[3584]
Cumprindo o desejo que V. Em.a se dignou exprimir-me na sua venerada carta n.o 4 do passado dia 15 de Abril, apresso-me a redigir-lhe sucintamente uma breve informação sobre o estado actual da missão que me foi confiada, a qual, unida ao relatório que já lhe terá apresentado o P.e Carcereri, meu vigário-geral, poderá dar-lhe uma justa ideia da importante obra que a Divina Providência me pôs nas mãos. E antes de tudo, creio oportuno antepor algumas noções gerais sobre as condições deste laborioso e imenso campo da vinha do Senhor.
[3585]
O vicariato ap. da África Central é, sem dúvida, o mais extenso e populoso do universo.
Tem como limites:
A norte, o vicariato do Egipto e a prefeitura de Trípoli.
A este, o mar Vermelho, os vicariatos da Abissínia e dos Gallas e a prefeitura de Zanguebar.
A sul, os 10o de latitude austral, onde geralmente se situam as supostas montanhas da Lua.
A oeste, a Guiné Meridional e a prefeitura do deserto do Sara.
[3586]
Disto se deduz claramente que o vicariato da África Central abrange uma extensão territorial superior à de toda a Europa. A sua população, segundo os cálculos do meu doutíssimo predecessor, o pró-vigário Knoblecher, ascende a noventa milhões de almas (1). Porém, segundo a minha humilde opinião, baseada em sérias indagações e diligentes estudos, os habitantes do vicariato são mais de cem milhões.
[3587]
Esta população imensa, carenciada em absoluto de toda a civilização, está dividida, na sua maior parte, em tribos independentes. Algumas delas são nómadas. Contudo, não faltam vastíssimos reinos e impérios governados despoticamente em todo o rigor da palavra. Pelo contrário, as tribos apresentam só uma sombra de governo, que geralmente é patriarcal: o chefe de família tem uma grande autoridade; e nos assuntos de interesse público, especialmente a guerra, o chefe da tribo, que, geralmente, é o chefe da família mais rica e poderosa, tem uma autoridade absoluta que todos reconhecem e respeitam.
[3588]
As línguas do vicariato (não os dialectos) são mais de cem e totalmente diferentes umas das outras: diferem em maior medida que o italiano do alemão. Em nenhuma delas se encontram as palavras escrever e ler, porque se desconhecem por completo as letras. Todas as normas de governo, as leis e a história são transmitidas pela tradição. O falecido pró-vigário Knoblecher recolheu os nomes dos números de quarenta e cinco línguas faladas na parte oriental do vicariato, trabalhos que eu mesmo vi e li. Agora, esses preciosos escritos andam extraviados. Em 1859 conseguimos compor um volumoso dicionário e uma gramática das línguas dos Dincas e dos Bari e, no ano passado, no Cordofão, comecei a recolher muitíssimos vocábulos da língua dos Nuba.
[3589]
Todas as línguas da África Central, pelo que até agora pude averiguar, são monossilábicas e de natureza semítica. A língua predominante nos países muçulmanos submetidos à coroa do Egipto é o árabe que, com os séculos, se introduziu em toda a Núbia Inferior e Superior, desde Assuão até Cartum; porém, os séculos de opressão muçulmana não puderam fazer desaparecer a língua original, chamada berberina, que é falada exclusivamente pelos Barabra.
[3590]
Os povos do vicariato são, em geral, de raça negra, excepto os de raça árabe que citarei mais adiante. Há representantes de todas as tonalidades, desde o tipo abexim até à pura cor de ébano e de negro carvão. Existem também tribos de cor ruiva e de cor de sangue, como os Dor, no Centro, e os Abugerid, no Nilo Azul e no Branco. Há, além disso, raças de todas as estaturas, desde as anãs às gigantes. Mas todos eles são guerreiros e desde a infância se adestram no uso das armas, que geralmente consistem em lanças e flechas envenenadas, hastes agudíssimas e paus de ébano e de sunt muito bem trabalhados. Muito frugais, estes povos não são tão libidinosos como se pensa e como costumam ser os que, arrancados das suas terras da Nigrícia, são condenados a viver no meio da corrupção muçulmana. As suas casas são, geralmente, toscas cabanas, cujas portas são como a boca de um forno; a sua cama é o chão nu ou uma pele ou o angareb O clima é, em geral, muito quente.
