N.o 811; (772) - A MGR. ESTANISLAU LAVERRIERE
«Les Missions Catholiques», 508 (1879), pp. 97-98
Cartum, 2 de Janeiro de 1879
Carta sobre a carestia.
N.o 812; (773) - AO CARD. JOÃO SIMEONI
AP SC Afr. C., v. 8, ff. 841-884
N.o 1
Cartum, 2 de Janeiro de 1879
Em.o e Rev. mo Príncipe,
Escrevo-lhe poucas linhas, porque estou alquebrado pelas febres, pelas tribulações, pelas fadigas, e com o coração despedaçado. Por adorável lei da Providência, as obras de Deus devem fundar-se e prosperar ao pé do Calvário. A cruz e o martírio são a vida do apostolado nas nações infiéis e certamente só mediante a cruz e o martírio se converterá a África Central à verdadeira fé.
Mas, embora me encontre enfraquecido no corpo, pela graça do Coração de Jesus o meu espírito mantém-se sólido e vigoroso; e estou decidido, como tenho estado desde há trinta anos (desde 1849), a sofrer tudo e dar mil vezes a vida pela redenção da África Central e da Nigrícia.
Como lhe expliquei em parte na minha última carta, a n.o 8 de Outubro passado, uma epidemia tremendamente mortífera assolou a África Central, consequência da espantosa carestia e das abundantíssimas chuvas que sucederam à grande seca de quase vinte meses, e num território do Vicariato (de Cartum este-oeste a sul), tão grande como duas ou três vezes a França, morreu mais de metade da população. Além disso, se na cidade de Cartum, onde há médicos e medicamentos, morreu uma terça parte dos habitantes, em algumas localidades e regiões que eu visitei, não só pereceu a população inteira, mas também todos os gados e até os cães, que são a única providencial defesa e segurança nestes países.
De Berber a Cartum visitei com as Irmãs veronesas muitos povoados, para além das cidades de Shendi, Muhammad, etc. Aí encontrei morta mais de metade da população e o resto dela era como esqueletos ambulantes; também vi mulheres cadavéricas, nuas, que se alimentavam à base de erva e de sementes de feno. Eu reparti grão e dinheiro, não sem ter baptizado muitos meninos de ambos os sexos in articulo mortis. Em Agosto, fazendo enormes sacrifícios, comprei em Cartum a um preço exorbitante vinte sacos de farinha de trigo para os mandar às missões do Cordofão e de Gebel Nuba, que há mais de seis meses só vivem de dokhon (espécie de milho) e de uma carne muito fibrosa, etc., quando a podem conseguir. Depois, pus em acção todos os comerciantes que ficaram com vida em Cartum, muitos xeques e mesmo o Governo, a fim de conseguir quinze camelos para o Cordofão. Pois bem, tal coisa foi impossível até hoje e estamos já em Janeiro de 1879, porque os camelos morreram em grande parte e porque também não se encontram cameleiros, que foram vítimas da doença ou da fome.
Mas ainda há mais. Após a morte da superiora do Cordofão em Agosto passado, ficam lá só com três Irmãs, duas das quais pediram à madre geral licença para regressara a Marselha por razões de saúde e já têm as obedienciais desde há mais de três meses. Tendo-lhes eu ordenado que viessem a Cartum, só esperavam os camelos para empreender a viagem; mas, por falta de camelos e cameleiros, hoje ainda continuam no Cordofão. Com a partida da África dessas duas religiosas, restam-me unicamente quatro Irmãs de S. José no Vicariato; pelo que, para atender às urgentes necessidades das importantes missões de Cartum e do reino do Cordofão, e, após consultar a superiora de Cartum, destinei a esta cidade as restantes quatro Irmãs de S. José (em vão supliquei até agora à madre geral que me mandasse outras, de preferência árabes), e destinei ao Cordofão as cinco Irmãs do instituto das Pias Madres da Nigrícia por mim fundado em Verona, que estavam em Berber e que eu trouxe para Cartum há vinte dias com o vapor cedido generosamente por Gordon Paxá, as quais mandarei para o Cordofão, quando dispuser de camelos.
