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31
Seu pais
0
Cartum
18. 1.1858

N.o 31 (29) - A SEUS PAIS

AFC

Da Stella Mattutina

Cartum, 18 de Janeiro de 1858

Queridíssimos pais,


 

[206]
Eis-me aqui já no barco prestes a abandonar Cartum para nos dirigirmos aonde estão as tribos centrais do Bahar el-Abiad. Este barco em forma de dahhabia é o maior e o mais forte que existe no Sudão e é propriedade da missão de Cartum, a qual lhe pôs o nome italiano Stella Mattutina, quase como dedicando-o à Virgem Maria, a fim de que com a sua luz seja verdadeiramente estrela da manhã para os pobres negros, envoltos ainda nas trevas da ignorância e da idolatria.


[207]
Todos nós ardemos no desejo de chegar à ansiada meta da nossa longa e penosa peregrinação; e confiamos no Senhor que conseguiremos semear a boa semente, apesar das graves dificuldades que começamos a vislumbrar. Trata-se de que a missão de Cartum, que está dividida em três estações, foi fundada há dez anos, trabalham nela 24 missionários, gastou muitos milhões de francos, fez bastante para ser temida por turcos e negros dos arredores para poder pregar livremente o Evangelho... mas, quanto ao resto, só conseguiu conquistar umas 120 almas e quase todos jovens, a quem, para os conservar na fé, a missão se vê obrigada a sustentar, dando-lhes comida, roupa e habitação. São incríveis as dificuldades e incómodos que esta missão proporciona.


[208]
Mas talvez nós tenhamos mais probabilidades, porque somos mais pobres e as nossas necessidades serão, portanto, menores. Pelo que pudemos deduzir até agora, a tarefa é mais árdua do que se pensa na Europa; ainda assim, continua a crescer a nossa confiança em Deus, o qual só [...] poderá fazer-nos susceptíveis de receber os benéficos influxos da graça divina.


[209]
Entretanto, vós não tenhais nenhum temor por nós: Deus está connosco, a Virgem Maria Imaculada está connosco; S. Francisco Xavier é nosso padroeiro e, confiados nestas sólidas colunas, temos debaixo dos pés [...] e a morte e os mais cruéis sofrimentos e incómodos. Apoiados nestes preciosos baluartes de Deus, da Virgem Maria e S. Francisco Xavier, encontramo-nos mais seguros do que se nos apresentássemos diante das tribos da África Central com um exército de cem mil soldados franceses; assim, pois, não temais por nós, não tenhais nenhuma preocupação com o que nos pode acontecer.


[210]
Basta que rezeis por nós e que estejamos unidos com o coração, tendo sempre Deus como centro. Pode acontecer que passem meses sem que recebais cartas minhas, mas, mesmo assim, estai alegres. Já vos disse que vos escreverei dentro de mês e meio, no regresso da Stella Mattutina. Porém, vós dai-me notícias vossas duas vezes por mês, sem falta; quer dizer, não deixeis de me escrever sempre que o vapor saia de Trieste rumo a Alexandria. Porque ainda que receba vossas cartas cinco ou seis de cada vez, desejo estar completamente ao corrente do que vos diz respeito e à família, e, portanto, quero informação regular, de quinze em quinze dias, pela qual poderei com mais elementos de juízo conhecer o vossos estado e todas as vossas coisas; portanto não deixeis de me escrever cada quinze dias, dirigindo as cartas como vos disse, que até agora chegaram-me todas.


[211]
No tocante ao receber cartas da Europa, eu tenho sido até agora mais afortunado que os meus companheiros, porque a correspondência que lhes mandam a eles ou é pouca ou se extraviou. Esta manhã visitámos o patriarca da Abissínia, que é como o papa dos coptas heréticos e que vai à corte do rei do Egipto como embaixador do imperador da Abissínia. Estava acompanhado de um prelado ajudante e um general do exército e protegido por guardas egípcios. Estava majestosamente reclinado sobre ricos tapetes de finíssimo damasco e seda; acolheu-nos magnificamente. É o papa dos coptas e à morte destes recebe um quarto dos seus bens; por isso, é dos homens mais ricos que existem. Ofereceu-nos skibuk e chá de canela. Falando da nossa missão, explicámos-lhe que, ao entrar no país, arriscamos a vida. «E porque o fazeis?», perguntou-nos. «Para os salvar com as suas almas – respondemos – porque também Nosso Senhor J. C. deu a vida por nós». «Ah, está bem, respondeu». Então um dos missionários de Cartum falou-lhe de Jesus Cristo e, como movidos por Deus, todos os homens baixaram a fronte ante a cruz e adoraram J. C. «Sim, esperamo-lo», disse, e mudou de assunto pondo-se a falar do imperador da Abissínia.


[212]
Hoje veio visitar-nos ao nosso barco, o Stella Mattutina, e ficou admirado de ver com quanta dedicação nós professamos a religião, porque viu a capela que há a bordo, onde nós rezaremos missa todas as manhãs; finalmente foi-se embora maravilhado, dizendo-nos que traria sempre na memória este dia, para ele muito feliz. Anda majestosamente vestido e está muito longe de pensar em tornar-se católico; a mim veio-me à mente persuadi-lo a ir a Roma, onde verá grandes coisas. Mas basta. Estai alegres, queridos pais. Eu vou partir e embora tivesse outras coisas para vos dizer, não tenho tempo para continuar a escrever, porque o Stella Mattutina está prestes a sair de Cartum.