[3591]
No centro há chuvas regulares por seis ou sete meses todos os anos. Em Berber, Dôngola, Cartum e no Cordofão as chuvas caem por três a quatro meses; quer dizer, nos três ou quatro meses da chuva, o karif, chove oito ou dez vezes abundantemente. Todo o resto do ano o céu está descoberto e sereno. Esta é razão pela qual as casas da missão devem ser sólidas e amplas: doutro modo lá nos vai a vida. O vicariato tem muitos desertos de areia ardentíssima. Porém, a maior parte da África Central está semeada de terrenos muito férteis, que, regados e com a arte humana, poderiam produzir imensas riquezas. Os montes que se erguem em alguns lugares são bastante pequenos em comparação com os da Europa: quase todo o solo do vicariato se estende em imensas planuras abundantes em férteis pastos e cheias de gado de toda a espécie. Há também nelas, em grande número, elefantes, hienas, leões, tigres, panteras, serpentes de enorme tamanho e outros animais ferozes. Os caminhos são escassos; os mais notáveis e para nós mais cómodos são sempre os dos jilabas, ou seja, aqueles por onde passam os traficantes de escravos com os inumeráveis grupos das suas vítimas: são essas as estradas utilizáveis pelos missionários.
[3592]
Quanto à religião, o predominante no vicariato é o feiticismo e a idolatria, nas suas mais estranhas versões. Porém, o Islamismo impera em toda a parte setentrional do vicariato, na Núbia, no Waday, no Cordofão, numa parte do império de Bornu e entre as tribos árabes nómadas, as quais têm a sua origem nas famosas migrações dos séculos vii e xvi, que, procedentes da Arábia, se estenderam gradualmente até muitas tribos do interior. Porém, os seguidores do Alcorão que povoam tão considerável parte do Vicariato, não são tão fanáticos como os do Egipto e da Ásia.
[3593]
Os coptas heréticos, estabelecidos no vicariato desde a época das conquistas egípcias, como escrivães do Governo ou como comerciantes e aventureiros, são cerca de cinco mil e têm uma sede episcopal em Cartum, que hoje se encontra vacante pelos motivos a que aludi em minha carta de 20 de Outubro do ano passado ao em.o cardeal-prefeito (d. p. m.).
[3594]
Também há uns dois mil gregos cismáticos, mais um pequeno número de protestantes luteranos e anglicanos, e alguns judeus atraídos pelo comércio.
Os católicos de todos os ritos apenas chegam a trezentos em todo o vicariato. Mas quando as missões do mesmo estiverem organizadas e todas as obras do apostolado católico, estou profundamente convencido de que, então, a nossa santa fé fará progressos extraordinários. Os prussianos (perdoe-me V. Em.a este exemplo dos modernos perseguidores da Igreja e do papado) trabalham há cinco meses seguidos a prepararem as suas obras de estratégia militar para apertarem o cerco à inexpugnável Paris. Depois do que, com uns poucos dias de bombardeamentos, entram vitoriosos na soberba capital da França. Quando nós tivermos preparado as bombas e as metralhadoras de bem organizados institutos missionários e de irmãs e de colégios, e tivermos organizado bem as escolas, os jardins-de-infância, os hospitais e as outras obras católicas, abriremos fogo, e o colosso da idolatria cairá por obra da cruz, como a mística pedrinha da Escritura e aí reinará só Jesus Cristo.
[3595]
É indubitável que, sabiamente estabelecidas as obras do apostolado católico nas tribos interiores do vicariato, a pregação do Evangelho produzirá assinaláveis frutos, até ver inteiras povoações convertidas em massa à nossa santa religião. O Islamismo não pode ganhar raízes entre os negros da África Central. As tribos árabes nómadas, desde há muitos séculos, e o Governo, desde há quarenta anos, realizaram esforços inauditos no sentido de ganharem para Maomé as tribos dos negros; e até hoje em dia os governadores do Sudão egípcio, como pude verificar com os meus olhos, têm a prática de enviar os mais fanáticos dos seus muftis e ulemas e mestres de religião com o fim de preparar, mediante a pregação do Alcorão, aqueles povos para a sua sujeição à coroa do Egipto. Porém, foi sempre em vão: os negros detestam o Islamismo.
