[2468]
Mas por que é que a missão da África Central, depois de esforços tão colossais, depois de vítimas tão gloriosas arrebatadas pela morte, quando floresciam tantas esperanças de êxito, depois de gastos tão grandes e de tantos sacrifícios, teve que interromper a sua grandiosa e sublime obra de conquista e suspender quase por completo o desenvolvimento da sua actividade? Por que razão em 1861 se impôs a dura necessidade de ter que abandonar as florescentes estações do Nilo Branco, que os missionários tinham fundado no meio de muitas fadigas, e que eram as mais importantes e principais do território a converter? Porque é que os missionários, reduzidos a um pequeno número, depois de terem dado provas de um zelo tão admirável, tiveram de se retirar do centro da sua actividade e ir para o Egipto? Qual o motivo pelo qual, após 15 anos de actividade, esta sublime missão estava incerta do seu futuro, paralisou e se viu ameaçada na sua própria existência?
[2469]
Toda a empresa de grande importância, orientada para um fim que enobrece a humanidade, para ser apta para essa finalidade precisa de uma organização que responda ao objectivo proposto e que esteja dotada da devida capacidade. Só disto depende o êxito de uma grande obra que se queira fundar. Tal organização deve ter uma finalidade bem determinada e claramente formulada, para que o edifício que se quer construir tenha um alicerce sólido e inabalável; deve ter um centro do qual possa dimanar a sua actividade; deve dispor dos meios e colaboradores necessários, pois só com eles se podem prometer resultados frutíferos; e, finalmente, essa organização deve estar marcada com o selo da continuidade e do crescimento progressivo.
[2470]
Certamente a missão da África Central dispunha de muitos homens bem capazes, que deram começo, movidos pela energia dos heróis e pela mais nobre coragem. Nós conhecemos nela operários evangélicos de maravilhoso talento, adornados de todas as virtudes apostólicos, os quais consagraram à missão todas as suas energias, sustentaram-na e procuraram conservá-la. Tinha protectores poderosos e ajudas materiais abundantes, fruto da muito generosa caridade austríaca. Contudo, faltaram-lhe os elementos que são imprescindíveis para garantir a duração do êxito. Faltava-lhe um centro de actividade, tanto na Europa como nas costas de África, que deveria ter-lhe proporcionado colaboradores à medida das suas necessidades: obreiros evangélicos de ambos os sexos, capazes de exercer o apostolado no interior da Nigrícia. Para o repetir mais uma vez, a organização desta missão não respondia à finalidade nem prometia bons resultados.
[2471]
Lá trabalharam sacerdotes excelentes em todos os aspectos, mas que provinham das dioceses do Tirol, da Baviera, de Liubliana e das regiões frias da Alemanha e da Áustria. Desses lugares iam sem mais para as zonas tórridas da África Central, sem se submeterem previamente a um tempo de preparação comum e igual para todos, orientada para este fim. Estes períodos de preparação e as várias etapas, pelas quais o missionário deveria passar antes de começar a realizar o seu trabalho, são indispensáveis. Os missionários deslocam-se para as tórridas zonas do Nilo Branco sem antes se terem aclimatado em lugares situados entre elas e a Europa. Em primeiro lugar, teria sido urgente e necessário fundar na Europa um seminário bem preparado, onde se formassem jovens sacerdotes para a difícil e perigosa missão da África Central. Em diversos lugares das costas da África deviam ter-se fundado colégios, onde os missionários se habituassem ao clima e onde, além disso, pudessem ver se estavam à altura de tão importante empresa e tornar-se assim idóneos e valiosos obreiros para o difícil apostolado da África Central.
[2472]
Ainda antes deveria ter sido criada uma congregação de irmãs missionárias, por meio das quais se teria proporcionado à missão uma ajuda poderosa e imprescindível para a difusão da fé no seio das famílias. Estas missionárias constituem um elemento indispensável e essencial em todos os aspectos. Depois, nas costas africanas, dever-se-iam ter estabelecido institutos onde pudessem viver e trabalhar igualmente os europeus e os africanos e onde indígenas de ambos os sexos recebessem instrução para se converterem eles mesmos em apóstolos da fé e da civilização entre os seus conterrâneos. A Igreja sempre considerou este o modo mais eficaz para conduzir um povo à verdadeira fé e ao Cristianismo. A missão da África Central carecia de todos estes elementos absolutamente necessários para assegurar a entrada da religião de Jesus Cristo nesses países tão extensos e longínquos. Não obstante, devemos reconhecer também nisto a verdade de que as obras de Deus, como sucede nos misteriosos processos da natureza criada, começam como uma semente minúscula, que depois se desenvolve cada vez mais, passando do estado embrionário a uma maturidade cada vez maior e crescendo a pouco e pouco até à perfeição. Assim deveria acontecer também a esta grande obra de redentora caridade cristã: semeada sem ruído, como o evangélico grão de mostrada, brotaria depois, e, pouco a pouco, cresceria para dar finalmente os seus frutos.
[2473]
Com respeito aos elementos preparatórios requeridos para tal fim, no meu «Plano para a Regeneração da África» pode-se encontrar um esboço de tudo o que é necessário para erigir o grandioso edifício da evangelização da Nigrícia. Este Plano, que até algumas respeitáveis sociedades consideraram ao princípio como uma pura utopia e ilusão, recebeu todavia plena aprovação do amadíssimo Papa Pio IX em todas as suas partes. Um pouco de cada vez, foi também obtendo o beneplácito de algumas personalidades distintas pela autoridade e erudição e, sobretudo, o de muitos bispos e vigários apostólicos da África. O rev.mo mons. Lavigerie, arcebispo de Argel, confessou-me com grande franqueza que os grandes institutos por ele fundados na sua diocese para a prefeitura do Sara surgiram sobre a mesma base e precisamente sobre os princípios do meu Plano.
[2474]
Animado pelas palavras do Vigário de Cristo e do muito solícito monsenhor de Canossa, bispo de Verona e meu superior, e com o apoio verdadeiramente extraordinário dos honorabilíssimos membros da Sociedade de Colónia, superei quantas dificuldades se opunham por toda a parte à realização do meu Plano, às quais não dei importância alguma. Parecia que o inimigo do género humano se tinha empenhado na destruição da santa obra, chegando até a ameaçar destruir o trono do nosso Santo Padre Pio IX. Porém, nas disposições da sua Providência, Deus estabeleceu que as obras que devem servir para a sua maior glória sejam marcadas com o selo da cruz. E por ter nascido aos pés da cruz, também elas, como a Igreja de Deus, devem suportar neste mundo os duros golpes da perseguição e as hostilidades que contra elas o Inferno desencadeia. Mas Deus quis salvar a sua obra!
[2475]
E salvou-a por meio do seu santíssimo Vigário na Terra. Graças à ajuda da sua benemérita sociedade e à caridade da Alemanha católica, estamos a trabalhar na realização do meu Plano. Agora este não só tem o reconhecimento do Chefe da Igreja e da vossa sociedade como muito válido para a sua finalidade e perfeitamente adequado para a criação de estabelecimentos na Nigrícia mas também goza já da aprovação das mais sensatas e prudentes personalidades do século, assim como dos mais altos e distintos dignitários da Igreja, das presidências das diversas sociedades e dos homens que têm grande experiência quanto à fundação de grandes obras e sobretudo de obras missionários. Só a Deus, portanto, seja por isso dada glória; Ele só é o autor do Plano! Porém, depois d’Ele, meus estimados amigos, sois vós que tendes mais mérito. Pensem, senhores, que, se agora vêem a santa obra apenas começada, tempos virão em que verão os maravilhosos resultados dos institutos do Egipto que lhe deram as bases e que constituem esse centro de acção, a partir do qual a actividade apostólica se estenderá a toda a África Central. E isto é tudo obra vossa! Se, pois, a nossa posteridade vir nas regiões da Nigrícia milhões de almas súbditas da cruz e exemplares de bons costumes e de vida civil, será obra vossa, porque vós tomastes a iniciativa.
[2476]
É a vós e à vossa sociedade que a grande obra deve a sua existência, por meio da qual nós temos as mais alegres e justas esperanças de conseguir a salvação da Nigrícia. Sem vós e a vossa Sociedade, a grande obra não se poderia ter fundado e a Nigrícia, por muitos séculos, ficaria ainda entorpecida e dormiria o seu sono de morte. Da santa cidade de Colónia, do túmulo dos três Reis Magos, primeiros apóstolos das terras pagãs, despontou o primeiro raio de luz, que dissipará para sempre as sombras do paganismo, que, há mais de quarenta séculos, mantêm envolto em trevas o horizonte da Nigrícia.
[2477]
Ora bem, para que a obra tenha continuidade também depois da minha morte, é preciso formar na Europa um corpo de docentes constituído por sacerdotes escolhidos, solícitos e instruídos, os quais se encarregarão da administração e direcção dos institutos do Egipto e das missões da África Central. É uma disposição do meu Plano e também o desejo da Propaganda. Por isso, em 1867, sob os auspícios do Ex.mo bispo de Verona, mons. Canossa, abri em Verona um colégio para a missão da Nigrícia, com o objectivo de formar missionários europeus para o apostolado da África Central. Por falta de meios, não me foi possível adquirir uma propriedade para este instituto e tive que pagar anualmente uma renda por uma casa provisória. Porém, finalmente, com a ajuda de Deus e de S. José, protector da nossa Igreja Católica, consegui adquirir em Verona para o dito instituto uma adequada sede própria. Com efeito, para este fim, recebi da extraordinária munificência de Sua Majestade apostólica a imperatriz Maria Ana Pia de Áustria o importante donativo de 20 000 francos, além de outras pequenas somas enviadas pela Providência, estando assim em condições de pagar por completo a casa. E os senhores, que tanto zelo mostram pela conversão da África, roguem a Deus para que conserve ainda na Terra por muitos anos esta insigne benfeitora do género humano e da Nigrícia. Deus recompense com a sua bênção celestial esta devota soberana e o seu ilustre esposo, o Imperador Fernando I. A vossa oração chegará ao Céu e um dia terão nesta grande alma uma intercessora imortal.
[2478]
Também se fundou em Verona o instituto das Virgens da Caridade, onde poderão obter as suas mestras os institutos femininos da África. Porém, disto, bem como de outras coisas, falarei mais à frente.
[2479]
Expostas estas notícias gerais sobre o progresso da obra da regeneração da África, passo a dar aos beneméritos membros da Sociedade uma rápida informação sobre:
1. Os institutos de negros do Egipto.
2. O postulado em favor dos negros da África Central, dirigido ao S. Concílio Ecuménico do Vaticano.
3. A pequena expedição ao Egipto, empreendida recentemente pelo Colégio das Missões Africanas de Verona.
[2480]
I – OS INSTITUTOS DE NEGROS DO EGIPTO
No Egipto há actualmente três casas ou institutos para negros:
a) A casa do Sagdo. Coração de Jesus, instituto para negros.
b) A casa do Sagdo. Coração de Maria, instituto para negras.
c) A casa da Sagda. Família, escola para negras, no Cairo Velho.
[2481]
a) O Instituto do Sagdo. Coração de Jesus para a conversão da África
Tem como objectivo principal:
A educação religiosa e moral dos jovens negros e a instrução dos mesmos em todas as ciências e artes que podem ser úteis para a África Central, a fim de que, após uma formação completa, possam voltar às suas tribos e aí trabalhar, sob a direcção de missionários europeus, como propagadores da fé e da civilização.
[2482]
2. Servir como lugar de aclimatação para os missionários europeus, professores e artesãos, com vista a mais tarde poderem suportar melhor o clima dos países da Nigrícia e as fadigas do apostolado.
[2483]
3. Facilitar aos missionários europeus a aprendizagem do árabe e das línguas e dialectos das tribos negras, assim como o conhecimento das coisas mais necessárias para a missão e dos usos e costumes dos muçulmanos, com os quais vão estar em contacto mesmo nas terras da Nigrícia. Aí se adestram sobre a maneira de tratar, do melhor modo possível e com a maior cautela, com homens totalmente corruptos. Além disso, aprendem a relacionar-se com o Governo egípcio e com as autoridades consulares das nações estrangeiras. Adquirem algumas noções de medicina e algum conhecimento dos ofícios que são indispensáveis. Mas sobretudo devem estudar os métodos e a prática de ganhar, da maneira melhor e mais eficaz possível, almas para Deus. Numa palavra, este instituto é para o sacerdote uma escola de experiência e prova que ele deve passar para aprender a ser um bom missionário e para exercer do modo mais eficaz e conveniente o seu ministério na África Central.