[213]
Nós vamos alegres e contentes, ainda que tenhamos de habituar-nos à ideia de que temos de trabalhar muito sem ver grandes frutos. Isto é, a nossa tarefa será muito fecunda se conseguirmos preparar e predispor aquelas almas, deixando que outros colham os frutos. Deus é grande e n’Ele pomos toda a confiança. Vós estai sempre com Deus; lembrai-vos de fazer tudo para a sua maior glória e não outra coisa.


[214]
Adeus, queridos pais; eu pensarei sempre em vós e vós procurai oferecer a Deus algum sacrifício. Um santo missionário de Cartum, que agora está aqui no nosso barco, dizia-me no outro dia que, embora tivesse abandonado o pai e uma família rica, onde poderia ter todas as comodidades e ainda que tivesse trabalhado tanto na sua missão, se daria por satisfeito se Deus o mandasse para o Purgatório, porque diz ser tão pecador, que teme ir parar ao Inferno, porque até agora não sofreu nada que o faça digno do Paraíso.


[215]
Já vedes quanto há que padecer pelo Paraíso. Consolai-vos, pois, queridos pais, que tendes a sorte de sofrer muito por Xto.; e é por isto que vós já estais certos de ir para o Céu. Saúdo-vos de todo o coração dando-vos um carinhoso abraço. Saudai-me todos os parentes, amigos, etc., e à espera de vossas cartas, vos abraço cem vezes e vos dou a bênção, declarando-me



Vosso af.mo filho

Daniel






32
Seu pai
0
Territorio Kich
5. 3.1858

N.o 32 (30) - A SEU PAI

AFC

Da tribo dos Kich

5 de Março de 1858

Queridíssimo pai,


 

[216]
Não podes imaginar o consolo que senti ao receber as tuas queridas cartas de 21 de Novembro de 1857. Bendito seja o Senhor e sua adorável Providência que, a seu tempo, sabe confortar os seus servos mais mesquinhos, ainda que miseráveis pecadores! Se queres saber a verdade, parti de Cartum com o espinho no coração de que a mãe estava gravemente doente; e esse espinho, por providente disposição divina, foi-me dilacerando continuamente, de modo que a cada passo me parecia estar a assisti-la no leito de morte, por mais que o coração me dissesse que ela não havia voado para o descanso eterno, e que certamente se iria restabelecer de novo.


[217]
E então, facto bastante insólito, através de um barco nubiano, recebi a tua carta, juntamente com outra bastante comprida da mãe, as quais, na verdade, não esperava. E estas, graças a Deus, tiraram-me todas as preocupações do coração e encheram a minha alma de doce alegria. Ah, queridos pais, que agradáveis são as cartas, as palavras, as notícias dos pais que estão longe! Vós podeis senti-lo tanto como eu!


[218]
O missionário deve estar disposto a tudo: à alegria e à tristeza, à vida e à morte, ao abraço e à despedida. E a tudo isso estou disposto também eu.


[219]
Porém, Deus quer dar-me esta cruz de sentir de um modo insólito a dor por ti e pela mãe; e Deus quer que sinta também a alegria do seu discretamente favorável estado de saúde actual. Eu estou em cada momento convosco, e sinto no coração o peso que vós sentis pela nossa separação física. Quantas vezes eu não te acompanho nas tuas voltas a Supino, a Tesolo, a Riva, nas tuas lides diurnas e nocturnas com a mãe! E quando desligo o meu pensamento de Deus, sinto tal peso no coração, que me vejo obrigado a voar ao Céu com as minhas ideias e a pensar que vós tendes um apoio mais sublime, seguro e infalível que o meu, que estais mais protegidos sob a custódia de Deus do que sob a minha.


[220]
Em cada dia e em cada hora eu me dirijo a Deus e vos encomendo a ambos. Ele me consola, porque tenho a certeza de que o Senhor e nossa querida Mãe Maria Imaculada têm especial cuidado de vós. E não importa que, de vez em quando, haja entre vós disputas, rixas e desgostos: Deus serve-se destas coisas para brincar com os homens e mostrar que, entregues a nós mesmos, somos vítimas das nossas fraquezas humanas; mas, no fim de contas, vós, com as vossas tribulações (que são também minhas), recebeis do Céu especial atenção e sois ambos objecto das mais agradáveis delícias dos Anjos e de Deus.


[221]
Proclame o mundo futilidades à sua vontade, diga que dois pobres pais são infelizes porque não têm filhos; no Céu, porém, pensa-se de outro modo, lá escreve-se com outras letras. A doutrina de J. C., o seu Evangelho, estão em total desacordo com as máximas do mundo. O mundo proclama felicidade, delícias e contentamentos; o Evangelho preconiza pesar, misérias, dor. O mundo pensa tudo para o momento e para esta vida mortal, para o corpo; o Evangelho remete o pensamento para a eternidade, para a vida futura, para a alma. É bem claro que o Evangelho e alma apontam para ideias completamente diferentes das do mundo e dos sentidos corporais. Assim, pois, mostremo-nos tranquilos, alegres, corajosos e generosos por J. Cristo.