[3596]
Além disso, eu sou da opinião de que, bem organizadas as nossas santas missões nas zonas muçulmanas do vicariato, como Cartum, o Cordofão, Berber, Sennar, etc., com o volver de algumas gerações e graças ao culto externo, à vida exemplar dos missionários, das irmãs e dos membros da missão e ao estabelecimento das obras de caridade, também estas imensas províncias, dominadas pelo Islamismo dobrarão a fronte perante a cruz. A influência que hoje exerce a missão católica, tanto no Governo local como nas populações cristãs de todo o género e sobre os infiéis, é muito grande. Pode-se dizer com toda a verdade que a missão constitui a primeira força moral do Sudão. Mas é necessário que o seu chefe e os seus missionários mostrem muita prudência e circunspecção, juntamente com uma grande firmeza, para se manterem sólidos perante os golpes das potências do mal, sobretudo no respeitante aos atropelos da mais horrível escravidão e do tráfico de negros, chaga funesta, da qual é triste cenário o vicariato. O maior obstáculo para a conversão destes povos muçulmanos é a opressão brutal que exerce sobre eles o Governo dominante, bem como a crueldade e os excessos arbitrários dos satélites do Divã do Egipto.
[3597]
O Governo egípcio tem tais possessões no vicariato, que, se estivessem bem organizadas e governadas, poderiam formar em poucos lustros um império muito florescente. De facto ocupa uma boa porção da parte oriental, e alguns pontos da parte central, ao longo do imenso espaço que se estende desde o Trópico do Câncer até ao equador. E sem contar a Núbia Inferior desde Schellal até Wadi Halfa e boa parte do deserto de Atmur, que obedece ao governador de Esneh, no Alto Egipto, as possessões de S. A. o Quedive no vicariato estão divididas em catorze muderias ou vastas províncias governadas cada uma por um mudir, que sempre é um paxá ou um bei e equipadas com mais de trinta mil soldados egípcios e indígenas, armados de fuzis e artilharia de campanha. Estas catorze províncias encontram-se reunidas sob a jurisdição de três hokondares, ou governadores gerais, dotados de grandes poderes e que residem em Taka, em Cartum e em Gondokoro.
[3598]
Sua excelência o paxá Munziger, católico suíço e actual hokondar ou governador-geral do departamento oriental, ou do mar Vermelho, que compreende as províncias de Taka, Suakin, Cadaref e Ghalabat, no meu vicariato e também a de Massaua, no vicariato da Abissínia, depende do vice-rei do Egipto.
[3599]
Sua excelência Ismail Paxá Ayub, turco de origem e temível muçulmano (ainda que muito cortês e generoso comigo) é o hokondar ou governador-geral das províncias de Cartum, Sennar, Fazoglo, Berber, Dôngola, Cordofão, Fashoda (a vasta tribo dos Schelluk na margem esquerda do Nilo Branco) e Schiaka, em Bahr-el-Ghazal, no 9o de lat. N.
[3600]
Sua Excelência o coronel Gordon, inglês anglicano, que domou os rebeldes da China e é um distinto cavalheiro, é o governador-geral do Nilo Branco e do equador, tem sob a sua jurisdição as províncias de Gondokoro e de Fatico, e recebeu do quedive o encargo de implantar o Governo egípcio nas férteis e povoadíssimas terras situadas em redor das nascentes do Nilo.
[3601]
A acção dos primeiros missionários desde a erecção do vicariato em 1846 até 1861, dos quais eu mesmo fazia parte, desenvolveu-se na parte oriental do vicariato, onde se fundaram estas quatro estações: Schellal, no trópico do Câncer; Cartum, entre os 15o e os 16o; Santa Cruz, entre os 6o e 7o, e Gondokoro, entre os 4o e 5o (sempre de lat. norte), no Nilo Branco.
De 1861 a 1872, sob a direcção franciscana, abandonaram-se todas as referidas estações, com excepção de Cartum.
A obra do Instituto das Missões da Nigrícia, de Verona, nos dois anos da sua administração estendeu a acção católica ao Centro do vicariato, fundando a missão do Cordofão e levando a cabo uma eficaz exploração entre os Nuba.