A tremenda epidemia fez também espantosos estragos nas nossas missões. Nos seis anos desde que estou à frente do Vicariato ainda não tinha morrido nenhum sacerdote missionário na África Central, graças ao oportuno sistema do meu Plano. Porém, após a tremenda seca, as chuvas e a mencionada epidemia, morreram-me três sacerdotes, entre eles o meu braço direito na santa obra da África Central, o piedoso e capaz P.e António Squaranti, antigo superior dos meus institutos de Verona, a quem trouxe o ano passado para o Vicariato como administrador-geral dos bens do mesmo, com vontade de o nomear mais adiante meu vigário-geral, se o seu estado de saúde o tivesse permitido.
Eu tinha-o enviado de visita a Berber, sobretudo para o retirar da ameaçadora epidemia, quando dei conta que esta se aproximava depois das chuvas, por ser o primeiro ano que ele estava na África Central. Mas passados quarenta dias de ele estar em Berber, inteirou-se de que em Cartum todos os sacerdotes estavam doentes de febre, de que muitos da missão tinham morrido e de que eu era o único que me mantinha em pé, pelo que há mais de um mês fazia de bispo, pároco, administrador, superior, enfermeiro, etc., etc., saiu de Berber num barco à vela para me vir ajudar e, ao cabo de quinze dias, chegou a Cartum mais morto que vivo, porque nos últimos quatro dias de viagem já fora afectado pela febre e a epidemia. Foram inúteis os nossos cuidados durante doze dias: todo fogo de caridade e totalmente resignado, voou para o eterno descanso, deixando-me numa grande desolação. Para além dos três sacerdotes e das duas Irmãs que faleceram, perdi mais de metade dos irmãos leigos, devotíssimos, de eminentes virtudes e cheios de méritos, que, vítimas da epidemia, partiram para o Paraíso.
Depois destas mortes, o pânico apoderou-se de alguns sacerdotes e leigos da missão, originários das províncias meridionais da Itália. Assim, para além de um sacerdote napolitano e de um leigo de Roma, que de forma inesperada deixaram a missão, sem que nem rogos nem ordens servissem para os dissuadir (não tinham sido educados no meu instituto de Verona: todos os que saíram desse instituto se mantêm fiéis e constantes e estão dispostos a morrer por Cristo sem abandonar o seu posto), outros dois sacerdotes napolitanos e um leigo seu patrício pediram-me para voltar temporariamente à Europa. Em contrapartida, os outros do instituto de Verona e especialmente os superiores do Cordofão e de Gebel Nuba, os leigos veroneses sobreviventes e as cinco Irmãs veronesas das Pias Madres da Nigrícia, longe de desanimar, me encorajam a mim mesmo.
As Irmãs de S. José da Aparição e sobretudo a Irmã árabe Germana Assuad, de Alepo, fizeram prodígios de caridade nessa terrível circunstância, não duvidando em arriscar a própria vida e em sacrificar-se todas por Cristo.
Alquebrado por tantas fadigas e tribulações, finalmente também eu caí doente, de modo que desde há mais de um mês que me atormentam as febres e com muito sofrimento me mantenho em pé.
Não se assuste V. Em.a por estas sinistras notícias da África Central. O apostolado católico sempre foi acompanhado pelos sacrifícios e pelo martírio. À paixão e morte de J. C. seguiu-se a ressurreição. O mesmo sucederá com a África Central. Está-me a vir a febre. Uma bênção do Santo Padre e de V. Em.a para
Seu obed.mo filho
† Daniel Comboni, bispo e vig. ap.
Continua a carestia.
Mas a minha última preocupação são os meios temporais. De tudo se ocupará, estou certo, S. José e basta.
N.o 813; (774) - A JEAN FRANÇOIS DES GARETS
APFL (1879) Afrique Centrale
Cartum, 2 de Janeiro de 1879
Carta sobre a carestia.
N.o 814; (775) - AO CLÉRIGO LUÍS GRIGOLINI
APMR, VI / G3 / 1879
Cartum, 3 de Janeiro de 1879
Breve bilhete.
N.o 815; (1221) - A MONS. JOSÉ MARINONI
AP SC Afr. C., v. 8, ff, 860-863
Cartum, 3 de Janeiro de 1879
Carta sobre a carestia.
