[496]
Eu tinha a ilusão de que, quando chegasse a Alexandria, encontraria cartas de Verona que me contariam algo sobre o Instituto e sobre o nosso venerável e velho pai, que tem um grande coração e pensa muito, mas escreve bastante pouco. Mas as minhas esperanças foram vãs. Pelo que, como estou em jejum de notícias de Verona, quero afastar-me um pouco do meu estilo lacónico que até agora tenho mantido consigo nas três cartas que lhe escrevi de Nápoles, Palermo e Roma e explicar-lhe de algum modo as circunstâncias que acompanharam a minha viagem de Verona ao Egipto, assegurando-lhe que se anteriormente não lhe contei tudo em pormenor foi porque sempre estive muito ocupado em arranjar tudo do melhor modo e levar a bom termo o importantíssimo assunto que a Providência me tinha confiado.
[497]
O senhor conhece bem o resultado incerto e não demasiado feliz da expedição que fizemos à África Central, quando em número de cinco missionários e um leigo partimos de Verona em 1857; e sabe também as funestas peripécias das várias expedições organizadas pela Propaganda e pela Sociedade de Maria, de Viena, desejosas de fundar nas regiões incógnitas da África Central uma missão católica para fazer brilhar a luz da fé de Cristo naquelas vastas regiões ainda envoltas nas trevas e sombras da morte.
[498]
Pois bem, por estes desfechos vê-se claramente quão sublime e sábio se torna cada vez mais o grande plano imaginado pelo nosso venerável e estimado superior que, em Fevereiro de 1849, decretou a criação de um clero indígena e a educação de rapazes e raparigas africanos ministrada nos nossos colégios da Europa, para que estes indígenas, formados no seio do catolicismo no espírito da nossa santa fé e instruídos na religião e nos conhecimentos da civilização, voltassem depois a suas terras de origem e aí cada um, segundo a sua vocação e profissão, pudesse comunicar e ensinar à sua gente os bens e conhecimentos, tanto religiosos como civis, que adquiriram na Europa e para assim ser possível, pouco a pouco, fazer das tribos dos africanos outras tantas nações civilizadas e cristãs.
[499]
Actuando segundo este plano sublime e sábio, o mais oportuno e adequado que até agora se conhece para a conversão da África e que foi concebido segundo o espírito da Igreja – a qual, não com outro objectivo, fundou na capital do Cristianismo o Colégio Urbano de Propaganda Fide, no qual ingressam jovens escolhidos de todas as partes do mundo, que, depois de receber a sua educação eclesiástica, são devolvidos à sua terra natal, a fim de que implantem e promovam aí a civilização e a religião –, actuando, dizia, segundo este grande plano do nosso querido superior, vim a saber, pelas informações de um missionário de Malabar que voltava da Índia, em meados de Setembro passado, que nas costas da Abissínia tinha sido apresado um barco com jovens escravas e escravos africanos, que os raptores queriam levar através do Mar Vermelho para as costas desertas da Arábia. Os ingleses, autores da captura, levaram esse carregamento de negros para as suas possessões do Oriente para os utilizarem nos trabalhos do café e das especiarias, entregando parte deles aos missionários católicos de Adem.
[500]
Esta operação dos ingleses foi conforme o tratado de 1856 assinado no Congresso de Paris, onde, reunidas as grandes potências da Europa com o objectivo de regulamentar as questões do Oriente, se proclamou a abolição da escravatura e do tráfico de negros. Determinação sábia, caritativa e cristã que proíbe o infame tráfico de carne humana, uma actividade que avilta e degrada a humanidade e que reduz à vil condição de animais criaturas humanas providas, como nós, da luz da inteligência, que é um resplendor da divindade e uma forma émula da Augustíssima Trindade.