[3602]
O clima de Cartum já não é letal como nos tempos passados, em que foram vítimas do mesmo mais de trinta missionários e eu mesmo estive repetidas vezes à beira da morte. Pelas plantações e por outras causas melhorou a atmosfera desta capital, destinada a converter-se num grande centro de poder e de comércio, logo que esteja construída a via férrea do Sudão, a qual eliminará a barreira do grande deserto, que agora torna tão penosa e difícil a comunicação entre a África Central e o Egipto. Hoje, em Cartum, pode-se viver quase como no Cairo. Por outro lado, o clima do Cordofão, como o das terras dos Nuba e o das nascentes do Nilo, no equador – onde não tardaremos a estabelecer a nossa santa religião – é do mais saudável que existe. Parece que Deus, na sua misericórdia, tirou o maior obstáculo que impedia a redenção destes povos: o clima mortífero. Este facto, unido à circunstância não menos importante de que agora se vão abrindo na África Central as vias de comunicação, é um novo indício indubitável de que soou a hora da redenção da Nigrícia.
[3603]
Há, contudo, um gravíssimo inconveniente que afecta de forma viva e directa o apostolado católico e é a existência em pleno vigor da mais cruel escravatura, em que caem todos os anos centenas de milhares de vítimas; é o horrível tráfico de negros, que levam a cabo em pleno dia inúmeros tratantes, apoiados pelo Governo egípcio, e que até os seus próprios agentes e governadores realizam. Mas Deus suscitará meios para a eliminar em breve e para isso contribuirá grandemente a força e o poder moral da nossa santa missão, que não recuará perante nenhum obstáculo. É a verdadeira missão de Jesus Cristo, que veio ao mundo libertar os escravos, dar a todos a liberdade e fazer de nós todos seus irmãos e filhos de um mesmo Pai que está nos céus. A luta gloriosa da missão contra a horrível chaga da escravidão e o comércio de escravos facilitará poderosamente a conquista da África Central para a Igreja Católica.
[3604]
Após estas noções gerais, que julguei oportuno expor a Vossa Eminência, passo a assinalar brevemente o estado actual deste tão importante vicariato. A dizer a verdade, os meios utilizados para produzir os resultados obtidos são muito fracos; o que nos serve de grande satisfação, porque tal é a regra ordinária da Providência divina, que nos indica que só Ele é o autor de todo o bem.
[3605]
O maior fruto que o apostolado católico pode alcançar eficazmente no vicariato é a conversão dos negros pertencentes às tribos idólatras e feiticistas do interior. Porém, também podemos ganhar almas em terras muçulmanas, onde actualmente estamos estabelecidos, nas quais mais de quatro quintos dos habitantes são escravos idólatras que gemem sob o jugo das famílias maometanas.
[3606]
Para conseguir organizar as obras católicas nas regiões idólatras do interior a fim de converter aquelas tribos à fé, importa muitíssimo que os estabelecimentos nelas erguidos tenham um grande apoio e estejam submetidos, por assim dizer, às casas-mães; ou seja, às missões fundamentais estabelecidas em território seguro, sob um governo regular, onde haja também consulados de potências europeias que protejam a sua existência e a sua estabilidade.
Tais são precisamente as duas missões fundamentais e centrais estabelecidas nas capitais Cartum e El-Obeid, cidades muito importantes, a primeira com 48.000 habitantes e a segunda com 100 000, que se prestam maravilhosamente para este fim.
[3607]
Cartum é o centro de comunicação e a base de operações para levar gradualmente a fé às grandes tribos e reinos que constituem a parte oriental do vicariato até para lá das nascentes do Nilo Branco, nos 10o de latitude meridional.
El-Obeid é o centro de comunicação e a base de operações para plantar pouco a pouco o estandarte da cruz nas imensas tribos, reinos e impérios que formam as partes central e ocidental do vicariato.
[3608]
Este é o motivo pelo qual desde que tomei posse da missão na qualidade de pró-vigário apostólico pus um cuidado especial em fortalecer e consolidar as Missões principais e fundamentais de Cartum e de El-Obeid, como várias vezes indiquei nas minhas cartas à S. C. Com esta intenção, adiei, por agora, a grande tarefa de ir à caça de almas, considerando mais útil estabelecer primeiro, convenientemente, as obras de apostolado. Pois bem, eis o que existe e o que penso fazer nestes dois estabelecimentos primários.