[2484]
4. A aprendizagem neste instituto serve como período de instrução e de prova, no qual se pode chegar a formar a mais conscienciosa convicção sobre se os referidos missionários europeus e seus colaboradores, que se devem deslocar para as regiões da Nigrícia, são dotados de uma castidade a toda a prova, de constância na fé, de humildade e abnegação, de capacidade de entrega generosa, de autêntica caridade e de todas as virtudes necessárias para o apostolado. As missões da África Central, de facto, encerram graves dificuldades e perigos para quem tem que trabalhar directamente na obra da conversão e este severo período de prova é necessário para que jamais se dê o caso de que aqueles que vão lá difundir as virtudes cristãs sucumbam eles próprios à imoralidade: «Ne cum aliis praedicaverint, ipsi reprobi efficiantur».
[2485]
Além disso, este instituto tem como objectivo secundário a conversão ao Cristianismo da raça etíope (os negros) residentes no Egipto, que, segundo a estatística oficial de 1869-1870, de Levernay, só no Cairo consta de 25 000 indivíduos. Por outro lado, o instituto em questão tem uma administração própria, para a qual está autorizado pelo rev.mo vigário apostólico e, com esta autorização, pode-se fazer muito bem tanto à colónia europeia como a indígenas de qualquer rito e crença. Gozando de grande autoridade e estima entre todas as classes da sociedade, os missionários servem-se com vantagem destes privilégios, em benefício da missão do Egipto.
[2486]
No que diz respeito aos negros do Egipto, já iniciámos, com grande reserva e circunspecção, a fomentar a conversão dos que se encontram em famílias católicas e procederemos com uma discrição e prudência ainda maiores com os negros que se encontram com hereges e muçulmanos. Tivemos como norma esperar que a Providência os conduzisse aos nossos institutos e na maior parte dos casos isto ocorreu quando se tratava de doentes e abandonados.
[2487]
Os negros que se encontram em famílias católicas são quase todos pagãos ou muçulmanos. A razão deste fenómeno, prejudicial para o Catolicismo, reside no facto de que até entre os católicos de costumes muito exemplares se dá uma tradicional indiferença no que toca à salvação da alma dos seus criados negros, por considerarem estes mais um artigo de comércio que seres humanos; e não querem absolutamente que se façam católicos, por uma dupla razão: antes de tudo, porque os negros, tornando-se católicos, adquirem, por isso mesmo, a liberdade e temem que então não queiram continuar ao seu serviço (quando nós podemos demonstrar que, após se tornarem cristãos com o baptismo, dão prova de uma maior fidelidade aos seus amos!); e, em segundo lugar, porque, se se tornam católicos e seus amos querem prescindir dos seus serviços, já não podem ganhar dinheiro com eles, vendendo-os aos muçulmanos, porque estes não compram negros católicos, mas só pagãos ou maometanos. A este particular apostolado egípcio dos nossos institutos já nos referimos o ano passado num relatório do P.e Carcereri. Assim, os nossos queridos membros chegarão a conhecer a triste situação da população negra no Egipto, sobretudo se os negros vivem com famílias católicas de qualquer rito.
Saberão avaliar as dificuldades e obstáculos que se opõem ao mais prudente e hábil exercício do ministério sacerdotal e compreenderão quanta clarividência e discrição se precisa para conseguir algo positivo. Saberão apreciar também os bons resultados que nisto conseguimos às vezes para a santa madre Igreja. E, finalmente, convencer-se-ão também de que o apostolado do Egipto, embora constituindo o objectivo secundário dos nossos institutos, se revela por si como uma parte muito essencial da missão.
[2488]
O Instituto do Sagdo. Coração de Jesus compreende:
1. Os missionários.
2. Os catequistas e coadjutores.
3. O catecumenato e os alunos negros.
4. Um pequeno hospital para negros.
Seguem-se, expostas brevemente, as regras de vida para os missionários dos institutos do Egipto tal como as estabeleci, especialmente para eles, desde 1868.
[2489]
A vida do missionário, que rompeu absoluta e definitivamente todas as relações com o mundo e com todas as coisas mais queridas segundo a natureza, deve ser uma vida de total espiritualidade e de fidelidade a Deus. Ele deve trabalhar com intenso espírito de fé e de caridade para com os homens para a salvação das almas. E, para tal fim, é necessário que, para além de uma fidelíssima entrega ao dever e de um zelo ardente, tenha um grande amor e temor de Deus. É preciso, além disso, que possua um domínio bem seguro das suas paixões e deve distinguir-se por um grande amor ao estudo e pelo desejo da perfeição e da vida interior.
[2490]
Com este fim, prescrevi aos missionários dos institutos de negros as seguintes práticas, no intuito de conseguir a própria santificação.
1. Observância exacta do regulamento e do horário diário.
2. Cada dia missa e ofício divino e confissão todas as semanas.
3. Manhã e noite, orações e terço em comum.
4. Pela manhã, uma hora de meditação em comum.
5. Exame de consciência, leitura espiritual, visita ao Ss.mo Sacramento ou à capela e comunhão espiritual em privado.
6. Acto de oferecimento a Jesus da própria vida e das próprias fadigas para a consagração missionária, de manhã e à tarde, em comum.
7. Leitura diária da história do Novo Testamento e da vida dos mártires e dos santos ou dos missionários ilustres.
8. Todos os anos, na Quaresma, exercícios espirituais durante dez dias e retiro mensal na sexta-feira seguinte ao primeiro domingo de cada mês.
[2491]
9. Em Março, mês em honra do Patriarca S. José, e, em Maio, em honra da Santíssima Virgem Maria, com práticas de piedade cada dia dos dois meses; novenas, oitavários e tríduos em comum e, conforme corresponder, com sermões e cânticos em honra do Ss.mo Sacramento, do Sagdo. Coração de Jesus, da Sagda. Família, da Imaculada Conceição e de outras festas da Santíssima Virgem, de S. José, dos santos Reis Magos, dos santos apóstolos e mártires, de S. Francisco Xavier, dos santos africanos, etc., das Almas do Purgatório, etc., pela nossa St.a Igreja, pelo chefe da nossa santa Igreja, pela Propagação da Fé, pela conversão da Nigrícia e pelo bem-estar e saúde dos benfeitores da obra da regeneração da África.
10. Todos os anos especiais práticas de piedade.
Para promover a santificação das almas, prescrevi aos missionários o seguinte:
[2492]
1. Estudo frequente da Sagda. Escritura, aplicação à Teologia Dogmática, à Moral, ao Direito Canónico, à História da Igreja e das Missões e às doutrinas dos hereges e pagãos. Este último constitui o principal objectivo de estudo dos missionários e versa especialmente:
a) Sobre as principais exigências do ministério sacerdotal.
b) Sobre os erros e superstições dos povos da África Central.
[2493]
c) Sobre os erros do Islamismo em geral e em particular sobre os muçulmanos do Egipto, da Núbia e dos povos muçulmanos de origem árabe que vivem dispersos na África Central e que conservaram os princípios da religião maometana.
d) Sobre os erros dos hereges e cismáticos de todo o género e de todo o rito em geral e as particulares diferenças entre os hereges e os cismáticos do Egipto, sobretudo dos coptas, gregos, arménios, anglicanos, etc. e dos maçónicos.
e) Sobre os perniciosos preconceitos que reinam entre os católicos dos vários ritos no Egipto e entre alguns monges e sacerdotes orientais, preconceitos que podem resultar em obstáculo para o progresso do Catolicismo, que defende o Papa.
f) Sobre as perniciosas tendências e vícios que imperam entre os católicos do Egipto pela sua ignorância tradicional e os meios mais adequados para lhe pôr remédio
[2494]
2. Estudo consciencioso das línguas árabe, francesa, dinca, berbere, bari, etc.
3. A história, a geografia, a agricultura e os usos das terras da Nigrícia.
4. Algumas noções de medicina, flebotomia e de várias artes e ofícios que são úteis aos povos da Nigrícia.
5. O serviço dos doentes, com assistência espiritual e corporal.
6. Pregação, explicação do catecismo, administração dos sacramentos nos institutos de negros e nas igrejas.
[2495]
Os nossos missionários, tanto sacerdotes como leigos, vivem juntos como irmãos na mesma vocação, sob a direcção e dependência de um superior. Cumprem com zelo o que se lhes manda fazer, dispostos a ajudar-se reciprocamente. Manifestam estima aos outros missionários do Egipto e procuram viver com eles em óptimas relações, também no exercício dos seus ofícios especiais. A sua missão é especialmente esta: eles têm em mira a evangelização da Nigrícia. Embora não obrigados por votos, guardam ao superior religiosa e filial obediência em tudo, por amor a Deus, à boa ordem e aos verdadeiros progressos da obra sublime e santa a que se consagraram. E a sua dependência dele diz respeito ao próprio exercício das funções do seu ministério, ao desempenho das diversas funções profissionais nos institutos, ao trato com os negros, à autorização para se ausentarem do estabelecimento e à aceitação de incumbências de estranhos. Em todos estes pontos, cada um deve agir de perfeito acordo com o superior e contando com o seu consentimento e autorização. Este, por sua vez, comporta-se com eles como um pai e um irmão. Procura ajudá-los com cuidado nos seus esforços e de satisfazer os seus justos desejos. E para fazer frente às suas necessidades distribui os diversos encargos de acordo com as suas inclinações e habilidades.
[2496]
O superior é responsável do instituto e das pessoas que o integram. A ele compete directamente a direcção e administração do mesmo, a vigilância sobre cada um, a representação perante as autoridades locais, a gestão dos assuntos com o exterior e as outras obrigações inerentes à função de responsável do Instituto. Nos casos de maior importância, o superior aconselha-se com seus irmãos mais experimentados e prudentes, em especial quando se trata de evitar consequências perigosas para o instituto.
[2497]
Todos levam uma vida em comum, contentes com a comida, a roupa e a dotação de livros e de outros objectos, que recebem segundo as possibilidades do instituto. Só aos sacerdotes se permite usar para as suas necessidades particulares o que recebem das suas famílias e dos seus proventos. Porém, proíbe-se a administração directa dos bens privados que possuírem no seu país. Cedem em favor do instituto também o que recebem como donativos, pelas missas, etc. Além disso, devem colaborar com o superior naquilo para que ele requeira o trabalho de cada um, segundo a sua capacidade, na educação dos negros nas várias matérias de ciências e de artes e em função das normas concretas que se tiverem estabelecido para cada instituto.
[2498]
De acordo com as disposições particulares das autoridades eclesiásticas competentes, podem confiar-se aos sacerdotes também a direcção espiritual dos institutos de negras, o ministério da pregação e a instrução religiosa nos institutos; porém, onde isso for requerido, deve ser concedido a juízo do superior.
[2499]
Nas relações com a gente de fora, o dever e a intenção de todos é ganhar almas para Jesus Cristo, pelo qual deixaram pátria, pais e parentes, tudo, numa palavra. Se bem que a actividade dos missionários se limite aos pobres negros nos nossos institutos e à particular natureza desta missão, ainda assim, em especial os sacerdotes, aproveitam as ocasiões propícias, como indicámos, para a todos fazer indistintamente o maior bem possível, recordando que foram consagrados ministros d’Aquele que sofreu e morreu por todos. Não obstante, tratando-se da conversão de adultos, cada um actua em sintonia com o superior, o qual, quando um caso determinado o exigir, se dirigirá ao vigário apostólico do Egipto e à autoridade espiritual que representa a Santa Sé. Aos meninos não católicos gravemente doentes não se lhes administra o baptismo, salvo em evidente transe de morte e isto sempre com as devidas cautelas.
[2500]
Nenhum missionário pode entrar nos institutos de negras ou realizar aí um exercício de ministério ou um serviço de piedade; isso só se pode fazer se tiver obtido para ele faculdade do superior ou uma autorização especial. Exceptuam-se os casos em que o requeira uma necessidade urgente e imprevista e só em ausência do superior. Tal proibição estende-se também a todo o pessoal de serviço e o incumprimento disso considera-se falta grave.
[2501]
Nos nossos institutos observa-se a clausura, que é absolutamente necessária e está consagrada pelo seu uso constante em todas as associações religiosas. Contudo, nas missões é regulada pelas circunstâncias e, em determinados casos, segundo a prudência do superior. As mulheres são recebidas na sala comum destinada para o efeito, sem prejuízo das poucas excepções que o superior pode fazer para algumas piedosas benfeitoras ou no caso de se anunciar uma visita extraordinária.
[2502]
A direcção geral dos institutos in omnibus et quoad omnia, todos os assuntos externos e todas as práticas com as autoridades civis, em particular com os cônsules europeus e com o Governo egípcio, e a correspondência com a Europa e o que ali se deve fazer fica confiado apenas a mim. Na minha ausência, a direcção dos institutos de negros e a gestão económica dos dois institutos em geral cabem ao P.e Estanislau Carcereri. O muito piedoso P.e Bartolomeu Rolleri é professor dos alunos negros; o P.e José Franceschini é instrutor em vários ofícios e em trabalhos manuais de diversas espécies; mons. P.e Pascoal Fiore, cónego, é director espiritual e capelão do instituto para negras do Sagdo. Coração de Maria, e P.e José Ravignani faz a gestão particular desse mesmo instituto. Todos partilham a vigilância dos alunos e as outras ocupações do instituto. Pedro Bertoli dirige a farmácia e tem a seu cuidado a enfermaria e Domingos ensina agricultura.