[501]
Seria algo horripilante se me pusesse a contar a maneira indigna e desapiedada como arrebatam os pobres negros do seio de suas famílias e os põem à venda nos mercados de Cordofão e da Núbia; porém, nada disto conto. Só direi que a circunstância acidental de um navio inglês apresar no Mar Vermelho um carregamento destes pobres negros e os levar para as possessões britânicas pareceu ao grande servo de Deus, nosso venerável superior, uma favorável disposição da Providência, com a qual lhe oferecia um meio e lhe abria um caminho para levar para os nossos Institutos de Verona raparigas e rapazes negros, coisa sumamente difícil, desde a abolição da escravatura. Por isso ele, como quem se abandona sempre nos braços da divina Providência, sem desanimar devido às graves dificuldades que hoje se encontram para obter generosas e importantes esmolas, decidiu enviar-me a Adem para que fizesse uma boa selecção destas criaturas africanas, dispersas pelas várias possessões britânicas.
[502]
Dando-se, além do mais, a circunstância – dentro das providenciais medidas de quem cuida solícito e com piedosa dedicação dirige o nosso instituto masculino – de que convinha conduzir a Nápoles quatro jovens africanos que não suportavam o rigoroso clima de Verona, era o momento oportuno de levar a cabo o citado projecto.
[503]
Por isso, tendo tido êxito a minha ida a Veneza, onde obtive de Sua Excelência o lugar-tenente das províncias Vénetas, o barão Togenburg, passaporte para os quatro negros, na manhã do dia 26 do passado mês de Novembro, eu deixava o Colégio e Verona e depois de atravessar a fronteira dos Estados Austríacos e a parte que marca o confim do lago de Garda, enviando um profundo suspiro às margens de Limone, onde respirei os primeiros hálitos de vida, detive-me em Bréscia na ilusão de abraçar e de me despedir do meu velho e bom pai, a quem desejava ver e confortar, dado que ia empreender uma viagem um pouco mais comprida que a de Verona a Avesa.
Mas, ai, as minhas esperanças foram defraudadas: tendo-se levantado no dia anterior uma furiosa borrasca no lago de Garda, não foi possível de nenhum modo efectuar o trajecto entre Limone e Gargnano. O Senhor seja sempre bendito!
[504]
Às cinco da tarde, apresentados os meus cumprimentos respeitosos ao bispo de Bréscia, a Mons. Tiboni e ao meu grande amigo, o Dr. Pelizzari, parti para Milão, onde nessa mesma noite fui cordialmente acolhido com os quatro jovens e P.e Luciano no Seminário das Missões Estrangeiras de S. Calocero. Aí o meu coração embriagou-se da mais doce alegria ao conversar com aquela alma santa que é o reitor do seminário e ao encontrar-me entre tantos queridos irmãos, sacerdotes e alunos daquele florescente jardim de caridade evangélica, onde se formam no zelo e nas virtudes dos apóstolos e dos mártires tantas almas desprendidas, que, cortados os vínculos da natureza e do sangue, calcando com pé generoso o fausto da humana prosperidade e da grandeza, que uma posição desafogada e uma mente dotada lhes teriam podido oferecer, abandonando a alegria dos seus lugares de origem, se espalharão pela face da Terra para levantar o estandarte da Cruz em tantos reinos submetidos ao império de Satanás, para sacudir do profundo letargo tanta gente miserável sobre a qual nunca brilhou o luminosíssimo astro da fé e para a levar à adoração da Cruz.
[505]
Produziu em mim, além disso, grande consolação o facto de saber que a um destes jovens missionários aconteceu, como a mim, ter de abandonar o campo aberto das suas apostólicas fadigas na Oceânia; agora, totalmente resignado às adoráveis disposições do Céu, dedica-se com zelo incansável à pregação, em forma de missões, e ao exercício do ministério sacerdotal. Ao amanhecer do dia seguinte, eu já me encontrava em Monza, no colégio dos padres barnabitas, onde saudei alguns deles, os quais me entregaram uma pequena amostra da sua amizade e do seu interesse pela obra a que estou consagrado.
[506]
Às dez estava em amena conversa com o nosso dilecto amigo, o P.e Calcagni, barnabita, vice-reitor do R. Colégio Longoni, o qual me pregou uma partida que não me deu muita graça: pediu-me a carta que mons. Ratisbonne, milagrosamente convertido do judaísmo à fé, me tinha escrito de Jerusalém no passado mês de Agosto; e eu deixei-lha na condição de ma enviar à uma da tarde para o Seminário das Missões Estrangeiras; mas com grande consternação minha, mandou-me não o original da carta, mas uma cópia, acompanhada de uma peça de 20 francos e de uma nota em que me desejava boa viagem.