[3609]
Em Cartum, o departamento masculino conta com a mais grandiosa e perfeita construção (em pedra) que há em todo o Sudão, de 127 metros de comprimento, e, portanto, mais longa que o Palácio da Propaganda, com um vasto jardim anexo que se estende até às margens do Nilo Azul: é uma obra do meu predecessor, o pró-vigário Knoblecher, que gastou nela quase um milhão de francos. Trata-se da residência do pró-vigário apostólico e dos missionários. É dotada de locais adequados a escolas de artes e ofícios, com armazéns para guardar provisões e os objectos necessários para todas as estações do vicariato apostólico. Dispõe de uma elegante capela, que serve de paróquia para os católicos desta capital.
[3610]
Ao lado deste colossal edifício comecei, a partir de Janeiro do presente ano, a construção com tijolo vermelho de um estabelecimento absolutamente igual ao grandioso edifício masculino, para as obras femininas, que deve ficar, à excepção das arcadas, idêntico ao anterior em dimensões, desenho e capacidade. Presentemente, as obras estão num quarto do total, porque todos os dias trabalham nelas cerca de cinquenta operários; e no próximo Julho, nas fracções já construídas, instalar-se-ão as irmãs, o jardim de infância e, em parte, a escola. Todo o estabelecimento estará pronto, espero, antes de um ano; para isso, além dos recursos das sociedades benfeitoras da Europa, ajudar-me-ão as esmolas recebidas de benfeitores especiais, entre os quais se destacam suas majestades o imperador Fernando I e a imperatriz Maria Ana Pia de Áustria, irmã da venerável rainha Maria Cristina, de Nápoles, e seu sereníssimo sobrinho, o duque de Módena.
[3611]
Uma bela e espaçosa igreja, circundada de árvores, frente a um amplo largo aberto, rodeado também de árvores, separará os dois grandes estabelecimentos dos missionários e das irmãs. Para esta obra já fiz alguns preparativos, contratei e paguei em parte um milhão de tijolos vermelhos, contando para o efeito com firmes promessas de importantes ajudas. Espero que este complexo esteja pronto dentro de quatro anos. Para a extracção e preparação das pedras, preciso algum artesão, que farei vir da Europa. Deste modo, dentro de não muito tempo, além da igreja, necessária quando estiver aberto o caminho de ferro do Sudão, teremos dois enormes estabelecimentos, masculino e feminino (coisa muito útil nestes países tão materialistas para manter o prestígio da missão), dotados de um vasto quintal-jardim que produzirá grande parte do que consumirmos e providos dos respectivos locais de ensino, jardins-de-infância e enfermarias de ambos os sexos, e as respectivas dependências para os escravos.
[3612]
O que estou a fazer em Cartum realiza-se em parte em El-Obeid, mas em proporções mais modestas e menos dispendiosas, por não haver aí cal nem pedra.
Em El-Obeid temos uma casa bastante espaçosa para os missionários, com locais para escola e aulas de arte e ofícios e com um pouco de jardim. Há lá uma capela que serve de paróquia e um cómodo conjunto separado de locais, onde abri um colégio de negros, onde se seleccionarão aqueles que, distinguindo-se por sua piedade e inteligência, forem chamados à carreira eclesiástica. Se bem que este colégio se encontre ainda no princípio, funciona muito bem e promete muito. Já há nele quatro jovens, de que espero fazer bons missionários. Temos também, anexo, um local destinado a recolher os doentes expulsos; quer dizer, os negros que, estando doentes, são lançados fora de casa pelos amos. Até agora só morreram três destes e já tinham recebido a preparação e o baptismo.
[3613]
Separado pela alameda imperial, o Derb-el-Sultanie, está o instituto das irmãs, com creche e dependências para as escravas e capela privada. Este estabelecimento, que tem capacidade para setenta pessoas, será restaurado e ampliado depois do karif, isto é, quando terminarem as chuvas no próximo Outubro, e será rodeado de um grosso muro de areia vermelha (porque agora cerca-o uma sebe de espinheiros). Também em El-Obeid estou a preparar madeira e areia para a construção de uma casa mais ampla. Espero que tudo isso se encontre pronto em 1875.