[222]
Eu sou mártir por amor às almas mais abandonadas do mundo e vós tornais-vos mártires por amor a Deus, sacrificando ao bem das almas um único filho. Mas coragem, queridos pais; Deus pode permitir que eu morra em breve, como foi o caso de 15 missionários da missão de Cartum: um deles expirava nos braços do Senhor poucos dias antes da nossa chegada; Deus pode permitir que morrais vós: tudo está nas suas mãos. Porém, Deus também nos pode fazer viver a mim e a vós, reservando-nos para a glória de nos voltarmos a abraçar de novo e de gozarmos em santo alvoroço e santa companhia bastantes meses ou até alguns anos dentro dos confins da nossa formosa Itália.


[223]
O nosso superior insiste em cartas que um de nós regresse de seguida com raparigas e rapazes negros e que cada ano façamos o mesmo; e nós estamos obrigados a fazê-lo, embora este ano nos seja completamente impossível, uma vez que não podemos fazer agora uma adequada e criteriosa selecção dos indígenas da tribo para o meio da qual vamos. O próximo ano, porém, um de nós voltará certamente à Europa com uma expedição; e isto, um ano ou outro, calhar-me-á também a mim, se for vivo. Lancemo-nos, pois, com ânimo generoso sob as benéficas asas as Providência Divina e ela melhor que nós disporá tudo.


[224]
A imensa distância que nos separa não é, todavia, tanta que me faça esquecer a nossa pátria e os costumes familiares. Muitas vezes passo meio dia entre esta gente sem me lembrar que estou longe de minha casa e de vós e preciso de me pôr a pensar que estou no Centro da África, em terras desconhecidas.


[225]
Quando, com o crucifixo ao peito, me coloco no meio da multidão de indígenas nus, armados de lança, arco e flechas e lhe dirijo alguma palavra da fé de J. C., ao ver-me só ou com outro rodeado desta gente feroz, que com um golpe poderia atirar-me morto ao chão, então apercebo-me de que não estou na Europa entre vós. Mas, por outro lado, mesmo então tenho-vos diante dos olhos e parece-me que estais prostrados diante de Deus para Lhe suplicar que torne eficazes as nossas palavras.


[226]
Estais pois a ver que estamos sempre unidos com o coração, ainda que fisicamente a tantas milhas de distância, até ao ponto de ter de pensar que verdadeiramente estou longe de vós. Bendito seja o Senhor que sabe aplicar a toda a ferida o bálsamo da consolação.

Espero que não te aborreça uma informação sumária da nossa perigosa viagem até às tribos da África Central mais para lá de Cartum. Gostaria de te satisfazer por completo, mas é-me absolutamente impossível fazer-te uma descrição de tudo o que nos sucedeu e o que foi objecto das nossas observações; não tenho tempo nem oportunidade, porque importantes ocupações e outros impedimentos que acompanham o missionário nestas regiões mo impedem.


[227]
Se pudesse sentar-me a uma mesa, tendo as devidas comodidades como tu podes ter, verias como te escreveria um livro sobre a minha viagem de Cartum à tribo dos Kich, de onde te escrevo; mas quando para escrever duas linhas tenho que fazê-lo acocorado debaixo de uma árvore ou numa obscura cabana, deitado no chão como os negros, ou acomodado de joelhos sobre o meu baú, a verdade é que, depois de escrever durante meia hora, doem-me as costas e os ossos e sinto a necessidade de caminhar um pouco para levantar um pouco o ânimo.


[228]
Portanto contenta-te com uma breve referência; e os outros de Verona e de outros lugares a quem escreverei que se conformem com uma saudação. A distância que vai de Cartum ao território dos Kich não é mais do que mil e poucas milhas, mas os acidentes que ocorrem neste terrível e perigoso trajecto são inumeráveis.


[229]
Mas antes de iniciar a descrição da nossa viagem pelo Nilo Branco, devo explicar que o Nilo, pelo qual viajamos desde Cartum, é formado por dois grandes rios, que os árabes conhecem com o nome de Bahar el-Azrek, ou Nilo Azul, e Bahar el-Abiad, ou Nilo Branco, os quais se juntam em Ondurman, perto de Cartum, formando o Nilo propriamente dito, que, após percorrer milhares de milhas através da Núbia e do Egipto, desagua no Mediterrâneo, não muito longe de Alexandria.


[230]
As nascentes do Nilo Azul conhecem-se já desde a Antiguidade e ficam no lago Dembea, na Abissínia, perto de Gondar. Por este Nilo Azul viajou o P.e Beltrame até aos 10 graus, a fim de encontrar um lugar conveniente para uma missão adequada ao plano do nosso superior; porém, não encontrando apropriado este rio, por bem justas razões, depois de aturada reflexão e depois de consultarmos o nosso superior de Verona, resolvemos tentar introduzir-nos noutras tribos mais adequadas do Nilo Branco.