[507]
Eu já lhe perdoei, mas com a promessa de lhe pregar uma muito maior; às três da tarde, depois de me ter despedido dos missionários, apanhei o comboio e depois de ver passar rapidamente os campos de Magenta e a ponte do Ticino e de deixar para trás Novara e Alexandria, às 10 estava já a jantar com os meus africanos no hotel Cristóvão Colombo, em Génova.
[508]
Na manhã do dia 28, celebrado o Divino Sacrifício na Igreja da Anunciação, a mais bela e magnífica da capital da Ligúria, e deixados os jovens ao cuidado de P.e Luciano, pus-me a percorrer as agências com vapores directos até às duas Sicílias para ver se encontrava algo que me conviesse. E estava a negociar um vantajoso contrato com a companhia marselhesa Fraissenet et Frères, em que conseguia um desconto de quase metade da importância da viagem; mas, perante a incerteza de quando chegaria a Génova o barco que devia levar-nos a Nápoles, decidi-me por fazer um contrato com a companhia Zuccoli que, nessa mesma noite, enviava a Nápoles um vapor-correio e consegui para os seis um abatimento de um terço do preço de cada passagem. Deste modo, às nove da noite, subimos para o Stella d’Italia, excelente vapor italiano, a bordo do qual, à clara luz da lua, contemplámos o maravilhoso espectáculo que oferece a capital da Ligúria vista do mar.
[509]
Defendida por terra e mar por vastas fortificações naturais ou construídas pelo homem, esplêndida pela sua admirável situação e pelos seus formosos edifícios, a cidade é embelezada por um porto de forma circular, bastante extenso e provido de dois grandes molhes, para lá dos quais se ergue um gigantesco farol que serve de guia aos pilotos. Este porto franco, frequentadíssimo, constitui um armazém muito considerável de toda a classe de mercadorias e é um dos grandes centros de comércio da Europa. Despedimo-nos destas amenas costas da Ligúria e ao cabo de três horas deixámos à esquerda as risonhas praias do magnífico golfo de La Spezia. Na manhã seguinte encontrávamo-nos no porto de Livorno. Eu desci a terra e depois de celebrar missa na suja catedral, procurei a Virgem do clássico P.e Giravia (como me disseram os padres seus companheiros); mas a ele não o vi, porque o Governo da Itália o tinha desterrado para Pisa já há alguns meses.
[510]
Ao meio-dia, o Stella d’Italia zarpava do porto de Livorno. Mal tínhamos chegado ao alto mar, levantou-se contra nós um vento que durou mais de 25 horas; de modo que os quatro jovens negros não puderam comer nada e inclusivamente tiveram que lançar ao mar o ordinário tributo. Não foi esse o meu caso, pois, estando já acostumado às viagens do Oriente e a passar meses inteiros sobre as águas, deu-me um tal apetite que comi as rações dos meus indispostos companheiros de viagem. Vimos surgir no horizonte as formosas ilhas de Capraia e Gorgona e passamos perto do Porto Ferraio, na árida e sinistra ilha de Elba que ofereceu uma sórdida e triste hospedagem ao grande Napoleão.
[511]
A umas duas milhas da sombria morada do ilustre prisioneiro encontrámos o Zuavo de Palestro, vapor sardo no qual viajavam mil e duzentos voluntários de Garibaldi, os quais iam reunir-se às suas famílias no Piemonte e na Lombardia para se refazerem da fadiga passada em Calatafimi, em Palermo, em Milazzo e em Cápua. A um oficial de Garibaldi, o duque Salvador Mungo, que se encontrava a bordo connosco e que era um dos que tinham ficado dos mil desembarcados em Marsala, pedi-lhe notícias de Prina, ex-aluno do nosso Instituto e fez-me grandes elogios dele, como sendo um valoroso oficial. Disse-me que não era coronel, mas que se tinha distinguido em Milazzo. Este homem regressava (!!??) da ilha de Caprera, onde tinha estado com o seu duque e assegurou-me que era intenção de Garibaldi ir primeiro à Hungria que a Veneza, a qual só sacudiria o seu jugo ao fim de alguns anos.