N.o 816; (777) - AO CARDEAL JÃO SIMEONI
AP SC Afr. C., v. 8, ff, 860-863
N.o 2
Cartum, 16 de Janeiro de 1879
Em.o e Rev. mo Príncipe,
Desejando ardentemente uma fervorosa bênção do Santo Padre, consolo das minhas aflições, permiti-me aproveitar o primeiro aniversário da sua elevação à Cátedra de S. Pedro para lhe apresentar os meus respeitos, assinalar-lhe as minhas cruzes e implorar a sua apostólica bênção para mim e para o Vicariato. Portanto, suplico da bondade de V. Em.a rev.ma que se digne pôr-me por meio da carta junta aos pés de S. S. e obter-me a desejada bênção.
Recebi com verdadeiro prazer o seu venerado escrito de 29 de Novembro passado, assim como os que foram enviados por meio dos sacerdotes do Colégio de S. Pedro e S. Paulo, em que recomenda, como a todos os vigários apostólicos, que se redija uma concisa mas completa relação sobre a história, progresso e situação dos nossos respectivos vicariatos, a qual terá que ser impressa quando o julgarem oportuno os em.os padres da S. C. para melhor formularem no futuro as suas sapientíssimas deliberações sobre os diversos assuntos respeitantes à missão.
Se tão acertada disposição de zelo e sagacidade de V. Em.a há-de tornar-se útil para todas as missões mais antigas e conhecidas do mundo, para as da África e em especial da África Central e Equatorial é de utilidade e importância sumas, por se tratar das menos conhecidas, das mais árduas e difíceis de todas. Por isso, quando conseguir recobrar forças (pois a febre não deixa de me visitar de dois em dois ou três em três dias) e conseguir tirar um pouco de tempo livre das minhas graves e complicadas ocupações, porei todo o cuidado e esforço em realizar esse importante trabalho, ao qual seguirá outro muito relevante acerca dos lagos Nyanza, sobre os quais me parece que, ao menos até ao momento, não se dispõe na Europa de informação muito exacta e verídica.
Assim terá também a Propaganda, esperando o devido tempo e após bem digeridas e amadurecidas informações dos solícitos missionários de Argel, uma ideia clara e justa das regiões do Vitória Nyanza, onde, espero, poderão estabelecer-se solidamente. E igualmente a terá, depois da minha relação, sobre as importantes regiões do Alberto Nyanza, que dista da antiga estação de Gondokoro, onde eu estive em 1859, só vinte e oito horas de viagem a pé, sobre o lombo de bois, mais um trajecto de rio que agora o vapor de Gordon Paxá percorre em meio dia, enquanto entre o Vitória Nyanza e o Alberto Nyanza há vinte dias e até um mês de muito difícil viagem, que torna ainda mais perigosa a inimizade de dois reis poderosos (o do Uganda, a quem pertence o lago Vitória e o de Unyoro, senhor do lago Alberto), porém, com os quais o meu bom amigo S. E. Emin Bei, a quem recomendei encarecidamente esses bons missionários de Argel, mantém, ao menos por agora, boas relações e amizade.
Sobre os ditos lagos e sobre o enorme território do meu Vicariato – do qual cederei, de muito boa vontade, uma grande parte a esse corpo poderosíssimo e numeroso da magnífica, providencial instituição do muito benemérito e venerável mons. Lavigerie –, eu darei toda a informação que puder, baseado em vastos estudos e dilatada experiência de África.
Quanto aos sacerdotes romanos do Colégio de S. Pedro e de S. Paulo, ordenei que permaneçam ao menos um ano a aclimatar-se e a aprender o árabe no meu estabelecimento do Cairo. As informações que sobre eles recebi do superior de lá são boas, salvo no referente à sua idade, um pouco avançada. Em geral, eu espero que esse colégio me mande muita gente para a África Central; mas gostaria que se tratasse de jovens de 35 anos quando muito, que não tivessem medo nem do calor, nem da morte e que estivessem desejosos de sofrer por Jesus Cristo. Numa palavra, que o amor por Jesus e pelas pobres almas negras fosse superior a todos os afectos da Terra e do universo. Isto mesmo recomendei ao excelente e piedoso reitor desse providencial estabelecimento.
Anteontem, cinco Irmãs do instituto das Pias Madres da Nigrícia, que estavam em Berber, saíram de Cartum numa magnífica embarcação que gratuitamente me cedeu a grande bondade de S. E. Gordon Paxá, governador-geral do Sudão. Navegarão pelo Nilo Branco até Duen, de onde, em camelos que também Gordon Paxá me proporcionou, continuarão até à capital do Cordofão.