[2503]
O instituto de negros ocupa todo o antigo convento maronita do Cairo Velho; possui um espaçoso pátio e a igreja mais ampla e bela daquela zona. Com 1200 francos tomei de arrendamento esta casa por três anos; fica adjacente à antiga construção que, como quer a lenda, serviu de residência à Sagda. Família no Egipto.
[2504]
As regras estabelecidas para o meu instituto são fruto de longas observações da experiência. As normas que tracei para o mesmo não são mais que o resumo dos princípios fundamentais da conduta dos missionários. Tenho a intenção bem determinada de, mediante a prática e uma longa experiência, elaborar, de forma amadurecida, o mais adequado regulamento para os institutos. Submeterei essas normas à S. Congregação da Propaganda Fide e à suprema sanção da S. Sé.
[2505]
Desde a fundação dos institutos não houve momento algum em que me não tenha apercebido da minha dificílima situação quanto às exigências que se apresentam, tanto no interior como no exterior dos meus pequenos institutos.
[2506]
No tocante à minha posição no confronto com o exterior dos meus institutos, vi-me posto sob a protecção e paternal benevolência do representante da S. Sé e reconheci que o desempenho dos deveres de um apostolado tão importante e tão difícil como o do Egipto não é fácil se se considerarem os muito variados elementos que abrange.
[2507]
É preciso tratar ora com o corpo eclesiástico da missão ora com o Governo egípcio e com as autoridades consulares da França, Áustria e Itália. Encontrava-me, além disso, entre um clero de diversos ritos orientais e no meio de seitas de hereges e da predominante maçonaria. O responsável de um novo instituto deve ter, em relação a este, os olhos bem vigilantes e atentos e andar com pés de chumbo. Nem tão-pouco deixei de ponderar bem a minha difícil posição perante os membros do instituto, à frente dos quais me encontrava. Esse grupo humano era formado por religiosos, cuja forma de instituição diferia da dos padres seculares, por freiras francesas, italianas e orientais, e por jovens negras resgatadas graças a diversos benfeitores e educadas em vários institutos com normas diferentes.
[2508]
Eles eram todos elementos heterogéneos, que eu devia, em primeiro lugar, pôr em perfeita harmonia e conduzir à unidade de propósitos e de bandeira. Com o máximo cuidado e rigor estudei o carácter, os dotes e as aptidões de cada um, a fim de orientar bem e me servir disso em benefício do desenvolvimento e prosperidade da nossa empresa. Que a graça de Deus actuava nos nossos institutos e que a sua bênção chegava até nós, notei-o de forma palpável ao reconhecer nos meus missionários uns homens de grande consciência, firme carácter, fidelidade à vocação, perseverança, verdadeira caridade e abnegação para com o próximo. Nestas virtudes sobressaía entre todos o P.e Carcereri. Além disso, a Providência concedeu-nos um verdadeiro amigo, pai e conselheiro no rev.do P.e Pedro de Taggia, representante do vicariato apostólico e pároco no Cairo Velho, o qual trabalha há trinta e quatro anos com grande zelo pelas missões. Já prestou excelentes serviços ao nosso instituto; mostra para com a nossa obra um interesse cheio de afecto e, nos tempos de dificuldades, de cruzes e sofrimentos, é para a santa missão um autêntico conforto e uma verdadeira ajuda, pelo que lhe estamos sumamente gratos.
[2509]
Deus no-lo conserve ainda por muitos anos! O mesmo posso afirmar de mons. Ciurcia, delegado apostólico do Egipto, arcebispo de Irenópolis: na nossa sublime tarefa, ele serve-nos ao mesmo tempo de pai e de guia. Rodeados assim de perto de homens tão serviçais, nos momentos difíceis da nossa missão nunca deixo de me aconselhar com eles. Os assuntos importantes que afectam os dois institutos submeto-os também aos nossos sacerdotes missionários, a quem peço a opinião; e isto também porque é um meio excelente para os introduzir na gestão dos assuntos e para os pôr ao corrente de tudo o que exige a nossa sublime obra. Mais tarde, se a mesma se desenvolver e adquirir dimensões cada vez maiores, isso tornar-se-á muito útil. Tudo aquilo que eu fazia e empreendia pelos nossos institutos era previamente objecto de demorada reflexão e submetido à consulta e discussão com os demais e, só depois disso, me decidia a agir em nome do Senhor.
[2510]
Depois de a Deus e aos nobres sentimentos dos nossos missionários, devo a esta providente e saudável medida a humanidade, a obediência, a boa ordem e perfeita harmonia que reinam nos nossos institutos do Egipto. Além disso, deste modo, os nossos missionários são postos em condições de governar por si mesmos um instituto. Eu dirijo espiritualmente os meus caros companheiros missionários e sirvo de guia ao seu coração; porém, eles são também objecto de toda a minha estima e de todo o meu afecto. A todos nos anima um ideal comum, um único e ardente desejo: sacrificar a vida, no nosso amor a Deus e à sua santa Igreja, pela infeliz Nigrícia. Porque nós, ilustríssimos senhores da nobre Sociedade de Colónia, estamos dispostos a morrer mártires pela fé! (Seguramente recordarão que os missionários de África morreram quase todos precisamente no começo do seu apostolado.) Sim, estamos dispostos a morrer; mas queremos morrer com juízo, com sábia prudência, trabalhando para uma obra grande, para salvar almas num povo que é o mais abandonado da Terra. Por isso nos expomos com alegria aos maiores perigos da vida, porém, com aquela prudência e magnanimidade que convém aos verdadeiros apóstolos e mártires de Jesus Cristo.
[2511]
b) O Instituto do Sagdo. Coração de Maria para a regeneração da África
Assim chamei ao instituto das jovens negras, cuja direcção está confiada às Irmãs de S. José da Aparição. Encontra-se situado nas proximidades do Nilo, frente às pirâmides, a trinta passos de distância do lugar onde a filha do faraó encontrou na água o pequeno Moisés.
[2512]
Os objectivos primário e secundário deste instituto são análogos aos do anterior, salvo algumas variações que se devem fazer por motivos da educação, que orienta sobretudo para formar jovens católicas, destinadas a colaborar no apostolado entre as negras tanto no Egipto como na África Central.
[2513]
Este instituto compreende:
1. As irmãs
2. As jovens negras missionárias
3. As aspirantes e as ajudantes
4. O catecumenado
5. Um pequeno hospital para negras.
As irmãs, de quem sou o superior ordinário, estão sujeitas a observar com a máxima exactidão as regras do seu instituto – sobre o qual darei informações noutra circunstância –, que foi fundado em 1831 pela Santa Sé com o preciso objectivo de formar pessoal que vá em ajuda das missões estrangeiras.
[2514]
Sob a direcção das irmãs e com a participação das jovens negras de todas as classes do instituto, observam-se as seguintes práticas religiosas, especialmente pelas missionárias, a fim de que se fortaleçam na sua santa vocação:
1. Cumprimento exacto de todas as prescrições.
2. Manhã, meio-dia e tarde, orações em comum (segundo a minha disposição a bem particularmente da missão da Nigrícia).
3. Pela manhã, meia hora de meditação em comum.
4. Exame de consciência, exercícios de piedade, visita ao Ss.mo Sacramento e comunhão espiritual, leitura espiritual ao pequeno-almoço, almoço e jantar.
5. Confissão e comunhão semanal, segundo o conselho do confessor.
6. Explicação do Evangelho pela manhã e catecismo ou doutrina cristã à tarde; domingo e festas, na capela.
7. Todas as quartas-feiras uma hora de adoração ao Ss.mo Sacramento, com missa pela conversão da Nigrícia.
8. Exercícios espirituais todos os anos, de 10 a 19 de Março, festa de S. José; retiro mensal na última quinta-feira de cada mês.
9. Em Março e Maio, cada dia a santa missa e à noite pregação, orações especiais e exposição da píxide.
10. Na primeira sexta-feira de cada mês, celebração da guarda de honra ao Sagdo. Coração de Jesus.
11. Novenas, oitavários, tríduos em honra de Jesus Cristo, da Virgem Maria e dos santos, segundo as devoções missionárias estabelecidas pelo instituto de negros. Especiais orações pelo triunfo da Igreja, pela conversão da África e pelos benfeitores da obra africana.
12. Exercícios especiais de caridade cristã.
[2515]
As irmãs e as jovens negras que devem trabalhar pela salvação das almas preparam-se para empreender o apostolado da Nigrícia através dos seguintes estudos:
1. Amplo estudo do catecismo e das diferenças das outras religiões, na medida em que este último tema seja adequado ao sexo feminino católico. Uma missionária ministra-lhes de quando em quando este ensino, explicando-lhes com exemplos as peculiaridades das heresias, como se faz também nos institutos para jovens negros. Ao ensino das controvérsias religiosas acrescenta-se outro sobre como converter melhor à nossa santa religião a população negra feminina de qualquer crença supersticiosa. Indica-se-lhes o modo de argumentar e os exemplos mais práticos e simples para combater e destruir os erros das crenças supersticiosas das mulheres do Islão, do paganismo e das várias seitas, etc. Dado que no Oriente muito dificilmente os homens se podem aproximar das mulheres e que os missionários devem ser muito circunspectos ao falar e conversar com elas, nós prome-temo-nos grandes sucessos para a nossa santa fé católica em especial por parte das irmãs e das jovens negras, com a sua influência sobre a mulher na sua qualidade de missionárias. Antes de mais, parece-me importantíssimo e sobremaneira necessário que as jovens missionárias negras sejam instruídas deste modo sobre as diferenças religiosas, porque só assim se pode ver facilitada a nossa obra.
2. As jovens negras missionárias dão instrução às ajudantes e às doentes na fé e na moral cristã e preparam as catecúmenas para o santo baptismo.
3. Estudo das línguas árabe e dinca.
4. Exercícios práticos de serviço e assistência espiritual aos doentes; algumas noções de medicina e farmácia.
5. Estudo de todos os lavores manuais femininos de primeira necessidade para a Nigrícia, especialmente confeccionar vestidos, coser, cozinhar, tecer.
6. Além do árabe, aprendizagem do italiano, do francês, do dinca e de alguns dialectos africanos.
7. Práticas de cozinha: fazer pão, preparar comidas com os produtos que, mediante uma agricultura melhorada, se podem também produzir nos países dos negros. Confecção de esteiras e preparação de cobertas com folhas de palma.
[2516]
As jovens negras, sob a orientação das irmãs e das mestras negras mais experimentadas, realizam todos os trabalhos finos e de valor que são encomendados por gente de fora e especialmente por armazéns europeus; trata-se de toda a espécie de bordados em ouro e seda. Também se ocupam a fazer vestidos, a cozinhar e a lavar para os institutos. Os trabalhos de cozinha e de lavandaria e o serviço dos doentes levam-no a cabo as negras por turnos semanais.
[2517]
Entre as missionárias negras há dezasseis de comprovada moralidade e capacidade e de sólida vocação, as quais estão perfeitamente formadas e preparadas para exercer com óptimo resultado o seu apostolado na África Central. Estão muito práticas e excelentemente instruídas na arte e maneira de atrair negras, a fim de lhes tornar acessível o Catolicismo, embora estejam muito endurecidas nas suas supersticiosas crenças ou mostrem uma fanática adesão ao Islão.
[2518]
A experiência convenceu-nos de que este instituto de negras é um elemento muito importante para conduzir ao Cristianismo a população feminina de cor, originária de tribos muito diferentes, que vive no Egipto. De facto, sucedeu frequentemente que as negras muçulmanas ou pagãs, ao falarem com as nossas e ao verem a boa educação e os conhecimentos destas e como cantavam bem na igreja, sentiram o desejo de também elas se tornarem católicas. E muitas, de facto, abraçaram a nossa santa fé e perseveram nela com fidelidade. O número de convertidas seria certamente ainda maior se elas não tivessem tido que defrontar-se com a grande oposição dos seus amos. Ainda que muitas destas convertidas, arrancadas violentamente do seio de suas famílias, compradas e vendidas inumeráveis vezes por homens cruéis, tenham estado expostas aos perigos mais horripilantes, contudo, recebido o santo baptismo, manifestaram uma grande pureza de costumes e conservaram-se na inocência baptismal. Pois bem, se vemos resultados tão esplêndidos com estas jovens missionárias no Egipto, onde há tantos obstáculos a superar, quão maior não será a sua eficácia, quando forem deslocadas para as tribos negras da África Central! Lá não haverá lutas nem contra o fanatismo muçulmano nem contra os perigosos preconceitos de patrões inflexíveis. Estamos convencidos de que em breve as suas irmãs negras serão ganhas para a nossa santa fé. Isto é mais uma prova sobre a oportunidade do meu “Plano para a Regeneração da África”.