[512]
Com esta e muitas outras conversas que mantive com o garibaldino, chegámos ao estreito que separa a famosa ilha de Procida da de Ischia, para lá das quais se abre em forma de maravilhoso anfiteatro o esplêndido golfo de Nápoles. Nós, às cinco da tarde, já tínhamos tratado das questões com a direcção marítima da capital Partenopea; e já com os passaportes visados, fomos recebidos com bastante cordialidade no Instituto da Palma pelo P.e Ludovico de Casoria, fundador do Colégio Africano. Embora eu já o conhecesse desde o ano passado, quando desembarquei em Nápoles, pude, no entanto, agora, nos vários dias que aqui estive, apreciar este bom padre e persuadir-me de que é um desses homens extraordinários que, de vez em quando, a Providência suscita em benefício da humanidade e para a difusão e incremento da glória de Deus.
[513]
Segundo me contou um padre de La Palma, o P.e Ludovico, embora pertencesse à ordem franciscana, não era um perfeito observador das suas regras, porque procurava rodear-se de muitas das comodidades da sua folgada casa paterna, era bastante renitente à subordinação que deve ter um religioso e mantinha amizades mundanas com muitos de elevada condição que viam com maus olhos um dos seus rebaixado à humilde condição de apagado franciscano. Além disso não era nada inclinado ao esforço e dedicação da vida de franciscano e só se deleitava com os estudos filosóficos e com as matemáticas, nas quais havia feito grandes progressos, e das quais durante muitos anos tinha sido professor.
Atingido por uma grave doença, o seu guardião aproveitou a ocasião para lhe fazer ver a sua conduta passada, não muito conforme ao espírito do instituto seráfico, sugerindo-lhe que renegasse a sua antiga maneira de viver em religião e que prometesse a Maria reformar os seus costumes e conduta, segundo o espírito do Instituto no qual, por vocação, se tinha incorporado, no caso de Deus querer devolver-lhe a saúde. Então o P.e Ludovico entrou em si mesmo e na humildade do seu coração ofereceu-se a Deus, disposto a qualquer árdua empresa a que o Senhor o chamasse. Então a graça de Deus derramou-se abundantemente no coração do bom servo de Deus; esvaziando-se do que tinha sido e afastando-se de tudo o que fosse do mundo e não conforme à sua religião, passou uns anos em perfeito retiro. Depois, entre muitas outras obras, levou a cabo as seguintes:
[514]
1.o Instituiu uma reforma da província de Nápoles, algo deteriorada, mais ou menos como fez o B. Leonardo de Porto Maurício, quando criou o retiro de S. Boaventura em Roma.
2.o Fundou o Instituto dos Missionários Indígenas, que acolhe sacerdotes de todas as partes de Itália, os quais se formam na escola das missões e exercícios espirituais e depois se espalham por toda a Itália para dar as missões gratuitamente, dependendo em tudo do Instituto, podendo apenas em nome do Instituto exercer o ministério apostólico.
3.o Criou um grande refúgio para os pobres em Nápoles; depois, outro para instruir os ignorantes.
4.o Criou uma grande enfermaria para todos os franciscanos de Nápoles.
5.o Finalmente, fundou e promoveu os Institutos africanos: um masculino, dirigido pelos franciscanos e outro feminino, ao cuidado das Irmãs Estigmatinas, exclusivamente consagradas à educação das negras.
[515]
As despesas com estas cinco grandes obras estão a cargo do P.e Ludovico, que é tão transparente em todas as suas actuações como o nosso superior e que as mantém pedindo esmolas diariamente, como ele. Uma palavra sobre os colégios africanos.
[516]
Instituído sob a protecção do defunto rei Fernando II e com especial autorização da direcção-geral da ordem seráfica, o Colégio dos Negros, com sede em La Palma, onde reside o prefeito da reforma, tem por finalidade resgatar da escravidão e da miséria em que jazem e educar e instruir na fé, na ciência católica e nas diversas artes civis os jovens negros que se recolherem dos países de África, a fim de que bem educados, instruídos e formados no espírito católico, regressem já adultos a seus países para propagar aí, cada um segundo a sua profissão, a fé de J. C. e a civilização cristã.