As três Irmãs de S. José que estavam aí chegarão nestes dias a Cartum. Duas delas têm a obediência para Marselha, pelo que só ficará em Cartum um total de quatro Irmãs. Espero que a nova madre geral se apresse a mandar-me outras mais.
Como agora não disponho de tempo, em breve, noutra carta, lhe descreverei as novas conversões que se verificaram no Cordofão e em Gebel Nuba: pouco resultado para quem não conhece o que é uma difícil e incipiente missão, mas grande para quem não ignora o que é uma missão na África Central ou Equatorial.
Entretanto, beijando-lhe a sagrada púrpura, declaro-me
De V. Em.a Rev.ma hum.mo, obed.mo, devot.mo filho
† Daniel Conboni
Bispo e vig. ap
N.o 817; (778) - AO CARD. JOÃO SIMEONI
AP SC Afr. C., v. 8, ff. 864-868
N.º 3
Cartum, 23 de Janeiro de 1879
Em.o e Rev. mo Príncipe,
Ainda muito debilitado no físico, porque a febre me visita com frequência e não sou insensível ao peso de tantas cruzes, embora a confiança em Deus seja cada vez mais firme e sólida (porque a cruz constitui a marca das obras de Deus), mesmo assim não quero deixar de informá-lo do que é bom que a S. Congregação saiba.
Cartum é uma das treze sedes episcopais da igreja patriarcal dos coptas heréticos. Quando, há vinte e dois anos, cheguei a Cartum pela primeira vez, conheci aqui o bispo copta herético, que sob o ponto de vista da ciência e da conduta eclesiástica era um burro chapado; e, por mais que nós o convidássemos a entrar na verdadeira Igreja, sempre respondia que a sua era a nossa Igreja e que, se o seu patriarca chegasse a reconciliar-se com o Papa, ele seria o primeiro a segui-lo, contanto que o conservasse na sua dignidade ou lhe desse outra maior.
Falecido este em castigo num convento cismático do Egipto, a sede de Cartum foi deixada vacante durante dezoito anos. Mas quando o patriarca copta herético soube que a Igreja Católica tinha mandado um bispo vigário apostólico para Cartum, apressou-se a nomear titular para a dita sede um monge do Convento de S. Macário. Tendo o novo bispo chegado há uns dias a Cartum, veio visitar-me e entabulámos uma espécie de amizade.
É um homem de uns 58 anos, devoto e bom, que reza sempre. É bastante versado na Sagrada Escritura, embora quanto ao resto seja bastante ignorante. Por outro lado, para os interesses católicos não aquece nem arrefece, porque a nossa missão é a única verdadeira força na África central que é reconhecida como tal pelo Governo local, bem como pelos muçulmanos, pelos pagãos e os hereges de toda a espécie.
Igualmente, como saberá V. Em.a, morreu na Abissínia o bispo copta cismático, o único pastor de mais de um milhão de hereges abissínios que há aí. Mas, dado que a eleição desse bispo depende do patriarca de Alexandria, que reside no Cairo, e do quedive do Egipto, que costuma pagar mil libras esterlinas para a viagem, e como o quedive teve ultimamente uma encarniçada guerra com o rei João da Abissínia, que perdeu, vendo-se a pagar ao rei uma grande soma, declarou ao patriarca copta que de nenhum modo quer enviar aos abissínios o bispo reclamado, porque são seus inimigos. E assim ficou a questão até aos inícios do corrente.
Porém, que fez Sua Excelência Gordon Paxá? Como entre a Abissínia e o Egipto há certas coisas para negociar e se tinha acordado entre os dois soberanos que os representantes do rei João viriam tratá-las a Cadaref, (a oito dias de Cartum, onde em breve estabelecerei uma missão, tendo já regressado a Cartum os meus enviados) com Gordon Paxá em representação do Egipto, há duas semanas que realizou esse encontro em que estiveram presentes os representantes das duas partes; e Gordon Paxá, para facilitar o bom resultado das negociações, comprometeu-se a conseguir do quedive a nomeação do bispo e a fazê-lo acompanhar a suas expensas até à sua sede pela rota de Galabat.
O quedive comunicou para aqui por telégrafo que será nomeado e enviado o bispo.