[2519]
O ensino nas casas das famílias católicas de excelente reputação realiza-se de modo que vão sempre duas negras acompanhadas de uma irmã. Tal missão, que se leva a cabo em favor de uma negra pagã e muçulmana, geralmente, traz consigo outros frutos; de facto há outras que, em parte por curiosidade ou movidas pela graça de Deus, chegam à firme decisão de se tornarem católicas.
[2520]
Permita-se-me fazer aqui uma pequena digressão e narrar aos nossos membros da sociedade um agradável acontecimento ocorrido à jovem negra Josefina Condé. Fora educada com extraordinário cuidado e amor em Salzburgo pelas Ursulinas, e em Setembro de 1869 o rev.mo arcebispo primaz de Salzburgo enviou-ma para o Cairo. Nascida em Darfur, Josefina foi em Fevereiro do ano passado, acompanhada por uma das nossas irmãs e por duas missionárias negras, a casa de um copta onde havia três negras para instruir na religião católica. Aí conheceu também uma outra negra que tinha vindo por curiosidade, para ver as nossas missionárias e falar com elas. Estavam apenas há um quarto de hora na casa, quando ela, após olhar repetidamente para Josefina Condé, irrompeu a chorar copiosamente. Josefina, sem saber porquê, começou também a chorar; perante isso, as outras, impressionadas, tentaram da melhor maneira consolar as duas. De repente, a jovem negra que chorava aproxima-se da nossa Josefina e procura-lhe na nuca uma cicatriz. Depois pergunta-lhe se o nome de seu pai não era tal e tal. E Josefina responde-lhe que sim. Então o rio de lágrimas redobrou e não cessavam de se olhar. A negra de fora faz novas perguntas: «Tua mãe não se chamava assim e assim? A terra onde nasceste não era tal? Não tinhas uma irmã mais velha que tu e outra mais pequena e um irmão, e não eram os seus nomes este, este e este?»... Josefina a tudo respondeu que sim. O pranto não cessava e finalmente a rapariga voltou a perguntar: «Quando ainda vivias na tua terra não te chamavas assim e assim?» «Sim, chamava-me assim e assim» «Lembras-te ainda da tua irmã mais velha e do seu nome?» «Sim, respondeu Josefina, e de quanto gostava da minha irmã mais velha!» «Lembras também como os jilabas te arrancaram dos braços da tua irmã?» «Lembro-me perfeitamente de tudo isso», respondeu Josefina. «Pois bem, fica sabendo que eu sou a tua irmã mais velha.»
[2521]
Neste momento as duas irmãs lançaram-se uma nos braços da outra. Naquele momento Josefina ficou a saber que, um dia depois dela, também a sua irmã foi sequestrada com a mãe de ambas. Depois de três meses de viagem chegaram a Cordofão e ela foi vendida a um nubiano que a levou consigo para Dôngola e Siut, onde passou a ser propriedade de um traficante turco. Este vendeu-a no Cairo a um eunuco do harém do Sultão, que a mandou levar para Constantinopla, onde se converteu numa das esposas de um rico muçulmano, ao serviço do harém imperial. Este tratou-a bem e proporcionou-lhe vestidos, pérolas e diamantes. Porém, após a morte dele, caiu na miséria e foi vendida a um comerciante de tabaco que se dirigia para o Cairo. Um filho seu foi vendido em Esmirna a um traficante. E foi assim que, estando no Egipto há cerca de um ano, essa manhã foi a casa do copta e a sorte fê-la encontrar sua irmã. «Estou contente de te ter encontrado – disse a Josefina –, mas desgosta-me ver que és cristã. Espero que te faças muçulmana como eu». «Não, querida; pelo contrário, espero que tu te tornes cristã. Eu estive na Europa, passei muitos anos na Alemanha, onde me cumularam de benefícios e fizeram-me conhecer o caminho que leva ao Céu. E tendo-me inculcado o amor à Ssma. Virgem, fiz-me cristã. Tu também deves experimentar quão bom é ser cristã.» Porém, estas palavras não agradavam à outra que, embora alegrando-se por ela ter estado na Alemanha, não queria admitir que se tivesse feito cristã. Josefina convidou-a a fazer-me uma visita, o que ela recusou por medo de que eu a sequestrasse e a convertesse à força. «Vem – insistiu Josefina –, vamos juntas ver o nosso padre, verás como é bom».
[2522]
Porém, aquela vez ela não quis saber nada do bom padre. Veio outro dia, embora tivesse ainda muito medo. Desejava que eu permitisse que a sua irmã fosse a sua casa com ela, coisa que lhe neguei rotundamente. Mas algum tempo depois, ela visitava com frequência Josefina no instituto e presentemente parece muito disposta a abraçar o Cristianismo. Mas até agora não consegui comprá-la ao seu amo, o qual, tendo pouca vontade de a vender, pede por ela um preço exorbitante. Roguemos à Mãe e Rainha da Nigrícia, a Virgem Imaculada, que nos ajude para que também esta alma se salve.
O pequeno hospital do nosso instituto tem uma farmácia com dois mil francos em medicamentos, fornecendo também remédios a outras casas e a muitos pobres da cidade.
[2523]
As irmãs estão animadas de um espírito extraordinário, são exemplares na sua vida religiosa e mostram uma enorme entrega e zelo para com a nossa obra. Nós, por nosso lado, não nos descuidamos de as fortalecer na sua vocação, de as ajudar e aperfeiçoar.
A superiora é sóror Verónica Pettinati, de Empoli, que antes foi superiora em Malta e em Jerusalém. Está verdadeiramente à altura da sua missão. A casa do Sagdo. Coração de Maria é uma construção ampla e sólida com um pequeno quintal; tomei-a de arrendamento ao sr. Bahhari Abut, grego católico, por 1600 fr. ao ano.
c) O Instituto da Sagrada Família
[2524]
No Egipto, a situação dos negros é bem lastimosa e triste. Muitos anos de experiência convenceram-me de que não só o muçulmano e o infiel, mas também o cristão de boa índole e irrepreensível, com raras excepções, considera os infelizes negros não como homens, como seres dotados de razão, mas como objectos donde pretendem obter lucros. Em geral, um cavalo, um camelo, um burro, um cão, uma gazela são, de longe, mais apreciados que um negro ou uma negra. O valor destes últimos está apenas em proporção com o preço que custaram ou com o dinheiro que eles podem proporcionar com os seus serviços e fadigas e até com as suas baixas paixões. Aqui, o negro, como ser racional, não tem valor algum. Só uma classe de negros goza de grande apreço e são os eunucos, os guardiões dos haréns. De cem negros, que aos sete ou oito anos de idade são submetidos a esta bárbara operação, sobrevivem talvez uns vinte. Assim, dado que um eunuco custa de quinhentos a mil táleres prussianos, ele é apreciado em razão do alto preço. Por isso aperceber-se-ão os nossos estimados benfeitores alemães do grande bem que fazem quando empregam as suas esmolas em favor dos desditosos povos negros. Estes pobrezinhos, arrebatados violentamente a seus pais, têm que fazer duras e perigosas viagens para depois caírem nas mãos de amos bárbaros que os vendem uns aos outros oito ou dez vezes. E depois acabam por se tornar objecto de desprezo e vítimas de crueldade. A caridade alemã, que mantém os nossos institutos, é a mais nobre obra de civilização em favor de uma parte da família humana mais sofredora e abandonada da Terra e assim os negros são elevados não só à fé cristã mas também à civilização europeia.
[2525]
A Nigrícia irromperá um dia num canto de louvor e de acção de graças em honra da generosa Alemanha católica, a quem deve a sua ressurreição.
A existência de um instituto no qual os negros são educados na fé e em todos os ramos da cultura, como nos institutos da Europa, já fez milagres no Egipto. De facto, a muitos egípcios parecia absolutamente impossível que os negros pudessem ser educados na civilização e que tivessem as aptidões dos brancos. Hoje estão convencidos de que isso se converteu numa esplêndida realidade. Pois bem, ainda que tal instituto devesse ser para os muçulmanos uma prova clara e evidente disso, a actividade dele não estava orientada para o exterior, tendo nós que utilizar excessivas precauções para não cair em perigosas contendas por causa do fanatismo muçulmano e para não ferir a susceptibilidade das várias seitas na terra dos faraós. Pensei então num meio para promover ainda mais a raça negra e colocá-la numa perspectiva favorável perante aqueles homens que têm só uma sombra de civilização. O direito que a raça negra possui e que a branca lhe deve reconhecer, deveria aparecer ainda mais evidente para os egípcios. E quis mostrar ainda mais aos povos, provando-o com um exemplo bem expressivo, que, segundo o sublime espírito do Evangelho, todos os homens, brancos e negros, são iguais diante de Deus e têm direito às bênçãos da fé e à aquisição da civilização cristã europeia.
[2526]
Dos meios em que pensei para alcançar este objectivo, o mais prático e o mais conveniente, dadas as condições em que nos encontrávamos o ano passado, foi a criação de uma escola pública no Cairo Velho, na qual apenas deviam trabalhar professoras negras. Tinha que se criar totalmente à europeia e devia ser frequentada por raparigas de qualquer raça. Pensava eu que isto contribuiria muito para ter um conceito mais alto da raça negra no Egipto. Ao mesmo tempo, as missionárias negras podiam considerar a sua obra nesta escola como uma espécie de noviciado e um tempo de prova em que se preparavam para o futuro apostolado de mestras e missionárias na África Central.
[2527]
Estas duas razões, unidas à necessidade verdadeiramente urgente de ter no Cairo Velho uma escola pública para meninas, decidiram-me a fundar um pequeno instituto dedicado à Sagda. Família. Uma vez obtida a autorização, solicitada ao rev.mo arcebispo, vigário e delegado do Egipto, que, no dia 23 de Maio de 1869, me fez chegar um decreto, pude abrir uma escola no centro da antiga Babilónia do Egipto, a poucos passos da santa gruta onde a Sag.da Família de Jesus, Maria e José descansou na sua fatigante fuga.
[2528]
Nesta escola, na qual ensinam cinco missionárias negras, sob a direcção da Ir. Catarina Valério, franciscana da Ordem Terceira de Verona, e da Ir. Faustina Stampais, minha prima, de Maderno (diocese de Bréscia) ministra-se o ensino do catecismo e da moral cristã, bem como de todas as matérias elementares, do árabe, francês, italiano, alemão e arménio e de todos trabalhos manuais femininos, desde os trabalhos de malha fina até aos bordados refinados em ouro e seda. Frequentam-na raparigas orientais católicas de todos os ritos e europeias, assim como gregas, arménias, cismáticas e muçulmanas. Porém, acontece que, como o patriarca copta cismático proibiu às jovens da sua religião que frequentem a escola do nosso instituto, poucas delas lá vão. Tive, por isso, uma conversa com ele, a qual não conduziu a nada. Disse-me: «Eu não quero que as raparigas coptas frequentem a sua escola: das negras não têm nada que aprender e, além disso, temo que se façam protestantes.» Vê-se até onde chega a sabedoria do patriarca. Em vão tentei demonstrar-lhe que a religião protestante está mais longe da fé católica que a copta, e que os seus sacerdotes coptas se encontravam em melhores condições de ensinar o protestantismo que a fé católica.
[2529]
Esta casa pertence aos rev.dos padres franciscanos da Terra Santa, a quem pago uma renda anual de 360 francos. O ensino escolar é gratuito. Só algumas famílias alemãs bávaras pagam mensalmente alguma coisa.
[2530]
GASTOS E MEIOS DE SUBSISTÊNCIA
DOS INSTITUTOS DO EGIPTO
Quanto aos meios pecuniários e materiais dos nossos institutos, tenho inúmeros motivos para dar graças à Providência. Apesar de actualmente os tempos serem tão tristes e de, desde 1867, se terem abatido sobre os nossos institutos contrariedades e borrascas, até agora nunca faltou neles o necessário, graças às admiráveis disposições de Deus (ainda que seja certo que o Demónio ameaça todas as obras de bem). Nós chegámos felizmente até aqui e esperamos continuar a trabalhar da mesma maneira, até que um dia os nossos institutos tenham receitas próprias.
[2531]
Até ao presente, a ajuda mais considerável chegou-nos da Alemanha católica, representada pela benemérita Sociedade de Colónia, que é a directa fundadora dos nossos institutos para negros no Egipto e a melhor promotora da obra da regeneração da África. Deus a anime a prosseguir e a intensificar as suas esmolas! A protectora desta grande obra é a benemérita Sociedade de Colónia: ela é verdadeiramente uma sublime obra de Deus! As nossas súplicas ao Senhor vão no sentido de que ela se difunda cada vez mais e adquira proporções sempre maiores.