[517]
Os jovens negros, que serão instruídos na fé cristã e baptizados conforme forem chegando de África, vestirão todos o hábito franciscano, como jovens alunos e, enquanto tais, observarão o comportamento e a disciplina de jovens religiosos e aplicar-se-ão, com discreta direcção, aos usos da religião seráfica, aos estudos e às artes. Ficará a cargo do padre prefeito de La Palma, após prévio exame e conhecimento da índole e capacidade dos jovens negros, a tarefa de os classificar nos estudos elementares, que, até aos 18 anos, todos deverão frequentar sob a direcção de professores idóneos que o prefeito lhes atribuir, quer sejam religiosos da ordem, quer seculares de comprovada ciência e bondade, ainda que estes últimos tenham de ser habilitados pela província ou pelo ministro geral.
[518]
Completada a instrução elementar aos 18 anos, os jovens negros são distribuídos em três classes, segundo a sua capacidade e vocação, a saber: clérigos para o sacerdócio; leigos professos para artesãos; e seculares da Ordem Terceira (como Tacuso) de S. Francisco, também artesãos e livres de abraçar o estado conjugal. As duas primeiras classes professarão servatis servandis a regra da Ordem dos Menores. Para o noviciado regular destes, sob prévia autorização da S. Sé Apostólica, em lugar apartado, dentro do mesmo colégio, sob a direcção e critério da comunidade religiosa de La Palma, serão adaptados apartamentos como lugares de noviciado, onde receberão a educação religiosa adequada segundo as regras da ordem.
Quanto aos da primeira classe em idade de se ordenarem, serão apresentados ao respectivo ordinário com as promissórias do provincial. Isso é assim, dado que os jovens negros começam como filhos da Ordem dos Menores, destinados especialmente às missões da África, a cujas necessidades proverá o geral da ordem. Finalmente, os da terceira classe que ficarem na Europa, vestidos e professos da Ordem Terceira de S. Francisco, ajudarão nas actividades do colégio e aperfeiçoar-se-ão nas artes.
[519]
Recebidas depois as necessárias instruções e instituições, sacerdotes negros menores, leigos negros menores e terciários de S. Francisco negros – com conhecimento e informação tanto do provincial como do prefeito e em obediência ao ministro geral da ordem – à medida que for necessário irão para as missões de África. Os sacerdotes, como verdadeiros missionários de Cristo, propagadores da fé cristã; os leigos professos, ao serviço dos sacerdotes e também como catequistas e instrutores dos infiéis que se converterem a Cristo; os terciários, espalhando-se mais livremente entre aqueles povos, sob a orientação dos missionários seus irmãos e exercendo as artes e ofícios que tiverem aprendido no colégio para os utilizar à luz da fé.
[520]
Partirão e permanecerão sempre em número de dois, às vezes até em grupos de três – nunca sozinhos. E será segundo esta ordem: um sacerdote e um leigo ou um sacerdote, um leigo e um da Ordem Terceira. Na profissão religiosa, todos farão promessa sob juramento de ir para África, mas da partida efectiva ficarão excluídos os escolhidos e hábeis para professores do colégio de La Palma, os oficiais destinados a prestar serviço no dito colégio e os que não puderem ir por motivos razoáveis e graves reconhecidos como tais pelos superiores. O padre prefeito, pondo todo o seu empenho, cuidará que, pouco a pouco, os jovens negros de qualquer classe realizem bons progressos no conhecimento das ciências ou das artes e sejam capazes eles mesmos de serem professores no colégio, onde se lhes atribuirão as disciplinas que se coadunam com as suas capacidades.
[521]
E deve procurar empregados, como prefeitos, cozinheiros, ajudantes, porteiros, despenseiros, etc., para que o colégio seráfico de La Palma se converta num coro uniforme de negros. E os negros, sejam eles sacerdotes, leigos ou terciários, que tenham ido para as missões de África e tenham por longos anos suportado fadigas por J. C. e não possam continuar a prestação de serviço às missões por velhice, doença ou por outra gravíssima razão, postos ao corrente disso, os superiores da província e do colégio, terão acolhimento e descanso no mesmo colégio de La Palma.