[231]
Embora o rio Nilo esteja classificado pelos geógrafos como o quarto rio do mundo, agora tem-se por certo que é o mais comprido do planeta; porque se bem que os geógrafos o considerem um prolongamento do rio Azul, conhecido, como dizíamos, desde a antiguidade, contudo o que se deve considerar como pai do Nilo é o Nilo Branco, que supera em mais de mil milhas o comprimento do Nilo Azul. Pelo que, calculado só o rio que nós até agora percorremos, o Nilo ultrapassa em mais de quatrocentas milhas o rio mais comprido do mundo.


[232]
Àquilo que percorremos há que acrescentar as nascentes do rio Branco, o Bahar el-Abiad, que são desconhecidas até agora; com elas fica claro que o Nilo é o rio mais comprido do mundo em bastantes centenas de milhas. Devo também esclarecer que, até certo ponto, outros percorreram o referido rio e especialmente o nosso falecido irmão P.e Ângelo Vinco, do nosso Instituto, pelo que as suas margens são em parte conhecidas. Porém, nunca ninguém se aventurou muito pela terra dentro; pelo que, embora se conheçam muitas das tribos que vivem mais no interior da África Central (que são as do Nilo Branco), todavia não se sabe nada dos seus costumes, da sua índole, etc.


[233]
Para fazeres uma ideia mais aproximada, supõe que o reino da Lombardia-Véneto fosse desconhecido e que nós tentássemos conhecê-lo para aí pregar o Evangelho: imagina que Riva é Cartum, donde nós partíamos para entrar no reino Lombardo-Véneto e que o lago de Garda é o Nilo Branco; imagina além disso que já alguém percorreu o lago de Garda até Gargnano e Castelletto, como até certo ponto Vinco percorreu o Nilo Branco. Então, indo tu de Riva a Gargnano e a Castelletto, sabes que existe o reino Lombardo-Véneto, porque os de Gargnano te dirão que são lombardos e os de Castelletto que são vénetos, porque Gargnano pertence à Lombardia e Castelletto ao Véneto.


[234]
Ora bem, por teres estado em Gargnano e Castelleto podes dizer que conheces o reino Lombardo-Véneto? Não, porque para isso terias de ir a Milão, Veneza, etc. Por outro lado, sabes que existe o reino Lombardo-Véneto pelo facto de teres ido a Gargnano e a Castelletto. Do mesmo modo, as margens do Nilo são habitadas por diversas tribos que se estendem até regiões completamente desconhecidas, porque nunca ninguém se aventurou pela terra dentro, embora se saiba o nome delas, pois chegam até junto do rio.


[235]
Eu estou na tribo dos Kich; porém, nada ou pouco sei dela, porque se estende muito até ao interior, onde ninguém penetrou. Contudo, sei que estou na tribo dos Kich e sei que esta existe. Explicado isto, dir-te-ei que a nossa intenção é começar a pregação do Evangelho numa destas vastas tribos das terras desconhecidas da África Central, começando pelas margens do Nilo Branco, para, a pouco e pouco, irmos avançando até à sua capital e depois passar a outras tribos conforme Deus quiser.


[236]
Com este fim, ao amanhecer do dia 21 de Janeiro, depois de trocar abraços com o nosso caro companheiro P.e Alexandre Dalbosco, que ficou em Cartum na qualidade de nosso procurador, saímos dessa cidade nós os quatro: P.e João Beltrame, chefe da missão, P.e Francisco Oliboni, P.e Ângelo Melotto e eu, incumbido de fazer uma exploração no Nilo Branco, para fundar uma missão entre os negros, segundo o grande plano do nosso superior de Verona, P.e Nicolau Mazza.


[237]
A embarcação que nos iria transportar nesta perigosa e audaciosa viagem era a Stella Mattutina, propriedade da missão de Cartum e dotada de uma tripulação de 14 bons marinheiros, à frente dos quais estava um valoroso e experimentado rais (capitão), que antes tinha feito uma vez esta viagem; e viemos a conhecer por experiência quão hábil e perito era na arte de navegar por este grandioso e interminável rio. Depois de um terrível encontro com as ondas contrárias do Nilo Azul, dobrada a última ponta de Ondurman, onde confluem os dois grandes rios, chegámos ao Bahar el-Abiad que se espraia diante de nós em toda a sua beleza. Um forte vento empurra-nos para estas águas revoltas e agitadas, que pelo seu caudal, largura e imponência, parecem, mais que um rio, um lago a correr dentro do antigo Éden.


[238]
As margens distantes estão pitorescamente cobertas de vegetação variada, que um sol ardente e uma perpétua Primavera fecundam em cada tempo e estação do ano. O Stella Mattutina parece sorrir a estas ondas furiosas e voa majestosamente pelo meio do grande rio com a rapidez com que os vapores sulcam o nosso lago de Garda, apesar de o Stella Mattutina ir contra a corrente. A primeira tribo que se encontra mais além de Cartum, cidade situada no grau 16 de latitude N. (Verona está entre os graus 45 e 46 ), é a dos Hassanieh, que se estende sobre as duas margens do Bahar el-Albiad e é formada pelas raças negra e nuba, gente que se dedica à pastorícia, sua principal fonte de recursos.