Por outro lado, o valoroso rei João submeteu ao seu ceptro o rei de Shoa, o país onde está mons. Massaia. Este soberano, Menelik, que há tempo enviou ofertas ao Santo Padre, e protege muito os bons padres capuchinhos e mons. Massaia, continua a ser rei de Shoa, mas tributário e, anualmente, realiza um importante pagamento ao rei João, que é muito valoroso. Agora entre o rei João e o rei Menelik existe a maior amizade. Apesar de tudo isso, Gordon Paxá disse-me que o nosso vigário apostólico mons. Touvier é muito estimado pelo Governo do rei João e que nada perderá.
Não conhecendo muito os assuntos da Igreja, ao pedido que os embaixadores abissínios tinham feito de um bispo, Gordon Paxá replicou:
«Mas não têm o bispo na pessoa de mons. Touvier, homem estimável, etc.?» Então eles responderam (no grupo havia um parente do rei e dois padres abissínios) que o bispo não devia ser mandado pelo Papa, mas que era preciso que o consagrasse e enviasse o patriarca copta de Alexandria.
Como a fome e a mortandade arrebataram muitos braços do trabalho, a carestia prolongar-se-á longo tempo em alguns lugares do meu Vicariato. Porém, isto é o que menos me preocupa, porque conto com o meu administrador-geral S. José. Depois de ter tido um mau administrador durante a minha ausência, a quem já mandei para sua casa, e de me ter morrido o meu santo e bom administrador P.e António Squaranti, eu mesmo faço a administração geral até doze de Maio do corrente ano, em que segundo os pactos com S. José feitos o ano passado no terceiro domingo depois da Páscoa, festa do Patrocínio do meu querido ecónomo S. José, se deve realizar o perfeito equilíbrio na economia, não só do Vicariato, mas também da sua procuradoria geral do Egipto, que está a cargo do superior pro tempore dos meus institutos do Egipto (acontece que existia aí uma dívida de 70 000 francos). Mas neste intervalo, em que eu faço de administrador-geral, estou a adestrar um capaz e excelente sacerdote missionário que tenho aqui comigo em Cartum e a quem, quando as finanças do Vicariato e de toda a obra ficarem totalmente sanadas, de modo que não exista nem sequer um cêntimo de dívida, entregarei a administração geral, que conduzirá sob a minha supervisão. S. José é o rei dos cumpridores e confio total e absolutamente que não falhará.
Sua excelência rev. ma mons. Bianchi, arcebispo de Trani, que sempre foi para mim um verdadeiro amigo, avisou-me confidencialmente, para meu bem, que tendo ido há pouco a Roma apresentar os seus respeitos ao Santo Padre, visitando ao mesmo tempo cardeais e distintas personalidades, ouviu aí dizer que não se aprova minimamente que eu gaste agora grandes somas em construções inúteis.
Para evitar equívocos, declaro aqui a V. Em.a Rev.ma que, desde a minha vinda para a África como bispo e vigário apostólico, até hoje, 23 de Janeiro do corrente ano em que escrevo, nem eu, nem o meu falecido administrador P.e Squaranti gastámos um cêntimo sequer em construções e que aquele que gastou em obras não necessárias mais de dezasseis mil francos em Cartum, apesar da minha absoluta proibição, que lhe foi comunicada de Roma no ano de 1877 em muitas cartas escritas por mim e pelo meu secretário P.e Paulo Rossi, actual superior dos institutos africanos de Verona, a quem uma vez viu V. Em.a, foi aquele que primeiro e durante mais de dois anos conduziu por mim a administração geral e a quem mandei para casa.
Creio oportuno avisar disto V. Em.a, a fim de que, caso ouvisse em Roma o boato de que gasto em construções, possa fazer com que se saiba a pura e autêntica verdade.
Sem dúvida eu farei construções e mesmo importantes, mas só quando forem necessárias para o bem da obra e existirem os fundos necessários, segundo a regra que ensina o Evangelho na passagem daquele que volens turrim aedificare, etc. E além disso S. José estará sempre lá a vigiar.