[522]
Este é, em traços largos, o plano do instituto dos negros de La Palma. Agora estes são já 52, incluídos os 4 que eu trouxe. Fiquei muito contente ao ver dez ou doze oficinas de carpintaria, alfaiataria, sapataria, tecelagem, serralharia, agricultura, etc., etc., e uma bela farmácia com dois mestres em medicina e farmácia. Além disso, há junto a La Palma uma ampla horta, dividida em múltiplas parcelas, destinadas a cultivar diferentes produtos do país e coloniais; aí vão os negros todos os dias, divididos em classes para, reunidos em volta do respectivo mestre, aprenderem a trabalhar em cada sector da agricultura.
Com regras adequadas as negras, cujo número chega já a 22, são educadas para as missões de África. Maravilharam-me os seus progressos nos estudos e nos lavores femininos. O ano passado, muitos trabalhos das negras foram admitidos na Exposição Urbana de Nápoles e ganharam prémios. Porém, deste Instituto falarei noutra ocasião.
[523]
Fiquei muito satisfeito com a instrução dos negros de La Palma. Seis deles estudam humanidades e retórica (menos grego), quatro filosofia e o resto a secundária elementar. Mas o que mais me impressionou foi a ordem, o silêncio nos devidos momentos, a total disciplina, a inclinação aos exercícios de piedade e o desejo de se tornarem santos e de sacrificar a sua vida em benefício de seus irmãos, pelos caminhos que a obediência e a vocação lhes mostrarem. «É possível – perguntava um dia o P.e Ludovico –, é possível que os negros de La Palma sejam todos bons? Não creio, porque, pelo que pude ver na breve experiência que tive com os negros, muitos são bons, mas outros não parecem dados à piedade nem à perfeita observância da nossa ssma. religião.»
[524]
«Oh!, escute, meu caro irmão – respondeu-me o padre. Eu fundei o meu colégio para fazer do inferno um paraíso, para que os jovens de maus se tornem bons. Quando os africanos entraram em La Palma, eram diabos e eu quase desesperava por me considerar incapaz de conduzi-los ao bem; mas, graças à paciência, à contínua vigilância diurna e nocturna e ao incansável esforço dos meus educadores, hoje são todos bons. E eu tenho que agradecer a Deus que não há um mau, nem sequer um.»
[525]
Mas não devemos assustar-nos se, ao princípio, os vemos maus: com a graça de Deus e com uma incansável e paternal solicitude, tudo se vence. E, de facto, em cada dormitório há dois prefeitos, um dos quais vigia toda a noite. Quando há um jovem que mostra uma má inclinação, contra ela se dirigem todas as armas da prudência cristã e não se desiste até ver completamente erradicado esse defeito; de modo que por fás ou por nefas, a bem ou a mal, de bom grado ou à força, tem que abandonar esse vício.» Mas deixemos este tema. Foram muitas as coisas que observei sobre a direcção desse Instituto; mas já estará cansado de ler, como eu de escrever, assim que khalás.
[526]
Falemos agora um pouco de coisas profanas. E para lhe dizer algo sobre Nápoles, creio que é impossível que imagine a sua singular e esplêndida situação e o soberbo panorama que oferece de qualquer parte que se contemple. A cidade está situada a sudeste na encosta de uma longa fila de colinas e ao redor de um golfo de mais de cinco léguas de largura e outras tantas de comprimento, tendo ao lado dois promontórios cobertos de verdejante vegetação. A ilha de Capri a um extremo e a de Procida a outro parecem fechar o golfo, embora entre estas ilhas e os dois promontórios se possa divisar uma imensa extensão de mar.
[527]
A cidade é como a coroa deste majestoso golfo. Uma parte dela, para ocidente, ergue-se como um anfiteatro sobre as colinas de Polisippo e de Antignano; a outra estende-se a oriente sobre um terreno mais plano, coberto de formosas vilas e casinos até ao monte Vesúvio que, de noite, é como um sol vivíssimo, cuja luz está concentrada em sete bocas que expelem continuamente lava e betume. No meio destes magníficos montes rochosos, totalmente cobertos de laranjeiras e limoeiros e de toda a espécie de verdura, ergue-se, perto de La Palma, Capodimonte, onde surge o palácio de Verão do rei. Segundo a opinião dos grandes viajantes, este é a mais bela vista do mundo, e não há nada comparável à beleza de tal panorama.