[239]
Os Hassanieh andam sempre armados com lança; e como os núbios deste e do outro lado do deserto trazem sempre atado ao cotovelo uma afiada faca, que utilizam para seu serviço e defesa. E foi precisamente nesta tribo que nos detivemos o segundo dia a fim de comprar um boi para nós e a nossa tripulação. Nada te posso dizer desta grande tribo a não ser que é uma tribo nómada, movendo-se as suas famílias para cá e para lá, conforme as pastagens para os seus rebanhos são mais ricas e abundantes. Ela, por quanto nos consta, estende-se entre os graus 14 e o l6 de lat. N. e os graus 29 e 30 de longitude, segundo o meridiano de Paris.


[240]
As aldeias e povos desta tribo encontram-se algo afastados do rio uns à direita outros à esquerda do seu curso e são Fahreh, Malakia, Abdalas, Ogar, Merkedareh, Tura, Waled Nail, Uascellay, Raham, Mokabey, Gulam Ab, Husein Ab, Scheikh Mussah, Salahieh, Tebidab, Mangiurah, Eleis, etc., etc.; enquanto para as tribos nómadas qualquer terreno é uma cidade, não parando nunca de modo fixo em nenhum lugar. Dentro dos limites desta tribo, elevam-se, embelezando esta espécie de paraíso terrestre, os pequenos montes de Gebel Auly, Menderah, Mussa, Tura e Kirum, depois dos quais, à excepção das pequenas montanhas dos Dincas desde o grau 12 ao 7, tudo é uma perfeita planície.


[241]
Para lá do grau 14 de lat. ficam outras duas pequenas tribos: a de Schamkak à esquerda e a de Lawins à direita; delas, porém, não sabemos nada, a não ser que são gente muito aguerrida e que, por se encontrarem perto dos Hassanieh e dos Bagara, os seus costumes são mais ou menos semelhantes. A 25 de Janeiro entramos nesta vasta tribo dos Bagara, que à esquerda se estende entre os 14o e 12o de lat. e à direita entre os 13o e o 12o, encontrando-se no espaço compreendido o 13o e 14o, à direita, a tribo nómada dos Abu-Rof, cujos costumes são aproximadamente como os dos Hassanieh.


[242]
Aqui precisamente realiza-se uma mudança total na cena da nossa comprida peregrinação. Para lá da tribo dos Hassanieh, ao começar a dos Bagara, as cidades, as aldeias e as habitações desaparecem e as últimas ramificações do tipo árabe-núbio dão lugar definitivamente à valorosa raça dos negros. Arriscar-me a descrever o espectáculo que nos manteve absorvidos bastantes dias ao longo das margens do Nilo Branco, ladeadas pelas imponentes selvas dos Bagara, seria tentar o impossível; e creio que o maior escritor dos nossos tempos não seria capaz de apresentar uma ideia da beleza, imponência e feitiço de uma virgem e nunca contaminada natureza, na qual sorriem estes jardins encantados.


[243]
As margens baixas deste rio compridíssimo e majestoso estão cobertas de uma assombrosa e exuberante vegetação, nunca tocada nem alterada pela mão do homem. Por um lado, imensos bosques impenetráveis e até agora nunca explorados, formados por gigantescas mimosas e verdejantes nebak (árvores de extraordinário porte e idade, porque nunca foram tocadas por mão humana), que, juntando-se umas às outras, formam uma imensa e variegada floresta encantada, a qual oferece o mais seguro refúgio a imensas manadas de gazelas e de antílopes, e a tigres, leões, panteras, hienas, girafas, rinocerontes e outros animais selvagens, familiarizados com as imensas savanas com serpentes de todas as espécies e tamanhos. Pelo outro lado, mostram-se outras florestas de mimosas, tamarindos, ambalós, etc., revestidas de verbena e de certas ervas densas e trepadoras que formam como cabanas naturais, onde certamente se estaria protegido de intensas chuvadas.


[244]
Centenas de ameníssimas ilhas, férteis, grandes e pequenas, belamente esmaltadas de verde, cada uma mais formosa que as outras, parecem, de longe, esplêndidos jardins. Estes belos ilhéus recebem sombra de uma série de soberbas mimosas e acácias, onde os raios ardentes do Sol africano a custo penetram e formam, ao longo de mais de 200 milhas, um arquipélago que oferece o aspecto mais encantador.

Enormes bandos de aves de toda a espécie, tamanho e cor, pássaros perfeitamente dourados e outros prateados, etc., esvoaçam calmamente, sem nenhum temor, pelas árvores acima e abaixo, entre a erva, pelas margens, sobre o cordame do barco. Íbis brancos e negros, patos selvagens, pelicanos, abuseines, grous reais, águias de todas as espécies, papagaios, marabus e outras aves voavam e passeavam para cima e para baixo nas margens, olhando para o céu, de tal maneira que pareciam bendizer a benéfica Providência que os criou.


[245]
Grupos de macacos correm ao rio a beber, sobem e descem das árvores e brincam alegremente fazendo as mais ridículas caretas próprias da sua natureza. Centenas de antílopes, gazelas vão pastando por aquelas selvas, onde nunca ouviram o tiro de uma espingarda ou experimentaram a astuta arte dos caçadores a armarem-lhe ciladas para as matarem. Enormes crocodilos, deitados nas pequenas ilhas ou nas margens; espantosos hipopótamos lançando jactos de água, especialmente pela tarde, atroam os ares com os mais tremendos rugidos que, ecoando na floresta, num primeiro momento inspiram terror, despertando em seguida a ideia mais sublime de Deus.