[3614]
Tanto em Cartum como em El-Obeid não abri ainda as respectivas escolas públicas masculinas, apesar das petições de muitos, até de entre católicos: até agora não julguei prudente aceder a isso pela falta de suficiente pessoal docente. A escola feminina de Cartum está aberta; porém, tive de limitar a admissão de alunas por não ter ainda prontos os locais. Também em El-Obeid se abriu uma escola pública por parte das irmãs; mas também neste caso ordenei que se proceda com lentidão, por ser ainda escasso o número das irmãs e das mestras negras, que prefiro, por agora, no ensino do catecismo às dezassete catecúmenas que agora há aí. É preciso medir cada passo, pois, uma vez dado, já se não pode retroceder.
[3615]
Cartum tem 74 pessoas que vivem completamente a expensas da missão, incluídos os missionários e as irmãs. Em El-Obeid há cinquenta e oito.
Como a obra que tenho entre as mãos é toda de Deus, é com Deus especialmente com quem há que tratar todos os assuntos, grandes ou pequenos da missão; por isso é da máxima importância que entre os seus membros abundem sobremaneira a piedade e o espírito de oração.
[3616]
Graças ao Sacratíssimo Coração de Jesus reina verdadeiramente este Espírito do Senhor. Todas as manhãs, logo que nos levantamos às quatro e meia e às cinco no Inverno, os missionários fazem em comum três quartos de hora de meditação, para além das orações ordinárias da manhã; e à noite reúnem-se igualmente na capela para rezar juntos o santo terço, fazer os exames, etc. O ofício divino, a leitura espiritual, a visita do Santíssimo Sacramento, etc. cada um os faz em particular. Diga-se o mesmo dos leigos, das irmãs e das mestras negras de ambas as missões. Às quarta-feiras de manhã há uma hora de adoração ao Santíssimo Sacramento, que termina, exposto o mesmo, com a benção pro conversione Nigritiae, por mim instituída em 1868 nas nossas casas do Cairo com o devoto exercício da Guarda de Honra do Sagrado Coração.
[3617]
Todas as sextas-feiras, pela manhã, na igreja, os membros de ambos os institutos rezam em comum o terço do Sag.do Coração e às quatro da tarde fazem também aí a via crucis. Além disso, todas as primeiras sextas-feiras do mês há retiro e prática da adoração ao Ss.mo Sacramento, com o mesmo exposto, em honra do Sagdo. Coração de Jesus, onde se renova a consagração do vicariato ao Sag.do Coração de Jesus, padroeiro da Nigrícia. Também temos feito sempre publicamente na igreja o mês de Março em honra de S. José e o de Maio em honra da Virgem Imaculada, Rainha da Nigrícia, com sermão diário e bênção, com o Ss.mo exposto, para além de todas as novenas e tríduos na preparação para as principais festas de Nosso Senhor, da Virgem Maria e dos santos protectores do vicariato.
Estas práticas ordinárias de piedade realizadas em comum mantém muito bem o espírito dos membros da missão, fortalecendo-os e tornando-os capazes de suportar com ânimo alegre os grandes sofrimentos, os incómodos, as difíceis e perigosas viagens e as cruzes inevitáveis em tão árduo e laborioso apostolado.
[3618]
Os baptismos de adultos infiéis até 15 de Maio passado foram 73, além da firme conversão de um rico comerciante albanês, que, diante de mim, abjurou do cisma grego, tornando-se um benfeitor da missão; e de outro rico comerciante grego cismático de El-Obeid, que abjurou com a esposa perante o P.e Carcereri. Porém, como disse, estas conversões são insignificantes, porque ainda não chegou o tempo de abrir fogo com os canhões e metralhadoras que agora se estão a preparar nas missões do vicariato.
O pessoal masculino e feminino é ainda muito escasso; mas tenho razões para esperar que dentro de pouco recebamos poderosos reforços.
[3619]
Estabelecimentos masculinos
1.o P.e Daniel Comboni, nascido em Limone, diocese de Bréscia, a 15 de Março de 1831, membro do Insto. das Missões para a Nigrícia de Verona, pró-vigário apostólico.
2.o P.e Estanislau Carcereri, veronês, dos MM. dos II, de 34 anos, vigário-geral.