[528]
Se a tudo isto se acrescentar a suavidade do clima, a fertilidade dos campos, a beleza dos arredores, a grandiosidade dos edifícios e a magnificência das suas ruas todas cobertas de grandes lajes de pedra, como a nossa Piazza dei Signori, convencer-se-á de que Nápoles é um dos mais esplêndidos e agradáveis lugares do mundo. A Rua de Toledo, que se estende ao longo de milha e meia em perfeita linha recta; a da Chiaia, que ladeia por um largo trecho a Vila Real – que se estende sobre a praia, onde oferece uma magnífica vista e é flanqueada, do lado da terra, por um elegante gradeamento, interrompido aqui e além por altos e variegados pilares, os quais, formando a noroeste uma grande semielipse, encerram centenas de estátuas de mármore, feitas à imitação dos melhores modelos antigos – figuram entre as mais formosas da Europa.
[529]
As igrejas são, em geral, belíssimas e surpreendentes e revelam ao observador atento a fervorosa piedade do povo napolitano que as frequenta e a daqueles que as construíram. A de S. Francisco de Paulo, de arquitectura moderna, na parte exterior, voltada para o palácio real, é rica em obras de famosos artistas modernos. É flanqueada por dois pórticos sustidos por quarenta e quatro grandes colunas e embelezada com estátuas colossais da religião, S. Francisco e S. Luís, as quais se encontram no vestíbulo, formado por dez grandes colunas e outros tantos pilares. O interior, perfeitamente redondo, é uma imitação do Panteão de Roma.
[530]
Magníficos templos são também o de S. Martinho, no cerro de S. Telmo, ao pé do castelo, que domina a cidade, em situação estupenda; o de Jesus Novo, todo incrustado de mármore, que guarda o sepulcro de S. Francisco de Jerónimo, sobre o qual celebrei missa; o seu corpo está encerrado numa urna de prata e o sepulcro está bordado de pérolas e pedras preciosas; e o de S. Caetano, em cuja cripta se conserva o corpo do santo, sobre o qual também celebrei missa.
[531]
Porém, S. Januário, ou seja, a catedral, é a mais bela igreja de Nápoles. O interior consta de três naves, sustentadas (entre outras) por 18 pilares com colunas que pertenceram a ídolos do paganismo. Deixando de lado as inúmeras obras de arte, limitar-me-ei a mencionar a capela do santo padroeiro da cidade, chamada o tesouro, que tem na parte exterior duas grandes estátuas de S. Pedro e S. Paulo e um belíssimo gradeamento de bronze. O interior é em forma de cruz grega, com as paredes incrustadas de mármores finíssimos e com 42 colunas de brocatelo e 19 de bronze; todos os frescos são de Domenichino. Detrás do altar-mor, de pórfiro, guardam-se em duas capelinhas forradas de prata e com portinhas do mesmo metal, a cabeça de S. Januário e duas ampolas que contêm parte do seu sangue, o qual costuma liquefazer-se de duas a quatro vezes por ano, quando é posto em frente da cabeça do santo, ou seja, nas três festas de Maio, Setembro e Dezembro, que se celebram em honra do santo com as respectivas oitavas.
[532]
Este milagre que é observado por inúmeros protestantes e infiéis, foi causa, e continua a sê-lo até ao dia de hoje, de grande número de conversões à fé de Cristo. Segundo ouvi dizer à minha passagem por Nápoles, a última vez que se deu o milagre – quinze dias antes – como o aparecimento se deu uma meia hora antes do costume, ouviram-se gritos no templo: «Olha, olha que S. Januário gosta da república e não te quer, Vítor Emanuel.» Aqui, a propósito de S. Januário, quero contar-lhe a extravagante cena que tem lugar no dia em que o milagre ocorre. Baseando-se numa vaga e incerta tradição, os napolitanos pretendem saber que tais e tais famílias pobres são descendentes da estirpe do santo padroeiro, por isso é crença entre a plebe que o milagre não se realiza sem a presença de um ou mais indivíduos destes descendentes de S. Januário.