[246]
Que grande e poderoso é o Senhor! A nossa embarcação avança, pode dizer-se, sobre os lombos dos hipopótamos, os quais, por terem quatro vezes o tamanho de um boi e serem numerosos, porque são às centenas, poderiam afundar-nos num instante. Porém, Deus faz com que esses animais tão ferozes fujam ao ver-nos. Pirogas e barcas de africanos nus e armados de escudo e lança, poderiam atacar-nos num lugar tão solitário; e em troca, apenas dão conta que avançamos sem temor, lançam-se numa fuga precipitada, escondendo-se debaixo dos ramos das árvores gigantescas que crescem em ambas as margens do rio e que, pela sua enorme grandeza, se estendem para além dos limites do mesmo.


[247]
Outros homens, alcançada a margem, desembarcam e entram na floresta. Deleitando deste modo o nosso olhar e bendizendo o Senhor, chegámos à passagem Abu-Said-Mocadah, lugar onde o rio se torna muito largo e baixo e onde o barco encalha. Todos os marinheiros se vêem obrigados a saltar para o rio e, arrastando a embarcação com enorme esforço, conseguem libertá-la ao fim de algumas horas. O encalhe de um barco é uma coisa séria.


[248]
Mais de cem vezes nos encontramos em sítios onde o rio se alarga sobremaneira e a fundura é de um pé. Então os marinheiros descem ao rio e, à força de puxões e empurrões, arrastam a embarcação durante mais de uma milha até o rio ser mais fundo e o barco, com a ajuda do vento, poder mover-se por si mesmo. Para lá de Abu-Said vemos na margem alguém escondido entre as árvores, com a lança na mão, observando furtivamente o Stella Mattutina. Outros apercebem-se de que os vimos e desaparecem a fugir. Nesse momento, o barco choca com um escolho e nós sentimos de repente uma forte sacudidela. Todas as circunstâncias parecem indicar-nos que o barco se partiu; mas afinal os danos não foram grandes, embora durante o resto da viagem meta água de modo pouco habitual. Pirogas de indígenas permanecem escondidas entre as altas canas, que escondem alguma ilha.


[249]
Destacam-se de entre estas ilhas, pela sua beleza e tamanho, as de Assal, Tauwoat, Genna, Sial, Schebeska, Gubescha, Hassanieh, Dumme, Hassaniel Kebire, Mercada, Inselaba e Giamus. Até agora percorremos o espaço situado ao longo dos confins dos Bagara propriamente ditos. Bagara significa na nossa língua vaqueiros e são chamados assim pela sua especial predilecção pela criação de animais de chifres, de preferência vacas, as quais para eles desempenham a mesma função que entre nós fazem os animais de carga e as cavalgaduras. Têm muitíssimas destas vacas, que constituem toda a sua fonte de riqueza.


[250]
Os Bagara estão divididos em várias tribos, conhecidos no Centro de África com os nomes de Bagara Hasawana, Bagara Selem, Bagara Omur e Bagara Risekad; e eu creio que talvez estejam assim divididos pelas rixas dos grandes e ricos ganadeiros, que, ao crescer o número de suas vacas, foram em busca de novas pastagens, tornando-se chefes de outras tantas tribos. Sendo muito ricos em gado, os Bagara estão em guerra permanente com a poderosa tribo dos Schelluk, os quais vêm roubar suas riquezas – como direi mais adiante – e com a tribo do Gebel Nuba, à qual pertence o negro Miniscalchi que agora se encontra em Verona e que tu também conheces. Sobre o governo e a religião dos Bagara, nada te posso dizer. Só que esta tribo, como a dos Hassanieh, por muitas e boas razões, não entra por agora nos nossos planos.


[251]
Por isso seguimos adiante e, ao aproximarmo-nos desses homens, que de há algum tempo nos observam, eles põem-se rapidamente em fuga. Manadas de búfalos, touros e vacas vêem-se nas longínqua pradarias; abunda a selva na margem esquerda e menos na direita. Foi um espectáculo ver numa ilha que, assustados pelo nosso barco, correram para o canal para atravessar para a outra margem. Em vão os seus guardiões tentavam impedi-los com as lanças; por fim também estes atravessaram o rio montados nos seus búfalos, de modo que parecia ver um exército entregue a precipitada fuga. Já o Stella Mattutina voa sobre a água, quando num troço perto do banco de areia Mocada el-Kelb encalhamos de novo. É meia-noite; à direita, vêem-se as fogueiras dos indígenas, que, apoiados em seus escudos e de lança na mão, nos observam. Estes são Dincas.

À esquerda, estão ancoradas doze ou quinze pirogas, parecidas às gôndolas venezianas, só que mais toscas, enquanto os respectivos barqueiros estão com suas mulheres e filhos nus no bosque vizinho, à volta da fogueira (fazem estas fogueiras pegando fogo a juncos que se encontram por ali na mata).