Beijando-lhe a sagrada púrpura, subscrevo-me com a veneração mais profunda
De V. Em.a Rev.ma hum.mo, devot.mo, obed.mo filho
† Daniel Comboni, bispo de Claudiópolis
Vigário apostólico da África Central
N.o 818; (779) - A MONS. JOSÉ MARINONI
APIME, v. 28, pp. 15-30
Cartum, 23 de Janeiro de 1879 Festa Espons. S. José
Il.mo e rev.mo monsenhor,
Li com grande interesse o prólogo do Piccolo Ambrosiano, calendário milanês para 1878, e agradou-me em todo o rigor da palavra. A história do Osservatore Cattolico, as ideias desenvolvidos nesses magníficos apontamentos, a finalidade pura e genuína das obras dessa publicação, gostei muito de tudo. São as minhas ideias e o meu sentir claro e preciso, mas que eu não saberia expor e desenvolver tão bem. É a expressão do que o sincero católico deve crer e pensar no meio do revolto panorama e da confusão do espírito moderno; é a formulação do recto pensar da rainha de todas as publicações periódicas, a Civiltà Cattolica, revista estupenda e sublime que por si só basta para fazer gloriosa a ordem que com tanta sabedoria a dirige.
E ainda que eu seja assinante de muitas outras revistas (no meu desejo de que os institutos e os numerosos estabelecimentos que eu governo pensem como é preciso hoje em dia, e dou graças a Deus, porque todos pensam correctamente), entre elas a Civiltà Cattolica, a Voce della Verità, a Unità Cattolica, a Libertà Cattolica, etc., etc., etc., sem contar as publicações alemãs, francesas e inglesas, como eu também sou lombardo de nascimento e me interesso pelos assuntos religiosos da Lombardia e pelo que sucede na minha querida pátria, dirijo-me à exímia bondade de V. Em.a para que me faça a assinatura do Osservatore Cattolico e das revistas dessa editorial (menos da Leonardo da Vinci, que já assino), rogando-lhe que o Popolo Cattolico o envie ao meu pai, o sr. Luís Comboni, em Limone de S. Giovanni, junto ao lago de Garda, o qual, uma vez que os meus o tenham lido, mo mandará regularmente para a África.
Portanto, tenha a amabilidade de me enviar directamente para o Sudão o Osservatore Cattolico, as Missioni Cattoliche e o Leonardo da Vinci; por outro lado, para Limone sul Garda, na província de Bréscia, o Popolo Cattolico. E como vejo anunciado que na Livraria Ambrosiana se recebem assinaturas de todos os jornais católicos, rogar-lhe-ia que tivesse por bem assinar-me o jornal católico inglês The Tablet, de Londres, creio, e faça-mo enviar para a minha direcção de Cartum.
Quando escrever aos bispos de S. Calocero, Iderabat, Hong Kong e Hunão, e à Marietti encomende-me às suas fervorosas preces, porque a minha missão é a mais espinhosa e difícil de todas.
Desfeito pelas enormes fadigas, angústias e febres abrasadoras, que deitaram a perder a minha saúde, ainda não pude oferecer às Missions Catholiques um quadro real dos estragos e da desolação que a carestia e a fome, a sede, a epidemia e a mortandade causaram no meu Vicariato. Mas, se Deus quiser, fá-lo-ei quanto antes.
A carestia, a fome e a sede, que trouxeram consigo uma horrível epidemia e mortandade, foram mais tremendas e espantosas que a carestia e a fome da Índia e da China.
Numa zona do meu Vicariato situada a partir de Cartum e maior que três vezes toda a Itália, pereceu mais de metade da população só nos três meses de Setembro, Outubro e Novembro, depois das chuvas. Em muitas cidades e povoados de um vasto território morreram todos ou quase todos, ficando os cadáveres insepultos durante muito tempo. E em muitas localidades e grandes povoações pouco distantes de Cartum pereceram não só todos os habitantes, mas também os camelos e os gados e até os cães, que nestes países constituem uma providencial segurança.
No reino de Cordofão, desde há oito meses os três estabelecimentos que fundei não vêem o pão de trigo e vivem de dokhon (penicillaria). A minha superiora de El-Obeid nos últimos dias da sua vida pediu com enérgicos rogos um pouco de pão com água, como extremo alívio; mas não se pôde encontrar nem a peso de ouro e morreu. A água suja e salobre para beber e cozinhar pagamo-la mais cara que o vinho na Itália. Em suma, os meus apuros são grandes e só S. José, meu ecónomo, os pode remediar.