[533]
Os vagabundos são os primeiros a marcar presença na capela taumaturga: proferem inumeráveis impropérios e infâmias antes do milagre. Ouvem-se, entre outras, as seguintes expressões: «S. Januário, não queres fazer o milagre? Claro, como roubaste o título de santo, que não merecias... E porque troças dos que te honram? Não serves para nada. Pareces um caracol... Não vales uma palha. E que fazes aí a enganar a pobre gente? És um impostor que nos andas a intrujar... Olha, olha que caretas que faz! E faz troça de nós e chasqueia! Seria melhor nós troçarmos de ti, que tu de nós! Não és capaz de fazer o milagre, não vales uma palha, desce desse pedestal (virando-se para a estátua). Que fazes aí, seu impostor? Tu nem és santo, nem estás no céu, nem prestas para nada, desce... desce... » e assim sucessivamente.
[534]
Esses patifes proferem outras frases mais estranhas, cuja enumeração seria demasiado comprida e que eu esqueci. Na verdade, a mim, se me contassem tais coisas, não acreditava; mas a quem visitou Nápoles e viu o atraso em que se encontra esse reino, viu a inclinação à piedade, mas um pouco supersticiosa, não lhe custa a crer. Estas e outras coisas semelhantes soube-as de pessoas dignas de crédito.
[535]
Em Nápoles, com P.e Luciano, visitei as coisas mais notáveis, entre elas as catacumbas, mais amplas mas mais curtas que as de Roma, o Museu Nacional, o segundo do mundo, depois do Vaticano, segundo a opinião dos entendidos, e quanto ao oferecer uma perfeita representação material dos costumes dos antigos, o primeiro do mundo. Mas para isso seria preciso um caderno... Estivemos na gruta de Polisippo, um impressionante subterrâneo, onde se encontra o túmulo de Virgílio com as luzes acesas, etc.; visitámos Pompeia e Herculano, etc., mas falarei disto noutra minha, se dispuser de espaço; como também contarei em pormenor a minha viagem a Palermo e a Roma. Agora não tenho tempo, porque acabam de me anunciar que chegou a Suez, procedente de Calcutá, o vapor da Companhia das Índias e partirá novamente dentro desta semana. Eu parto amanhã para o Cairo e para Suez. Escreverei de Adem, mas na condição de não ficar em jejum de cartas suas.
[536]
Mando uma afectuosa saudação a todos os jovens, prefeitos e clérigos do nosso Instituto e encomendo-me às suas orações, pois a minha luta com os ingleses vai ser dura. Porque, para não mencionar o resto, diante da alfândega turca, nos divãs [chancelarias turcas] e nos consulados europeus, está afixado um aviso em que se proíbe aos cônsules e ao governador de Alexandria permitir a passagem de escravos ou negros sem indagar ou conhecer a sua procedência e sem que seja legalizada. Quero transcrevê-lo esta tarde antes de partir de Alexandria. Preciso, pois, ajuda do alto; mas não se deve ter medo. A cabeça de Xto. é mais dura que a de Satanás. E se Deus quer a obra, não há ingleses, nem turcos, nem diabo que se possam opor.
[537]
Apresente os meus respeitosos cumprimentos a P.e Tomba, P.e Fochesato, P.e Fukesneker, P.e Donato, P.e Clerici, P.e Urbani, P.e Lonardoni; a Toffaloni e ao filho e a todos os sacerdotes do Instituto; aos marqueses Carlotti; aos condes Cavvazzoca, Parisi, Morelli; igualmente ao Sr. Bispo, etc., etc. E eleve sempre uma oração aos Ssmos. Corações de J. e M.a por
Seu af.mo amigo Daniel
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Especiais saudações ao meu afilhado Vítor, sobre o qual desejo notícias. As minhas saudações à fam. Patucchi e a Biadego, Fontana, etc. Receba os cumprimentos de J. Scaùi, que está bem e, pelo que me dizem os padres missionários, se porta bastante bem. Três furiosas tempestades enfraqueceram-me um pouco a saúde, mas já estou muito bem.