[252]
Estamos entre os Schelluk e os Dincas. Alguns Schelluk passam de barca rente à margem, olhando assustados para o nosso Stella Mattutina. Também alguns Dincas passam e afastam-se receosos. Nós saudamos o chefe e ele, respondendo à saudação, foge. Essa noite são inúteis os nossos esforços de arrancar o nosso barco do lodo e da areia. Dois tripulantes fazem guarda para nos despertarem, em caso de se acercarem barcas de indígenas com intenções hostis. Deus protege-nos. Não acontece nenhum incidente desagradável.


[253]
A nossa situação é bastante crítica. Estamos no meio do Nilo Branco, tendo de um lado os Dincas, que o ano passado mataram alguns passageiros da embarcação de um certo Latif, de Cartum, e cometeram outras atrocidades; do outro lado estão os Schelluk, uma das mais poderosas e ferozes tribos da África Central, que vive de roubos e assaltos.


[254]
Nós não nos podemos mover: temos dez fuzis, mas o missionário deixa-se matar cem vezes antes de pensar defender-se com grave dano do inimigo. J. C. nunca o teria feito. O capitão do barco, abatido, diz-nos que não sabe que fazer. Se aqueles homens quisessem, aniquilavam-nos em dez minutos. Sabes qual era a nossa ideia?


[255]
Entre outras coisas, depois de examinar e reexaminar cada opção, assentámos em que, se os Schelluk nos assaltassem armados, nós, levando ao peito o nosso invulnerável crucifixo, lhes entregaríamos tudo, até o barco. Eles, claro, levar-nos-iam como escravos até ao rei dos Schelluk, talvez para sermos castigados. Porém, com a graça de Deus, com o exercício da caridade e na qualidade de médicos, cedo ganharíamos o afecto daquela gente, permanecendo ali sem procurar outro campo da vinha de Cristo, em que iríamos suar até implantarmos a cruz e a missão.


[256]
Era esta a nossa situação, mas tínhamos uma arma muito poderosa para não temermos nada. No Stella Mattutina há uma formosa capela que tem uma belíssima imagem de Maria. Como nossa boa Mãe, a cujos pés tínhamos colocado a nossa missão, iria Ela ver-nos sofrer e, em grave aperto, não nos socorreria? Pela manhã celebrou-se missa. Oh, que doce foi naquela difícil circunstância ter entre as mãos o Senhor de todos os rios e de todas as tribos da terra e pedir-lhe por nós e por nossas necessidades, pelos que estavam em perigo junto a nós, por vós, pelos que não o conhecem, por todo o mundo!


[257]
Sim, meus queridos pais, a mais consoladora oração naquele momento foi em favor dos Schelluk e dos Dincas, em cujas terras jamais cintilou a luz do Evangelho. Se nos fizessem prisioneiros e nos levassem algemados perante o seu rei, talvez isso fosse a salvação daquela feroz gente; porém, nem nós nem tão-pouco eles mereceriam tão grande graça. Pela manhã, os nossos marinheiros descem ao rio e durante muitas horas, com indizível esforço e fadigas, tentam tirar o barco do banco de areia; porém, a embarcação não se move. Que fazer em tal conjuntura?...


[258]
Resolvemos entre nós chamar em ajuda aqueles homens. Gritando até mais não poder, indicamos-lhes que nos acudam, quase a troco de prendas. Depois de gritarmos uma hora, de bater palmas e fazer toda a espécie de ruído, e muito mais, uma piroga com doze Schelluk e um chefe sai da margem e vem até nós armada de lanças, arcos e escudos; entretanto, as demais vão-se preparando com gente armada para acorrer em ajuda da primeira.


[259]
Quando os temos a bordo do Stella Mattutina, com gestos e gritos indicamos-lhes que queremos a sua ajuda para libertar a nossa embarcação. Eles dão-nos a entender que, antes de fazê-lo, precisam de voltar à margem para combinarem com o seu chefe quantas missangas hão-de receber por isso. Não lho permitimos. Então, depostas as armas, à excepção da lança, atiram-se à água para ajudar os marinheiros. Mas foi tudo em vão. Então fizemos-lhe entender que deviam ir a terra chamar os outros e que depois nós lhe pagaríamos bem. «Não» – responderam. «Queremos – disseram – dois ou três chefes vossos (como tais nos consideravam aos sacerdotes) para os levarmos connosco e retê-los até que nos deis missangas».


[260]
Enquanto o capitão discutia e dizia que não, nós combinávamos quem devia ir como refém. Queríamos ir os quatro e, no fim, enquanto cada um de nós apresentava as suas razões para ir, eles afastaram-se e, em menos de um quarto de hora, apresentaram-se outras três pirogas com homens armados como os anteriores, que, com toda a força, se deram ao trabalho de tentar mover o nosso barco. Depois de não pequeno esforço, a embarcação moveu-se e, nós, alegres, pusemo-nos todos a animá-los. Porém, eles, ao verem que se movia, pararam e, lança em riste, exigiram-nos as missangas. Nós mostrámos-lhas, sem pensar ainda em dar-lhas; mas quando as viram em suas mãos, eles desapareceram rapidamente, deixando-nos sós e com a embarcação mais afundada que antes.

