo pelo grande chefe e pelo grande mago, bem como pelos habitantes, os quais lhes ofereciam tudo o que desejassem – terrenos, casas e até a residência do chefe – e lhes suplicavam que ficassem com eles para sempre. Estas gentes são completamente idólatras; porém, embora entregues a muitas superstições, nunca quiseram inclinar-se ante o Alcorão. São muito inteligentes, dóceis e capazes de apreciar as vantagens do Catolicismo. O grande chefe, a quem conheci bem aqui em El-Obeid, é um homem sensato e de bom coração e como tal foi reconhecido pelos nossos exploradores.


[3461]
O P.e Carcereri, depois de ter estudado bem estes primeiros povos Nuba, tomou uma decisão sobre o lugar onde seria adequado fundar a primeira missão, que é Uaco, chamado Delen pelos Bagara; fica situado num local ameno e muito saudável, apenas a quatro dias de El-Obeid. Esse é o primeiro ponto completamente idólatra, a partir do qual nos estenderemos a pouco e pouco por todas as regiões da Nigrícia central. Há lá muitas superstições, como disse, e o Demónio recebe tributo. A cruz, porém, irá pô-lo em fuga e o Leão de Judá vencerá: estes povos parecem muito dispostos a abraçar a fé. O P.e Carcereri prometeu ao grande chefe que dentro de pouco estabeleceríamos uma missão católica em Delen ou Uaco e regressou são e salvo a El-Obeid com os demais; e amanhã eu partirei com ele para Cartum, onde espero chegar em quinze dias de viagem a camelo. De lá enviarei a V. Ema. uma relação exacta sobre esta nova empresa dos Nuba, que abre – cremos nós – o caminho certo e seguro para difundir o Evangelho nas terras que constituem a parte central do vicariato.


[3462]
A missão dos Nuba apresenta vantagens muito superiores às de qualquer outra tentativa já levada a cabo pela Igreja na África Central desde a altura da erecção do vicariato até hoje. De facto, as antigas estações de Gondokoro nos 4° de lat. N. e de Santa Cruz nos 7° de lat. N., fundadas pelo meu ilustre antecessor no Nilo Branco, encontravam-se, é certo, em regiões completamente pagãs e mergulhadas na idolatria, mas invadidas desde havia muitos anos por contínuas hordas de muçulmanos e de negociantes europeus e orientais da pior espécie, que acorriam aí, seguindo a cómoda via do Nilo Branco, atraídos pelo comércio do marfim, dos escravos, etc., e que, com o seu mau viver e as sua mais nefandas violências e crueldades, tinham lá infiltrado a peste de todos os vícios. Entre os Nuba, porém, nunca penetrou nenhum europeu, nem o Islamismo pôde ganhar raízes, nem se estabeleceu nunca nenhuma casa de comércio: portanto, estas populações são, por assim dizer, ainda virgens e apresentam vantagens que o vicariato nunca pôde obter até hoje.


[3463]
Isto é uma nova prova de que verdadeiramente foi o Senhor que levou a Santa Sé a aprovar a nova via do Cordofão que nós escolhemos, e a estabelecer El-Obeid como verdadeira porta do interior e como base de operações para ganhar o centro da Nigrícia para a Igreja Católica. Com o que está fora de toda a dúvida que a estabilidade e perpetuidade da missão da África Central se encontra assegurada, tanto pelo clima, que nesta zona é suportável e quase diria muito saudável, como pelo carácter destas populações pagãs, que, por muitos dados, parecem inclinadas para a fé.


[3464]
Glória ao Sacratíssimo Coração de Jesus, que parece querer absolutamente a salvação destas almas.

Digne-se V. Ema. receber a expressão da minha filial devoção e respeito, com os quais tenho a honra de me subscrever nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria





De V. Em.a Rev.ma

Hum, devot.mo e indig.mo filho

P.e Daniel Comboni

Pró-vig. ap. da África Central






530
P.e Estanislao Carcereri
1
El-Obeid
4.11.1873

N.o 530 (500) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI

APCV, 1458/319

El-Obeid, 4 de Novembro de 1873

Testemunho em seu favor.