[2532]
Um grave inconveniente consiste no facto de que os nossos institutos no Egipto não possuem nenhuma casa que seja sua propriedade.
A renda das três casas do Egipto custa-nos 3160 francos por ano. Com as reparações, que se tornam necessárias, tal soma ascende todos os anos a 4000 francos; contudo, de agora em diante, só a 3550 fr. Uma casa própria para a missão custaria 80 000 fr. A casa do Sagdo. Coração de Maria foi-me oferecida por 60 000 fr., porém, algumas alterações e melhoramentos requereriam mais 20 000 francos. No Egipto, as casas são muito caras. Para possibilitar a aquisição de uma, ao menos para começar, a ilustre Sociedade de Colónia, com nobre e incomparável esforço, enviou-me a importante soma de 10 000 fr. Este exemplo digno de louvor encontrou eco num ilustre benfeitor, que destinou para este fim outros três mil francos. Certamente, ainda nos falta muito para poder comprar uma casa própria. Deus infunda semelhante espírito de caridade também noutros benfeitores, a fim de que esta questão relevante para a nossa grande obra fique rapidamente solucionada.
[2533]
Os gastos só para as necessidades mais urgentes dos três institutos do Egipto ascendem por ano a 25 000 fr. Mesmo usando a maior parcimónia, tal soma continua a ser, todavia, uma exigência anual.
Segue-se uma breve exposição das receitas e gastos de três anos dos nossos institutos do Egipto, ou seja, desde a sua fundação até ao presente; nela se incluem viagens, doações em dinheiro e víveres e os gastos para o equipamento interno.
ENTRADAS E ACTIVO DOS INSTITUTOS DO CAIRO
NOS PRIMEIROS TRÊS ANOS DA SUA FUNDAÇÃO
Donativos em dinheiro
[2534]
1. A ilustre Sociedade de Colónia para resgate
de negros 33 050
2. A Sociedade da Propagação da Fé de Lião e Paris 1000
3. A Ludwigverein de Munique 1500
4. A Sociedade da Imaculada Conceição de Viena 1000
5. A Sociedade para as Escolas do Oriente de Paris 1200
6. A Sociedade do Santo Sepulcro de Colónia 500
7. O Instituto das Monjas Cistercienses de Landschut,
na Baviera 2000
8. O Instituto da Visitação de Beueberg, na Baviera 1260
9. Ofertas de benfeitores privados, entre os quais se
distinguem: suas majestades o imperador Fernando I
e a imperatriz Maria Ana de Áustria, Sua Alteza Real
o Duque de Módena, Francisco V, Sua Alteza Real o
Príncipe Jorge de Saxónia e consorte, Sua Alteza o
Príncipe Carlos de Löwenstein, etc., etc. 19 470
10. Fruto dos trabalhos das negras dos instos. do Cairo 3680
11. Missas dos missionários (estipêndios de missas) 5400
Doações de vários objectos úteis
[2535]
12. Sra. Duchene de Paris, sra. Maurin Bié, sra. Dephies,
Sociedade de Roma (Obra Apostólica de Roma):
tecidos, vestidos, camisas, etc., etc. no valor de 3640
13. Doações em café, açúcar, queijo, farinha e outros
produtos alimentícios 4000
14. Da família do missionário P.e Rolleri e das Irmãs
da Santíssima Virgem de Cremona, trigo, presunto, etc. 700
15. Nove barris de azeite dados por meu pai,
Luís Comboni. 750
Francos 89 150
Poupanças mediante a minha gestão e concessões extraordinárias
[2536]
16. Várias companhias ferroviárias com sede em Paris,
o sr. Pointu, director dos Caminhos de Ferro do Sul,
em Viena, o sr. Behm, director em Innsbruck, o
sr. Talabot, de Paris, etc., concederam-me viagens
gratuitas na Itália, França e Alemanha, no valor de 1600
17. Viagem gratuita ao Cairo de negras como postulantes
da missão, de irmãos leigos e operários; transporte
gratuito 274 fardos de Marselha para Alexandria, a cargo
de S. E. o ministro dos Negócios Estrangeiros da França
(o Governo francês concedeu viagem gratuita só aos
missionários, e isto não sempre, mas só nalguns casos)
e do Governo egípcio 12 000
Soma das receitas em francos 102 750
GASTOS E PASSIVO DOS INSTITUTOS DO CAIRO NOS
PRIMEIROS TRÊS ANOS DESDE A SUA FUNDAÇÃO
1. Gastos de viagem com 36 pessoas, com transporte de
equipamentos da Europa até ao Cairo 15 600
2. Minhas viagens à Europa 2200
3. Aluguer das casas do Cairo 8160
4. Cartas, expedição e recepção de encomendas, etc.
para mim e para os institutos 2600
5. Gastos com o culto: velas, azeite, vinho, farinha,
bancos, confessionários, lavatórios, etc. 2900
6. Farmácia: honorários do médico ordinário e de um
para casos especiais; pequenos gastos do hospital 4800
7. Comida, roupa e sustento de 72 pessoas;
gastos de transporte em carro, burro, etc.
e do resgate de negros e negras 39 000
8. Camas de ferro, lavabos, utensílios para artes
e ofícios, o necessário para o altar, etc.
Todos os objectos que os três institutos
possuem e que ascendem aproximadamente a 26 000
Soma dos gastos em francos 101 260
Total de receitas e activo Fr. 102 750
Total de gastos e passivo Fr. 101 260
Em caixa Fr. 1490
[2537]
Não foram calculadas as esmolas necessárias que em toda a missão se devem dar aos pobres, em dinheiro ou noutras coisas.
Assim, pois, têm o senhores, como supremos chefes, uma ideia da fundação e dos fins dos nossos três institutos de negros do Egipto, bem como das regras que neles se observam. Eles devem ser considerados como a primeira pedra do grandioso edifício de caridade cristã e de civilização, que na sua admirável pré-ordenação a divina Providência parece querer erigir para a conquista moral e espiritual da Nigrícia da África Central. Ainda me restaria expor algo mais sobre os resultados primários e secundários conseguidos e que se espera conseguir nestes institutos. Mas isso será objecto de um ulterior relatório que por agora me reservo.
[2538]
Quero ainda assinalar aqui que o representante da S. Sé, o rev.mo mons. Ciurcia, vigário e delegado apostólico do Egipto e da Arábia, mostrou sempre grande benevolência para comigo e os meus institutos, exprimindo da maneira mais afectuosa a sua complacência e dando à S. Congregação da Propaganda Fide as informações mais lisonjeiras sobre eles. Também produziram uma excelente impressão aos bispos e vicários apostólicos da China, da Índia, da América e do Oriente, os quais, por ocasião da sua viagem para o Concílio Ecuménico Vaticano, os honraram com a sua visita. Com particular gratidão e veneração recordo o rev.mo mons. Leo Meurin, da diocese de Colónia, decoro do apostolado na Índia, bispo de Ascalona, vigário apostólico de Bombaim e administrador interino do vicariato de Poona. Como membro da Companhia de Jesus, possui uma acuidade especial no momento de emitir um juízo sobre um instituto missionário e sabe ver com grande precisão se um instituto para o apostolado de recente criação dá esperanças e está na via do progresso. Aqueles dos estimadíssimos senhores que tiveram a sorte de gozar da conversação deste insigne apóstolo da Índia, ter-lhe-ão ouvido falar sobre os trabalhos e o progresso dos nosso institutos (cf. os Anais do ano passado). A louvável bondade que teve para connosco no Egipto, em Roma e em toda a parte não a esquecerei jamais. Este digno filho de Sto Inácio, a quem foi confiado o apostolado da Índia, sucessor do seu glorioso pai e predecessor S. Francisco Xavier, tornou-se imitador das suas gloriosas virtudes. A Índia e o Concílio Vaticano devem a mons. Meurin serviços de primeiríssima importância. É para mim causa de alegria e orgulho que este ilustre bispo seja natural de Colónia.
[2539]
O Egipto, por ocasião da solene abertura do canal de Suez, foi honrado com a distinta presença dos mais poderosos príncipes da Europa, entre eles o glorioso príncipe da coroa da Prússia e a imperatriz Eugénia. Para fazer honra à verdade e cumprir um dever de gratidão, falarei da conduta verdadeiramente apostólica de S. M. o imperador da Áustria.
[2540]
O feliz evento da solene abertura do canal de Suez, que teve lugar em meados de Dezembro de 1869, fez chegar o reflexo do seu esplendor às santas missões do Oriente e, em especial à do Egipto. Entre a realeza europeia assistente às festas, que Sua Alteza o quedive do Egipto Ismail Paxá fez preparar com esplendor e magnificência orientais, estava também S. M. o Imperador da Áustria. Esta presença no Egipto do nobre descendente dos Habsburgo, se, do ponto de vista humano, era uma grande honra para o memorável momento da inauguração de uma obra de glória e alcance mundiais, no aspecto religioso, segundo as misteriosas disposições da Providência, foi um acontecimento sumamente feliz para o Catolicismo. De facto, tornou-se num verdadeiro apostolado em favor das missões católicas. Quando um imperador tão poderoso não desdenha prostrar-se perante o sepulcro do Salvador e oferecer testemunho da sua veneração pelos Lugares Santos, santificados pela presença do Homem-Deus durante a sua vida terrena, na Terra Santa e no Egipto dá com isso um exemplo magnífico e eloquente. Tão-pouco deixou de manifestar a sua estima aos sacerdotes destes santuários, que nestas terras pregam aos infiéis o Evangelho da paz e de todo o bem. Tanto é assim que, apenas chegado à santa cidade de Jerusalém, o grande monarca se ajoelhou aos pés de um pobre frade franciscano e confessou-se para, depois, receber o pão dos anjos no Sepulcro daquele que é Rei dos Reis e Senhor dos Exércitos. Este foi um espectáculo edificante não só para os católicos mas também para os turcos e hereges. À sua chegada a Suez e ao Cairo, a sua primeira preocupação foi assistir à santa missa nos modestos templos que aí existem e só depois visitou as soberbas e gloriosas maravilhas dos séculos passados.
[2541]
O dia 23 de Novembro será para mim uma data eternamente memorável. Esse dia Sua Majestade imperial, às onze da manhã dignou-se receber o corpo diplomático e os cônsules do Egipto. Uma hora antes, o rev.mo mons. Ciurcia reunia na sua residência os bispos dos católicos orientais unidos e os superiores dos institutos e, às onze, apresentávamo-nos no magnífico palácio de Jazirah. Logo que S. Majestade imperial teve notícia da nossa chegada, nós, os representantes da religião católica no Egipto, entrámos imediatamente, sem ter pedido audiência, e o corpo diplomático teve que esperar. À breve e vibrante alocução de mons. Ciurcia, o imperador respondeu com palavras de benevolência e de estímulo, prometendo procurar ajudar e proteger os interesses da religião católica no Oriente. O imperador dirigiu-se depois a cada um dos bispos e superiores dos institutos com algumas palavras amáveis. Sua Majestade Imperial dirigiu-se também à minha humilde pessoa e com particular afabilidade expressou-me o interesse que sente pela regeneração da África Central, da qual o imperador sempre foi valioso protector desde a fundação do vasto vicariato. Tal reconhecimento e consideração que o Catolicismo e seus representantes espirituais experimentaram da parte de tão grande monarca não deixaram de produzir sobre os turcos uma favorável impressão.
[2542]
Viram que um imperador professava perante todo o mundo a mais sincera estima e respeito pela sua santa religião e que tratava todos os seus sacerdotes, a começar pelos bispos, com a mais cordial gentileza. Disso tiraram certamente como consequência evidente que, da sua parte, não deviam pôr mais obstáculos ao apostolado católico, mas conceder plena liberdade à nossa santa religião e que os missionários e representantes desta santa religião no Oriente deviam ser respeitados; porque, doutro modo, um soberano europeu tão poderoso poderia denunciar a sua prepotência e injustiça. Dado que esta maneira de proceder do imperador da Áustria teve consequências muito favoráveis para o apostolado, deve ser conservada para eterna memória nos anais da missão e os missionários recordá-la-ão com imperecível gratidão. Entre as personalidades ilustres que presenciaram a abertura do canal de Suez e que com a sua visita honraram os nossos institutos, devo recordar também Sua Alteza Real o arquiduque Rainiero com a sua distinta consorte, assim como o arquiduque Ernesto, os quais se entretiveram todos amenamente com as jovens negras, interessando-se com a máxima condescendência por saberem coisas a seu respeito.