Porém, o que mais me destroçou a alma é que todos – missionários, religiosas e irmãos coadjutores – adoeceram com a epidemia e muitos morreram, sobretudo aqui em Cartum. Entre eles o braço direito da minha obra, que foi superior dos meus institutos de Verona e depois meu administrador-geral aqui, isto é, P.e António Squaranti, a quem certamente conhecia, porque foi várias vezes a Milão. Houve um tempo em que eu era o único dos sacerdotes que continuava em pé, e tocou-me fazer não só de bispo, mas de tudo... e de enfermeiro de todos. Mas basta, porque me sinto fraco.
Reze por mim. A cruz é o único conforto verdadeiro, porque é a marca da obra de Deus. À paixão e morte de J. C. seguiu-se a ressurreição. O mesmo sucederá na África Central.
Quanto ao pagamento das assinaturas, incluo-lhe aqui um cheque sobre o meu banco de Roma, o de Brown e Filho, o banqueiro pontifício, em cujos escritórios da Via Condotti, perto de S. Carlos, onde está o seminário milanês, poderá ser pago. Quanto às missões católicas, se receber algo para a África Central, peço-lhe que o mande ao citado banqueiro, como sempre fez a Propaganda e o faz também agora. Conforme me escreve o card. Simeoni. O sr. Brown é amigo de mons. Agnozzi.
Enviando-lhe as minhas saudações para o bom e devoto Scurati, assim como para todos os de S. Calocero, a quem quero como a irmãos, passo a declarar-me nos Corações de J. e de M.
Seu af.mo no Senhor
† Daniel Comboni
Bispo e vigário apostólico
N.o 819; (780) - AO CÓN. J. CRISÓSTOMO MITTERRUTZNER
ANB
Cartum, 23 de Janeiro de 1879
Autorização para receber donativos destinados ao Vicariato.
N.o 820; (781) - À MADRE EUFRÁSIA MARAVAL
ASSGM, Afrique Centrale Dossier
Cartum, 30 de Janeiro de 1879
Mui rev.da madre,
Há muito tempo que estou doente, embora tenha a maior confiança em Deus, o único por quem sacrifico a vida na mais difícil mas ao mesmo tempo mais gloriosa missão do mundo, porque se trata do último povo que é chamado à fé e o mais desditoso e pelo qual a congregação de S. José ganhou tão grandes méritos mediante os generosos sacrifícios que fez.
Não tenho força para escrever. Estou demasiado alquebrado na saúde e cheio de aflição pelas perdas que tive. Mas se Deus me deu a cruz, dar-me-á o conforto. Em quatro meses, a carestia e a epidemia produziram desastres inauditos. Nunca a África Central passou por tanta desgraça e mortandade. Em muitas localidades morreu não só toda a população, mas também o gado, os camelos e até os cães, que são os guardiões providenciais da segurança pública nestes países. Mas Deus abençoará os nossos sacrifícios.
A Ir. Germana foi o anjo de consolação para todos. Ah, desejaria ter cinquenta Irmãs Germanas! São bastantes os seus defeitos, que a madre conhece, mas, mesmo assim, tem uma caridade em grau heróico e uma muito hábil e boa maneira de ganhar almas.
A Ir. Maria e a Ir. Ana partirão de um dia para o outro, creio que amanhã. Ficam aqui quatro Irmãs. Há muito que espero a sua decisão. As minhas conhece-as por muitas cartas que lhe escrevi. O clima não fez tanto prejuízo como se queria crer. A Ir. Arsénia morreu porque caiu duma mula, a Ir. Teresa dum camelo, a Ir. Josefina e a Ir. Madalena estão há muito tempo tísicas e prolongaram a sua vida na África; todas as outras irmãs (excepto a Ir. Genoveva) não se tinham aclimatado no Cairo. A caravana das irmãs Severina, Maria, Ana e Inácia saiu incólume, porque passou o Verão no Cairo e fez a viagem na boa estação.
Além disso, precisam-se boas e capazes superioras e uma provincial em Cartum. Enfim, a madre conhece as minhas intenções; eu, em contrapartida, ignoro as suas e temo que desanime. Mas o Coração de Jesus sustê-la-á completamente.
Está a chegar a febre. Peço-lhe que saúde da minha parte todas as Irmãs de Roma e a secretária, e reze pelo
Seu dev.mo † Daniel Comboni
Bispo e vigário apostólico
Original francês; tradução do italiano.