3.º P.e Pascoal Fiore, cónego, membro do Instituto de Verona, de 33 anos, superior e pároco da missão de Cartum, confessor ordinário das irmãs.
4.o P.e Salvador Mauro, de Barletta, membro do Instituto de Verona, de 39 anos, superior e pároco da missão de El-Obeid e confessor extraordinário das irmãs em El-Obeid.
5.o P.e João Losi, de Placência, membro do insto. de Verona, de 35 anos, confessor ordinário das irmãs em El-Obeid.
6.o P.e José Franceschini, de 28 anos, dos MM. dos II, chanceler da minha cúria.
7.o P.e Estêvão Vanni, do insto. de Verona, de 39 anos, piedoso e excelente sacerdote missionário.
8.o P.e Vicente Jermolinski, polaco, piedoso e douto missionário, de 29 anos.
9.o P.e José Khuri, de 23 anos, piedoso e bem instruído maronita de Trípoli, da Síria, mestre de língua árabe e aspirante ao estado eclesiástico no estabelecimento de Cartum.
[3620]
Há, além disso, cinco bons e distintos mestres de artes e ofícios, três em Cartum e dois em El-Obeid, que são também exemplares e de conduta inatacável. Entre os dezassete alunos negros há quatro que aspiram ao estado clerical. Do insto. do Cairo, dirigido pelo meu excelente e mui piedoso missionário aluno do insto. de Verona, P.e Bartolomeu Rolleri, e do pessoal que há aí, informá-lo-á melhor o P.e Carcereri.
[3621]
Quanto ao insto. feminino, dirigido pelas Irmãs de S. José da Aparição, há quatro irmãs em Cartum e três em El-Obeid, assistidas por uma prima minha – que é já uma religiosa experimentada, com a qual abri a casa feminina no Cordofão por falta de irmãs – e por nove boas mestras negras. Para as necessidades das duas missões principais precisar-se-iam, pelo menos, vinte e quatro Irmãs de S. José, as quais, em minha opinião, são umas missionárias excelentes e de suma utilidade para as missões estrangeiras; mas é uma congregação que não tem muitos membros. Sabendo eu isto desde há uns anos, fundei em Verona o instituto das Pias Madres da Nigrícia, e dotei-o de alguns rendimentos, com o fim de preparar missionárias para a África Central. Elas têm agora uma escola e um pensionato, sobretudo para filhas de grandes famílias decaídas e há aí bastantes noviças a preparar-se para o apostolado da Nigrícia.
[3622]
Penso arranjar em Berber, dependente dos camilianos, a primeira casa africana das minhas irmãs de Verona, que dão muitas esperanças. Na África Central há lugar para todos. Estou contente com as Irmãs de S. José e gostaria que a madre geral me desse muitas delas, especialmente árabes que, com menos exigências, são de grande utilidade.
[3623]
Em El-Obeid, além de ter em propriedade absoluta dois estabelecimentos isentos de impostos, adquiri dois armazéns que rendem mil francos anualmente.
Em Cartum, a missão é proprietária dos estabelecimentos e também possui um amplo e fértil quintal, no qual fiz grandes despesas para o melhorar. Mas dentro de dois anos renderá dois mil escudos anuais limpos, ou seja, mais de dez mil francos.
[3624]
As receitas obtidas desde 26 de Maio de 1872, época da minha nomeação como pró-vigário, até 26 de Maio de 1874, são 202 521 (duzentos e dois mil quinhentos e vinte e um) francos em dinheiro efectivo e mais de dez mil francos em géneros e objectos. Enquanto aqui em Cartum disponho de um pequeno fundo para continuar a construção do estabelecimento feminino, graças à Providência e ao meu ecónomo S. José, nem eu nem a missão temos um único cêntimo de dívida nem no Egipto nem na Europa, à excepção de três mil francos que devo à madre geral de S. José, Sóror Emilie Julien, por obrigação voluntária e que pagarei quando receber o contributo da Propagação da Fé, correspondente ao exercício de 1873.