II
[2543]
A obra da regeneração da Nigrícia é uma tarefa difícil e urgente em grau supremo e enorme. Para realizar em linhas gerais o projecto como o concebi e para lhe dar uma base duradoira, necessitar-se-ia da participação maciça de todos os católicos do mundo, unidos no mesmo esforço: assim se libertariam estes pobres negros da noite do paganismo e se faria resplandecer sobre eles a luz vivificadora da fé em Jesus Cristo. Devemos pensar sempre que são a décima parte do género humano! Não encontro palavras para descrever a dor que sinto e a profunda angústia do meu coração, e com que gravidade e intensidade pesa sobre mim a preocupação pela desolação e pelo letargo em que esses infelizes se encontram mergulhados! Eu fui testemunha ocular das cadeias espirituais e da profunda miséria desses desditosos. O pensamento de que uma miséria humana tão enorme pesa sobre a minha querida Nigrícia, tira-me muitas noites o sono e de manhã levanto-me mais cansado que quando me deitei, após um dia de intenso trabalho. E nestas noites longas e cheias de angústia, antes de me aperceber, a minha imaginação corre até às abrasadas terras da África Central, ainda inexploradas e cenário das condições mais deprimentes. Depois, com o pensamento, percorro toda a Europa desenvolvida e olho à minha volta para ver se surge um raio de esperança, que possa beneficiar os meus pobres negros!
[2544]
Ah! Eu prostro-me, pois, nova e resolutamente aos pés dos monarcas e dos grandes deste mundo para lhes suplicar com rios de lágrimas que abram a mão e gastem uma parte dos seus tesouros na salvação desses infelizes. Deixo, depois, que o meu olhar deslize sobre a parte eleita do rebanho de Jesus Cristo, contemplando os mais florescentes seminários das proeminentes dioceses do mundo católico e neles quereria escolher para mim os jovens mais fortes, a flor e a esperança do sacerdócio, para os incitar a que voltem com gesto heróico as costas ao mundo, deixem a sua pátria e corram em ajuda daqueles infelizes para romper as cadeias da sua escravidão e levar-lhes a boa nova, a fé católica.
[2545]
Uma noite fiquei mergulhado em tais pensamentos, pouco depois de voltar do leito de morte de um pobre homem que vivia nas margens do Nilo, onde se encontram as famosas pirâmides que são verdadeiro símbolo da escravidão do povo hebreu, que foi utilizado na construção destas antiquíssimas e célebres edificações e nelas derramou o seu suor. E como um relâmpago iluminou o meu espírito a ideia de aproveitar o santo concílio ecuménico e apresentar-me a todos os bispos do mundo católico, reunidos junto do túmulo de S. Pedro para falar com o Vigário de Jesus Cristo sobre os assuntos de maior interesse para a Igreja Católica e sobre a sua influência em todo o mundo. Durante algum tempo trouxe esta ideia no meu espírito. Depois rezei e fiz rezar por mim os melhores entre os primeiros frutos da Nigrícia regenerada. Após ter consultado longamente os meus companheiros de missão e depois de um reflectido exame, resolvi partir para Roma, onde, pela rota de Messina, cheguei a 15 de Março, dia do meu aniversário. Considerado a fundo tudo o que podia favorecer mais o meu projecto e mantidos frequentes colóquios com os mais insignes prelados do concílio ecuménico, especialmente com o cardeal Barnabó, fui convidado a preparar um Postulatum pro Nigris Africae Centralis, que devia possuir as qualidades necessárias para depois ser tomado em consideração pela assembleia conciliar.
[2546]
Assim, mediante singular ajuda da graça divina e com um trabalho indizível, consegui submetê-lo à comissão. Tive que visitar seiscentos bispos, grande parte dos quais subscreveram o Postulado. Essa comissão era formada por cardeais, patriarcas, arcebispos e bispos e tinha sido nomeada por Sua Santidade Pio IX para recolher e examinar as propostas dos padres do concílio. O meu Postulado foi por ela aprovado, porque o objectivo que continha era útil à Igreja universal e por isso deu o seu consentimento para que fosse submetido ao concílio. E finalmente a 18 de Julho de 1870, dia memorável para a Igreja católica, o secretário da Comissão de Postulados, mons. Alexandre Franchi, arcebispo de Tessalónica, apresentou-o a Sua Santidade. Pio IX dignou-se assiná-lo e determinou que no concílio fosse tratado sob a rubrica «De missionibus apostolicis».
[2547]
Em poucas palavras, não posso enumerar todos os benefícios que o Postulado trará no futuro, porque recomenda à Igreja universal a grande questão da Nigrícia e da África Central. Os bispos do concílio acolheram-no com grande interesse, apesar de então todos os ânimos estarem ocupados sobretudo com a capital questão da infalibilidade, de modo que ela absorvia quase toda a atenção. Dos benefícios que o Postulado põe em relevo, quero assinalar apenas dois:
[2548]
1. Logo que fosse discutido no concílio o grande problema a que alude o Postulado e com uma decisão conciliar se emitisse uma sentença em favor do apostolado da Nigrícia, esta resposta serviria sem dúvida para recordar eternamente o dever de proteger todos os povos negros da África Central e pelos séculos todo o mundo católico a consideraria como algo emanado do coração do santo concílio ecuménico e como um perpétuo chamamento dirigido a todos os povos da cristandade católica: o de promover com zelo a conversão dos negros e ajudar sempre as missões da África Central até que a Nigrícia se tornasse cristã.
[2549]
2. Uma vez sancionado solenemente pelo Concílio Ecuménico Vaticano o princípio do apostolado da Nigrícia, em seguida veremos os seus maravilhosos resultados. Não só sairão das dioceses católicas, para a África Central, apóstolos e colaboradores cheios de zelo, mas também os católicos de todo o mundo, mediante contribuições em dinheiro, apressar-se-ão a proporcionar os meios materiais necessários para que todas as empresas que se devem pôr em andamento para a conversão da Nigrícia consigam os maiores progressos.
[Segue o Postulado e a carta com que Comboni pede aos padres conciliares a subscrição do mesmo]
III
[2550]
Provavelmente, o Postulado serviu também de acicate para que se levasse a cabo a última pequena expedição ao Egipto, que organizei em finais de Outubro do ano passado. Nas páginas que se seguem contarei como se deu o primeiro impulso.
Era o dia 29 de Junho, dia consagrado à comemoração dos gloriosos príncipes dos Apóstolos. A Basílica Vaticana dispunha-se a oferecer ao mundo um espectáculo único. O chefe supremo da Igreja ia celebrar o pontifical e ia-se fazer gala de toda a majestade, de todo o esplendor e beleza do culto externo da Igreja de Jesus Cristo. Nunca tal cerimónia havia sido tão sublime e magnífica como prometia sê-lo nessa ocasião, pela presença dos padres do concílio, que em número superior a seiscentos, com as suas ricas e preciosas vestimentas, faziam a sua aparição na principal basílica do mundo.
[2551]
Para lhes conseguir um lugar o mais favorável possível e uma vista melhor, algumas distintas personalidades tinham-me pedido que as acompanhasse ao Vaticano e as colocasse junto à Confissão de S. Pedro, do lado do Evangelho. Na realidade, não só desejavam ver bem a cerimónia do pontifical, mas também que eu lhes dissesse o nome de cada bispo que passava a nosso lado para se dirigir ao coro de S. Pedro. Sabiam que eu podia informá-los muito bem, porque os conhecia quase a todos, por ter tido colóquios com eles por causa do Postulado ou por os ter conhecido nas suas dioceses ou anteriormente em Roma, noutras circunstâncias. Quis a sorte que, enquanto passava por este lado o cortejo dos cardeais e prelados e eu dizia o nome de cada um, muitas pessoas se acercaram e se puseram à minha volta para também ouvirem os nomes. Entre elas estava um jovem cónego da arquidiocese de Trani, na região de Nápoles, o qual, sem eu ter reparado particularmente nele, era quem prestava mais atenção às minhas palavras. Passavam um após outro tantos prelados que aquilo parecia um nunca mais acabar. E depois de um deles ter passado ao nosso lado, o jovem clérigo aproximou-se e perguntou-me: «Quem é esse prelado?» Respondi-lhe logo: «É mons. Bianchi Dottula, arcebispo de Trani, Nazaret e Barletta, e perpétuo administrador da diocese de Bisceglie.» O clérigo sorriu com ar de aprovação e foi ter com seus amigos; então deixei de lhe prestar atenção. Nesse instante apareceu o Santo Padre na cadeira gestatória, subiu ao trono e começou o pontifical. Eu acerquei-me dos bispos e falei em árabe com alguns prelados orientais. Com outros que estavam à minha volta, via-me obrigado a falar noutras línguas, porque naquela ocasião Roma era um universo.
[2552]
Observei então como o jovem eclesiástico me seguia passo a passo e captava cada palavra quando eu falava em latim, italiano ou francês. Dois meses mais tarde me confessaria que ele então não se atrevera a falar-me, mas que tinha pedido a um dos seus companheiros que me dirigisse a palavra. Tendo eu satisfeito o seu companheiro com uma resposta cortês, o jovem ganhou ânimo e começou comigo o seguinte diálogo: «Perdoe a pergunta, senhor, mas o senhor deve ter na mente um assunto muito importante para empreender essas viagens que ouvi dos seus lábios!» «O objectivo das minhas viagens – respondi-lhe – é recolher esmolas e meios de subsistência para a minha missão e procurar missionários animados de verdadeiro espírito de abnegação e zelo, que me ajudem na minha grande empresa.» Quando o clérigo ouviu esta resposta, os seus olhos encontraram-se com os meus, num olhar cheio de vivacidade e ardor. Falei depois novamente com os outros e disse-lhes o nome dos príncipes e princesas que estavam na tribuna dos príncipes. Porém, o meu clérigo não tardou em voltar à carga com esta pergunta súbita: «Que missão lhe pareceria a si mais adequada para um napolitano?» «A Missão da África» – respondi-lhe sem hesitação. Isto excitou ainda mais o jovem clérigo. Então a minha mente iluminou-se com a ideia de ganhar este jovem para a causa da África. Separei-me amavelmente dos outros para me dedicar de preferência a ele e sondar o terreno; ele saiu-se com uma nova pergunta: «Oh! Diga-me, em que parte é o senhor missionário?» «No Egipto», sem me alargar a explicar-lhe que era missionário da África Central. O jovem clérigo não tardou a acrescentar: «Que feliz seria eu se pudesse ser missionário sob a sua direcção! Mas o Egipto não é a missão que eu escolhi para mim, mas a África Central, a Nigrícia; porque, tendo lido o Postulado pro Nigris Africae Centralis proposto ao concílio por um certo abade Comboni, do qual também li o “Plano para a Regeneração da África”, apoderou-se de mim a mais profunda simpatia por esses povos.
[2553]
Sim; parece-me que não existe no mundo nada mais importante nem meritório que esta sublime tarefa. Embora eu já me tenha apresentado ao meu arcebispo e ele, por mim, se tenha posto em contacto com um bispo lazarista da América, para que eu me possa dedicar à sua missão, eu, após ler o Postulado e o Plano, que o meu arcebispo me havia entregue, fui tomado de um amor tão forte pela África Central, de uma simpatia tão viva por esses povos, que o meu arcebispo só me disse: “Reze para que o Senhor lhe manifeste a sua vontade.” O senhor não ouviu falar da Nigrícia e daquela grande obra missionária?» Eu não sabia o que me acontecia, ao ouvir aquele jovem a falar assim! «Sim – respondi-lhe – conheço essa obra missionária da Nigrícia. Como os missionários que vão para a África Central devem passar pelo Egipto, tive ocasião de conhecê-los a todos e estou muito bem inteirado do objectivo da sua missão.» Oh, como me alegro – disse o jovem clérigo – de que esteja ao corrente de tudo isso. Então deve também conhecer aquele que trabalha para essa obra, o abade Comboni!» Claro que sim – respondi – conheço-o muito bem.» «É com ele com quem tenho que falar. Já perguntei ao meu arcebispo onde mora Comboni, mas não soube dizer-mo. Ele disse-me que o conhece muito bem e aconselhou-me a que perguntasse a direcção de Comboni ao bispo de Verona, que certamente a saberia. Quando terminar o pontifical, irei ter com ele para lhe pedir essa informação. Então eu disse-lhe: “Eu também posso dizer-lhe onde mora Comboni, se quiser. É na Piazza di Gesù, n.o 47, 3.o piso”. “Muitíssimo obrigado!” – exclamou o jovem eclesiástico todo satisfeito, e tomou nota da direcção. “Agora já não preciso de ir à procura do bispo de Verona, vou direitinho ter com Comboni.” “Meu amigo, se pretende lá ir agora, será inútil: ele nunca está em casa. É um incorrigível vagabundo e sempre tão sobrecarregado de trabalho que só vai a casa para dormir. Em todo o caso, se quiser encontrá-lo, vá amanhã, às duas da tarde, à direcção indicada. Talvez, quando voltar cansado do passeio a S. Paulo Extra Muros, o encontre em casa.”