[3625]
As viagens entre o Egipto e a África Central, além de serem custosíssimas, são tremendamente fadigosas. Na primeira expedição, de trinta e uma pessoas, guiada por mim nos inícios de 1873 e que me custou 22 000 francos, incluídas algumas provisões, demorei noventa e nove dias para ir do Cairo até Cartum. P.e Losi, que veio com quatro irmãs e três irmãos leigos, empregou só sessenta e oito dias; mas o P.e Estanislau, com outro missionário, demorou de Cartum ao Cairo setenta e cinco dias e a actual superiora, que chegou faz agora seis meses, empregou oitenta e dois. De Cartum a El-Obeid são doze dias; de Cartum a Berber, oito dias; de Berber a Suakin, treze dias; de Cartum a Gondokoro, dois meses, etc. Além disso, até que ponto são fadigosas as viagens para o Sudão di-lo-á a V. Em.a o ilustre senhor Trémaux, membro de várias academias de ciências e do Instituto de França, o qual, vindo do Egipto a Cartum a expensas de S. A. o vice-rei do Egipto e, por isso, com todas as comodidades imagináveis, que um missionário nunca pode ter, deixou escrito na sua esplêndida obra Egipte et Ethiopie, segunda edição, págs. 357-358, estas palavras verdadeiras:
[3626]
«A viagem de barco, sobretudo por via marítima, não é nada em comparação com a viagem por terra nestas regiões (entre o Egipto e Cartum). Com efeito, por mar, por ex., fazem-se cem léguas por dia, jogando às cartas no vapor; mas, pelo deserto, a camelo, não se fazem mais que seis ou sete léguas no mesmo espaço de tempo, suportando um inaudito calor e toda a sorte de privações. Deste ponto de vista, o Sudão está dez vezes mais longe que a China, dez vezes mais longe que os antípodas» (2).
[3627]
Quanto à missão entre os Nuba, o P.e Carcereri terá exposto tudo a V. Em.a com precisão. Creio que na missão dos Nuba e noutras da mesma espécie será muito conveniente adoptar mais ou menos o sistema das famosas reduções do Paraguai, ideadas pelos valorosos padres da Companhia de Jesus, que fizeram daquele país uma escola de perfeição cristã, modelo das missões católicas. O chefe dos Nuba, o cojur Kakum, continua a mandar-me embaixadas e ultimamente enviou-me como oferta uma quantidade de mel maravilhoso. Depois do karif começarei a mandar para Gebel Nuba os materiais para erguer o estabelecimento missionário.
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Resta agora o importantíssimo assunto da escravidão e do comércio de negros, deprimente espectáculo de que é teatro o vicariato da África Central.
Espero que o P.e Carcereri lhe tenha feito uma completa exposição sobre esse assunto, sendo essa a razão principal pela qual o enviei a Roma e a Viena. Pela minha parte, far-lhe-ei saber epistolarmente, pouco a pouco, as fases de tão grande desgraça da humanidade. Espero que o divino Coração de Jesus, a quem consagrei solenemente o vicariato, elimine, com a sua infinita caridade, esta terrível chaga da infeliz Nigrícia.
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Além do mais, dispus tudo para a correcta administração de todas as paróquias. Mediante uma circular ordenei expressamente a adopção do catecismo de mons. Valerga como texto original para o vicariato, tendo-o encontrado muito adequado para estes países.
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Portanto aqui tem um breve quadro do estado da missão da África Central. Nós esperamos todas as bênçãos do Sacratíssimo Coração de Jesus, especialmente depois de o Santo Padre se ter dignado enriquecer com trezentos anos de indulgência uma oração que compus em latim pro conversione chamitarum Africae Centralis ad Ecclesiam Catholicam e conceder Indulgência Plenária a quem a rezar um mês.
Suplico de V. Em.a a maior solicitude para com a infeliz Nigrícia e um acolhimento benévolo às expressões da minha mais profunda reverência e veneração, com as quais lhe beijo a sagrada púrpura subscrevendo-me nos SS. CC. de J. e M.
De V. Em.a Rev.ma
Hum.mo, devot.mo filho
P.e Daniel Comboni
Pró-oigv. ap da África Central
(1) Dr. Inácio Knoblecher Apostolischer Provikar der Katholischen Mission in Central-Afrika, Eine Lebensskizze von Dr. J. C. Mitterrutzner, pág.10. Brixen 1869.
(2) Trémaux, Egipte et Ethiopie, déuxième edition. Paris. Librairie de L. Hachette e Cie., Boulevard St. Germain 77.