[2554]
A marcação da visita para o dia seguinte foi propositada, para ter tempo de me informar em pormenor sobre este homem junto do seu ilustríssimo arcebispo, antes de começar a tratar com ele e lhe dar uma resposta. “Então amanhã às duas da tarde irei visitar o abade Comboni.”
Esta conversa tinha tido lugar enquanto Pio IX celebrava o pontifical. Quando o Santo Padre com a sua voz sonora, que ecoava clara e perceptível pela imensa basílica, cantou o Pater Noster, o jovem clérigo, que tinha sabido pelos circunstantes que Comboni era eu, aproximou-se de mim e disse-me: «Com que então o senhor é o abade Comboni!» «Suponhamos que seja» – respondi. «Então – acrescentou – desde este momento consagro-me à sua grande empresa e quero expor-me a todos os perigos do apostolado da Nigrícia. Disponha imediatamente de mim e trate-me, se quiser, como um pedaço de madeira. Só uma coisa lhe peço: vá ter com o meu arcebispo e convença-o a deixar-me dedicar à sua obra. Confio que Deus, mediante mons. o arcebispo, me concederá essa graça. Eu submeto-me a si para toda a eternidade e prometo-lhe a mais incondicional obediência.»
[2555]
Que admirável disposição! E que bom és, ó meu Deus! No momento em que o jovem clérigo me prometia solenemente entregar-se de corpo e alma à obra missionária da Nigrícia, aí, a poucos passos do túmulo dos príncipes dos apóstolos, na presença do Vigário de Jesus Cristo e dos representantes do Catolicismo, o rev.mo arcebispo de Trani oferecia ao bispo de Verona, para as missões de África, o jovem clérigo Pascoal Fiore.
Terminado o pontifical, recomendei ao novo aspirante que redobrasse as suas preces a Deus e à Rainha dos Apóstolos para poder conhecer a vontade do Céu. Tendo eu ido visitar o bispo de Verona, ele, ao ver-me, disse-me que a Divina Providência talvez nos tivesse concedido como colaborador na obra africana um homem insigne, na pessoa de um excelente jovem clérigo, que lhe tinha sido oferecido pelo arcebispo de Trani. E encarregou-me de falar com este e que examinasse o candidato para ver se ele tinha autêntica vocação. Isto teria sido inútil, evidentemente, porque nos teria bastado o juízo de mons. Bianchi Dottula, prelado distinto, profundo conhecedor do coração humano e que sabia compreender profundamente a importância e a grandeza desta actividade missionária, à qual o novo candidato queria dedicar-se.
[2556]
Quando, ao anoitecer, fui visitar o arcebispo de Trani, este narrou-me toda a história da vocação de Pascoal Fiore ao estado eclesiástico. E confessou-me que verdadeiramente fazia um grande sacrifício ao desprender-se de um dos eclesiásticos mais insignes e mais zelosos da sua diocese. Porém, dado pensar que era aquela a vontade de Deus, estava completamente disposto a isso e dava-lhe de boa vontade a sua autorização. Contudo, antes de tomar uma decisão em coisa tão importante, foi nosso dever fazer um tríduo à Mãe de Deus, para poder conhecer a vontade divina. Chegados ao terceiro dia do tríduo, a dois de Julho, Visitação da Virgem, voltei a visitar o bispo, o qual, logo após uma breves palavras, disse-me que Deus tinha efectivamente chamado o clérigo Fiore para o apostolado da África; e assim ficou a coisa. Fiore contou-me mais tarde como lhe tinha surgido a vocação missionária, na qual se reconhece claramente a mão de Deus. Combinámos que em primeiro lugar voltasse a Nápoles para deixar regulados os assuntos da sua vasta paróquia e da sua família. No Outono eu chamá-lo-ia para Verona, para o Colégio das Missões Africanas, e aí, o bispo de Verona e eu encarregar-nos-íamos de lhe confiar o trabalho mais adequado para o bem da grande obra.
[2557]
Será certamente do vosso interesse tomar conhecimento dos pormenores que levaram Fiore a decidir-se pela África.
O eclesiástico Fiore é um jovem sacerdote de trinta anos, cuja família, bem acomodada, vive na cidade de Corato. A sua mãe, uma senhora distintamente devota, de quarenta e oito anos, alimentava para com o filho um amor extraordinário e ele, por sua parte, correspondia ao amor materno com a mesma intensidade de afecto, de modo que só vivia para Deus e para a sua mãe. A este intenso amor para com ela se deveu que no início da sua carreira sacerdotal se não orientasse para as missões estrangeiras, pelas quais se sentia fortemente atraído. Em casa recebeu uma óptima educação e no seminário da sua diocese distinguiu-se de tal maneira pela sua capacidade intelectual, pela sua piedade e pela sua afeição ao estudo, que no fim do seu curso teológico o seu arcebispo o escolheu para resolver alguns assuntos eclesiásticos de grande importância. Mostrou nisso tanta prudência, solicitude e habilidade, que, com apenas 26 anos de idade, lhe foi confiada a grande paróquia de Corato, que contava com 32 000 almas. Realmente admirável foi o seu espírito de abnegação no tempo da cólera, que, por duas vezes, irrompeu de maneira horrível nesta cidade. Em 1867, na época da mais violenta manifestação dessa doença em Corato, morriam todos os dias de 140 a 150 pessoas. A grande actividade de Fiore e o zelo verdadeiramente apostólico que demonstrou nesta tribulação da sua cidade deram como resultado que o arcebispo, a pedido de muitos, o nomeasse cónego do capítulo de Corato e teve, além disso, que exercer as pesadas funções de pároco e de confessor de muitas religiosas nos mosteiros daquela região.
[2558]
A prática diária do seu trabalho espiritual não o impedia de mostrar à sua mãe as mais ternas provas de afecto. Quando ao meio-dia voltava a casa, a primeira coisa que queria era ver a sua mãe e o mesmo sempre que se dispunha para sair para a igreja: ambos pareciam incapazes de viver separados. Contudo, ao sentir de modo cada vez mais viva a vocação de consagrar a sua vida às santas missões, a inquietação apoderou-se do seu ânimo, temendo que este carinho intenso para com a mãe pudesse converter-se num grave obstáculo para a realização do seu projecto. Quantas vezes esteve prestes a cortar essas ligações do sangue, fugindo assim para um mundo longínquo para poder oferecer a sua alma só a Deus! Quantas vezes resistiu a custo à tentação de abandonar a casa para entrar num instituto missionário! Mas sempre ficava vencedor o amor pela mãe.
[2559]
Encontrava-se neste estado a sua alma, quando um assunto de trabalho de particular urgência o chamou a Roma; só com grande pesar conseguiu separar-se uns dias da sua querida mãe. À sua chegada a Roma, encontrou um companheiro sacerdote que queria fazer os exercícios espirituais numa comunidade religiosa, mas ainda não tinha encontrado a ocasião. Sucedeu que um dia, tendo Fiore ido celebrar aos jesuítas, viu um aviso no qual se anunciavam os exercícios espirituais nos padres jesuítas de St.o Eusébio e a data do seu começo. Perguntou então a um padre jesuíta se o seu amigo podia participar nesses exercícios. Tendo obtido resposta afirmativa, logo que lhe foi possível, correu a dar a notícia ao seu companheiro. Este, por sua vez, convidou Fiore a fazer os exercícios com ele; porém, num primeiro momento, o jovem eclesiástico negou-se a isso, alegando que os tinha feito há pouco. Contudo, perante a insistência do amigo, decidiu-se a acompanhá-lo a S.to Eusébio. Lá vieram a saber que só havia lugar para um; perante isso Fiore retirou-se triste, porque sentia agora que uma voz interna o incitava cada vez mais a fazer os exercícios precisamente então e também porque se lhe havia oferecido a ocasião. Falou sobre isso com o seu arcebispo, que o aconselhou a voltar a St.o Eusébio e a experimentar de novo a ver se o admitiam. Com insistentes súplicas, conseguiu dos bons padres o seu intento. Dava os exercícios o célebre P.e Curci S. J. Fez cinco palestras sobre a vocação do homem. Nelas mostrou-se um pregador tão sumamente electrizante, descreveu com tal força os argumentos e tão ao vivo as vaidades deste mundo e a caducidade de todas as coisas terrenas, que o clérigo Fiore já não titubeou um instante quanto ao abraçar a actividade das missões estrangeiras e deixar a mãe por quem sentia tanto carinho. O amor às infelizes almas que ainda gemiam sob o jugo de Satanás e a ânsia por as libertar e redimir prevaleceu sobre o amor à mãe! Então deu a conhecer totalmente o seu estado de ânimo ao arcebispo e solicitou que lhe indicasse uma missão, onde lhe fosse possível oferecer a sua vida pela salvação das almas. O prelado falou a tal propósito com um bispo americano e Fiore já estava prestes a tomar com ele uma decisão definitiva, quando a Providência, como já disse, dispôs as coisas de outro modo.
[2560]
Deus deu-nos, além disso, outro homem insigne, cuja experiência como cura de almas nos será de grande utilidade para a infeliz Nigrícia. Trata-se de P.e José Ravignani, de 36 anos, pároco de Povegliano, que desempenhou a sua função com grande sabedoria e extraordinária entrega durante mais de onze anos e que deixou entre os paroquianos tal recordação de bondade que nunca esquecerão o seu pároco. Muito tempo atrás já tinha desejado dedicar-se às santas missões; porém, surgiram no seu caminho bastantes obstáculos não previstos, que lhe fizeram protelar a decisão.
Na sua paróquia desempenhava um trabalho tão bem organizado e excelente, que era como se desenvolvesse na sua terra as actividades que teria querido desenvolver no estrangeiro. O seu modo de actuar era sempre como se aquele fosse o último acto da sua vida; estava sempre impregnado de generosidade para com os homens e com o olhar posto unicamente na salvação das almas.
[2561]
Em Dezembro de 1869 foi convidado a ir a Jerusalém para um assunto importante. Chegado ao Egipto, visitou os nossos institutos e viu quanto bem se fazia neles. E depois de conhecer a fundo o espírito que aí imperava, que outra coisa não era senão o desejo da promoção e salvação das almas dos homens mais abandonados e infelizes desta Terra, amadureceu nele a decisão de se dedicar ao apostolado da África Central. Continuou a sua viagem pela Terra Santa, visitou os santos lugares, que foram banhados pelo suor e sangue do Divino Salvador, e a sua alma, profundamente devota, à vista do calvário, do santo sepulcro, da gruta de Belém, foi invadida pelo fervor mais intenso. No Gólgota dominou-o um ardentíssimo desejo de poder dar ele também a sua vida pelo mesmo ideal pelo qual deu a sua e todo o seu precioso sangue um Deus em forma humana. Depois voltou ao Cairo, apresentou-se aos nossos missionários e ofereceu-se-lhes para a missão. Porém, como eu já tinha partido para Roma para recomendar a nossa grande causa dos negros aos representantes da Igreja, aí reunidos em concílio, também ele foi a Roma e pôs-se à disposição de mons. Canossa, bispo de Verona, para a nossa obra missionária. Depois de um maduro exame e de nos termos informado sobre ele, mandámo-lo naquele momento para Verona, ficando fixada para Setembro a nova expedição ao Egipto, a que devia juntar-se Ravignani.
[2562]
Também Pedro Bertoli, veneziano, é um homem verdadeiramente excelente. Pertenceu bastante tempo ao instituto dos Ministros dos Enfermos e, durante dez anos, foi enfermeiro-chefe do grande hospital de Mântua. Possui destacadas qualidades e saúde robusta e é de uma conduta moral intocável. Se tivesse realizado estudos regulares, teria tido bom sucesso também na carreira eclesiástica; mas a pobreza da sua família era demasiado grande e viu-se obrigado a ficar em casa e a trabalhar no ofício do seu pai. Contudo, quando este morreu, Pedro Bertoli dedicou-se a cuidar dos doentes entre os oblatos de S. Camilo. E em Mântua, mediante uma atenção assídua aos doentes no grande hospital – onde há seiscentos doentes – e em virtude do contacto com os médicos mais experimentados da cidade, teve a mais favorável ocasião de adquirir muitos conhecimentos teóricos e práticos de medicina e cirurgia. Tendo-se mostrado tão útil neste campo em Itália, não deixará de sê-lo também nas missões entre os negros, onde pode funcionar como primeiro médico africano. A sua vocação para as missões da África tinha-se manifestado havia mais de três anos, pelo que decidi mandá-lo para o Cairo.
[2563]
Devo recordar também o irmão leigo Domingos Polinari; é um mestre exímio de agricultura, que domina a fundo. Possui também outros conhecimentos úteis.
[2564]
De sóror Josefina falarei noutra ocasião. Nasceu em Tiberíades, junto ao histórico lago que tem um papel de primeira importância em tantos relatos bíblicos. Entrou no noviciado em Belém da Judeia. Depois foi chamada para um mosteiro de Jerusalém e, mais tarde, para Deir el-Zamar, na Síria, onde durante muito tempo ensinou meninas árabes. Finalmente, a sua superiora geral, Ir. Emilie Julien, que numa ocasião a tinha mandado para Marselha, entregou-ma a mim; teve que entrar no nosso Instituto do Sagdo. Coração de Maria. Em fins de Outubro, eu mandei-a para o Cairo pela rota de Messina.
[2565]
Em Setembro, a nossa pequena expedição tinha que partir para o Egipto, mas faltavam os meios económicos. A horrível guerra que tinha estalado entre duas poderosas nações, que apesar de tudo deviam ser consideradas das mais civilizadas do mundo, mantinha absorvidos os ânimos e impedia-os de se interessarem pelas nossas missões. Só Deus sabe quando haverá de novo no mundo uma paz segura e duradoira. Compreendo quanto tem que sofrer a generosa Alemanha pelas dolorosas consequências da guerra, desse inimigo do género humano, ainda que tenha tocado o cume da glória e alcançado as mais brilhantes vitórias. Apesar disso, foi a magnânima Sociedade de Colónia que me ofereceu novamente os meios para a pequena expedição ao Egipto. A bordo do Saturno, os participantes saíam no dia 30 de Outubro de Trieste, aonde eu os tinha acompanhado, e, depois de espantosas tempestades, desembarcaram em Alexandria, para a 8 de Novembro de 1870 chegarem ao Cairo.
[2566]
E eu?... Um capitão deve encontrar-se sempre onde a sua presença é mais urgente e importante para a luta e onde a sua direcção promove melhor a grande obra. No Egipto, a obra da nossa missão arrancou esplendidamente; os nossos institutos, por assim dizer, podem deixar-se entregues a si mesmos. Uma só coisa lhes falta: os meios de subsistência, o dinheiro. E porque o mundo jaz numa obscuridade geral e o horizonte aparece por toda a parte fusco de modo que não se sabe onde encontrar ajudas certas para o futuro, eu permaneço na Europa, onde me industrio para encontrar meios como melhor posso. Porém, em condições tão tristes, que meios posso eu encontrar na Itália ou na França? É inútil esperar uma ajuda financeira nestes países. E a Alemanha católica? A Alemanha católica é a nova Roma: cura todas as feridas e são inesgotáveis a sua generosidade e as suas fontes de beneficência. Os senhores não diminuirão as ajudas, pelo mandato de defesa e protecção da Nigrícia que a Providência vos confiou. Os senhores colaboraram na fundação da obra santa, que, no meio de tempestades espantosas, da sua incerteza, se tornou realidade; os senhores contribuem para que ela continue. Certamente que a guerra faz com que muitas fontes de ajuda se sequem, que o comércio enfraqueça e que o óbolo da viúva e do órfão se torne cada vez mais difícil; porém, permitam-me que o repita, a generosidade da Alemanha é inesgotável! Pensem no espantoso, inaudito derramamento de sangue na presente guerra, que devora centenas de milhares de vidas humanas: pois bem, isso não dá senão uma pálida ideia da grande miséria em que jazem milhões de pobres filhos de Cam. Portanto, coragem: «Non pervenitur ad magna praemia nisi per magnos labores – não se conseguem grandes êxitos a não ser com grandes fadigas.» A vossa beneficência, que nunca falha, já salvou muitas almas, porque socorreu e deu vida a uma obra que é a mais católica do mundo. A constância, a imperturbabilidade nas suas obras de caridade contribuem também para a consolidar e engrandecer.
[2567]
A fim de que os institutos do Egipto e as obras missionárias, que em breve surgirão também no solo da África Central, levem o selo de uma fundação duradoura, em 1867, sob a protecção do rev.mo mons. Canossa, abri em Verona um pequeno colégio para as missões africanas, para nele se formarem sacerdotes europeus, com o intuito de que os nossos institutos e a missão da África Central tenham sempre desta forma novos missionários e cooperadores. Nomeei superior do colégio o piedoso e douto P.e Alexandre Dalbosco, que antes trabalhara comigo como missionário na África Central. Não se podia pensar noutra pessoa mais indicada para esse lugar. Um homem austero de costumes, profundo conhecedor da alma humana e dos obstáculos da actividade missionária na África Central, amável no trato, convincente nos seus argumentos, muito versado em dogmática, moral, direito canónico, leis canónicas orientais, história e costumes do Oriente, conhecedor também das tribos negras e das línguas árabe, italiana, alemã, francesa, inglesa, nubiana e grega. A nós pareceu-nos que com este homem o Céu tinha dado uma prenda à obra nascente pela qual ele deu a vida. Mas infelizmente ele sentiu-se afectado pelos estragos do apostolado da África, tanto mais que sofria de uma doença abdominal, que começara a manifestar-se em Cartum, e que, no laborioso desempenho do seu ministério, tinha descurado nos quatro anos passados em Legnago. Assim, ao voltar da assembleia geral de Bamberg, caiu de cama por uns meses e a 15 de Dezembro de 1868 morreu, deixando novamente órfão o pequeno colégio missionário de Verona, bem como a Obra do Bom Pastor, na qual exercia o cargo de secretário.
[2568]
Esta foi uma amarga perda para o colégio de Verona. De facto é extremamente importante que os institutos do Egipto e este colégio de Verona se dêem as mãos e caminhem em sintonia, completando-se reciprocamente, a fim de que possamos alcançar o único sublime ideal, isto é, a implantação estável da fé cristã na África Central. Por isso tive que ficar em Verona, onde permanecerei algum tempo ainda, para dar o melhor rumo a este colégio e consolidá-lo, sobretudo por desejo do rev.mo card. Barnabó, que, com o seu peculiar gracejo, me disse já várias vezes estas palavras: «Meu caro Comboni, de duas uma: ou me garantes por escrito que vais viver por mais 35 anos, ou me estabeleces solidamente esse colégio de Verona, de modo que dê bons missionários para a África. Tanto num como noutro caso, tens possibilidade de desenvolver uma grande actividade missionária na África Central. Porém, se não me não organizas e pões em andamento o colégio de Verona ou se te acontece algum acidente que te leve para o outro mundo, talvez a tua bela obra acabe por se desfazer em fumo!» Como até agora não encontrei ninguém que me assegure que vou viver outros trinta e cinco anos e nem sequer um só dia, é mister que me esforce para consolidar o colégio de Verona. Se bem que com toda a sinceridade do meu coração eu exclame “servus inutilis sum” e embora eu saiba muito bem que pouco ou nada posso, contudo nisto dou perfeitamente razão ao cardeal, que é o responsável da Propaganda. Um servo de Deus, o venerável Benaglio Corte, de Bérgamo, falecido em 1836 em odor de santidade, cuja causa de beatificação está prestes a ser introduzida, disse: “As grandes obras de Deus não são levadas a cabo nem por sábios nem por santos, mas por aqueles que receberam a inspiração de Deus”.
[2569]
Esta sentença, que também os santos padres proferem, serve-me de grande consolo, porque estou demasiado certo de que me falta muito para a santidade e para uma ciência profunda e até de que careço basicamente da perfeição e da prudência dos santos. E não obstante, estou convencido de cumprir a vontade de Deus, fazendo-me promotor da obra africana. Deus, através do seu Vigário na Terra, confiou-me esta missão e eu dou a minha vida por esta santa obra que empreendi.
Tive, portanto, que me aplicar com toda a minha energia ao colégio de Verona, porque ele tem que me formar, para a obra da evangelização da África Central e para os institutos do Egipto, colaboradores da mais elevada capacidade. E espero que, em seguida, esses, com a graça de Deus, no campo da sua actividade missionária, produzirão muitas conversões e que, tanto no Egipto como na Nigrícia, as nossas missões venham a ter um verdadeiro florescimento. Se depois os magnânimos católicos da grande nação alemã se persuadirem destes sucessos, será cada vez maior e mais fervoroso o seu zelo pelo aumento e desenvolvimento da santa empresa e farão fluir, de modo continuamente crescente, os seus donativos para a Sociedade de Colónia, que assim estará em condições de nos conceder ajudas cada vez mais abundantes. De tal modo, a partir de Colónia e de Verona, manter-se-á igualmente em desenvolvimento a missão africana e então a meta final não estará muito longe: ocorrerá a firme implantação e o triunfo da fé católica em todo o território da Nigrícia.
Incluo aqui ainda um breve programa de toda a actividade na nossa missão, que eu mandei imprimir em folhas soltas na Alemanha.
PROGRAMA DA REGENERAÇÃO DA NIGRÍCIA
[2570]
A religião cristã, fonte de salvação e base de civilização para os povos, não obstante repetidos e heróicos esforços realizados durante dezoito séculos, não pôde jamais lançar profundas raízes entre os povos da África Central. Aproximadamente a décima parte do género humano, ou seja, cem milhões de infelizes filhos de Adão, pertencentes na sua maioria à raça negra, jazem ainda nas trevas e nas sombras da morte.
A Europa, que tem a missão de levar a civilização a todo o mundo, depois de ter sido ela mesma libertada pela maravilhosa força do Evangelho do jugo do paganismo, deve desenvolver com renovado zelo o seu grande poder no nobre ideal de trabalhar para iluminar e salvar este infeliz e abandonado continente, para o chamar a formar parte do grande rebanho do nosso pastor comum.
[2571]
Para o sucesso desta sublime e útil empresa é necessário que tanto na Europa como nas costas de África se organizem todas aquelas obras que podem introduzir o apostolado católico na África Central, mediante o processo exposto no Plano da Regeneração da África, baseado no princípio de “salvar a África com a África”.
Até agora, a santa empresa abrange quanto se segue, a saber:
I . NO EGIPTO
[2572]
A – A casa do Sagrado Coração de Jesus, dirigida pelos membros do Colégio das Missões Africanas de Verona. O seu objectivo é o seguinte:
1. A educação moral e religiosa dos negros e a sua instrução nas ciências e nas artes que lhes são necessárias para trabalharem como apóstolos, sob a direcção dos missionários europeus, entre as suas tribos da África Central.
2. A possibilidade de que os missionários europeus se aclimatem e obtenham os conhecimentos necessários para um ministério prático no interior da África.
3. Enfim, a instrução religiosa e a conversão dos negros que vivem no Egipto.
A casa do Sagdo. Coração compreende:
a) os missionários
b) os catequistas e os coadjutores
c) o catecumenado e a escola para negros
d) um hospital para os negros abandonados
[2573]
B – A casa do Sagdo. Coração de Maria, dirigida pelas Irmãs de S. José, etc. A sua finalidade é a educação religiosa e moral das negras e a sua instrução nos lavores femininos, a fim de que, com o tempo, possam trabalhar proveitosamente como portadoras da religião e da civilização entre as mulheres da sua terra.
Esta casa compreende
1. as irmãs
2. as negras que se dedicam às missões
3. as aspirantes e as auxiliares
4. o catecumenado e a escola
5. um pequeno hospital para negras abandonadas.
[2574]
C – A casa da Sagrada Família: funciona como escola pública no Cairo Velho e o seu objectivo é instruir, por meio de missionárias negras (cf. B, n.o 2), moças de toda a cor e religião. O ensino centra-se especialmente na fé e moral católicas, nos elementos das ciências e nos trabalhos femininos e é ministrado em várias línguas.
Estes institutos encontram-se sob a jurisdição de S. E. o rev.mo mons. vigário e delegado apostólico do Egipto.
II. NA EUROPA
[2575]
1. O Colégio das Missões Africanas de Verona: o seu objectivo é formar clérigos e jovens sacerdotes para o apostolado da África, bem como para provar a sua vocação e a dos catequistas e coadjutores que queiram servir como ajudantes nas missões de África.
2. O Instituto de Missionárias para a África de Verona: o seu objectivo é a formação de irmãs piedosas e cheias de zelo, destinadas a dirigir os institutos femininos da África Central.
[2576]
3. A Pia Associação do Bom Pastor, que foi canonicamente erigida em Verona e enriquecida com muitas indulgências plenárias por S. S. Pio IX. O seu objectivo é recolher donativos e esmolas para manter o Colégio das Missões Africanas de Verona e o mencionado Instituto de Missionárias para a África.
Sua Ex.a o rev.mo mons. Luís, marquês de Canossa, bispo de Verona, é o presidente da grande obra de regeneração da África.
P.e Daniel Comboni, missionário apostólico da África Central e superior dos institutos de negros do Egipto, é seu vigário e o director-geral desta empresa.
P.e Daniel Comboni
Missionário apostólico da África Central
e superior dos instos. de negros do Egipto