Em seguida, vimo-los já em terra reunirem-se em grande número e repartirem as missangas. Assim passou todo aquele dia. Nós em cada momento observávamos os nossos amigos Schelluk; e na verdade o vaivém de pirogas, a aparição de outras, o afastamento dos Dincas na outra margem do rio (e sabemos que os Dincas temem muito os Schelluk, de modo que quando se juntam muitos Schelluk por um lado, os Dincas fogem por outro), tudo nos fazia suspeitar se não tentariam apoderar-se do nosso barco e fazer connosco uma boa patuscada.


[261]
Caída a tarde e chegada a noite, reunimo-nos para tratar o modo de sair daquele aperto. Há propostas, discussões e reza-se. Porém, já to disse antes, nunca se pode mostrar medo, quando se pensa que temos uma Mãe amorosa e poderosa que vela por nós.


[262]
A Virgem Maria, precioso alívio do missionário, essa Virgem é a verdadeira Rainha da Nigrícia, a Mãe da Consolação, não podia abandonar os seus quatro servos, que tentavam dá-la a conhecer, com seu divino Filho, também a essas gentes idólatras. Ela vinha em nosso auxílio, ao sugerir-nos o modo de sair dessa situação. Durante a noite, voltámos a colocar sentinelas e custou-nos muito trabalho negar aos marinheiros o fuzil. Porém, tivemos que fazer isso para que não acontecesse algum incidente e se armasse alguma rixa com os indígenas; porque os nossos tripulantes são maometanos e para eles é uma virtude matar outros.


[263]
Passa a noite, e pela manhã, põe-se em marcha a execução do plano acordado, que consistia no seguinte: com os 16 remos do barco (que são quatro vezes mais grossos que os das nossas embarcações do Garda) construir uma jangada num lugar onde o rio fosse fundo e sobre esta jangada pôr 30 caixas daquelas cujo conteúdo não se deteriorasse em contacto com a água, como ferramentas, garrafas, quinquilharias, etc., a fim de aligeirar o barco, que sem dúvida flutuaria um pouco mais e assim os marinheiros poderiam empurrá-lo mais facilmente até um lugar com suficiente profundidade. A ideia foi executada com exactidão e celeridade. Carregar a jangada, empurrar o barco e voltar a carregar levou umas dez horas; e é incrível a fadiga que, sob um sol de 38 graus, os tripulantes tiveram de passar para efectuar os carregamentos.


[264]
Deus abençoou o plano e depois de 42 horas de penosa demora naquele terrível banco de areia, favorecidos por um vento forte, continuámos a viagem, dando graças à Providência que, naquele dia, tinha suavizado a belicosidade dos Schelluk, os quais nunca deixam escapar semelhantes ocasiões para fazer presas ou despojos. Contentes por ter deixado atrás esse perigo, avançámos rapidamente e com muita cautela. Cada quarto de hora o Stella Mattutina encalha de novo e é libertado com dificuldade; amiúde choca com escolhos e bancos de areia. E é para admirar que esta embarcação, ainda que a maior e mais forte do Sudão, porque está toda reforçada com ferro, tenha conseguido trazer-nos até aqui, entre os Kich, sem ficar destruída.


[265]
Nas margens esquerda e direita abundam os homens armados de lança, escudo, arco e flechas. À esquerda estão o Schelluk; à direita os Dincas que, quando se apercebem de que os Schelluk são muitos, se escondem na floresta e só aparecem quando a margem esquerda está menos povoada de Schelluk. É surpreendente ver terras cobertas de gado, ao longo de muitas milhas, com vacas, touros, e ver nuvens de milhares e milhões de aves (não exagero nada) de toda a espécie, cor e tamanho, que nos escondem a luz do Sol.


[266]
Imaginai florestas e prados, onde nunca se estenderam armadilhas a pássaros. Os indígenas não fazem nada para apanhar os pássaros, que, pelos vistos, não é um alimento apreciado por eles. Quanto mais se avança, diminuem, andam sempre mais nos matagais, até que deixam de se ver; de tal modo que as margens até ao 7o grau são cobertas apenas de juncos, papiros, pequenas mimosas e só de quando em quando surge, como um gigante, o Bamboas, que é a espécie de árvore mais grossa e alta do mundo. Antes de chegarmos à capital dos Schelluk, onde paramos com o Stella Mattutina, quero dar-te alguma informação das duas grandes tribos dos Schelluk e dos Dincas. A tribo dos Schelluk, uma das maiores e mais poderosas tribos da África Central, estende-se de 12o ao 9o grau de lat. N.


[267]
Pelas informações que temos, não têm nenhuma religião: apenas reconhecem e crêem num espírito invisível que tudo criou, o qual, às vezes, desce a visitá-los sob a aparência duma lagartixa, dum rato ou de uma ave. Dado que os Schelluk não têm suficientes manadas de vacas para combinar os seus casamentos e viver, andam em contínua guerra com a vizinha tribo dos Bagara, de tal modo que agora estão muito ricos devido às rapinas que fazem a estes. Todos os anos, quando os ventos sopram do Sul, a parte de povoação Schelluk que se encontra em apertada pobreza junta-se em numerosas grupos, comandados por um dos seus chefes; e nas suas velozes pirogas descem pelo rio mais de duzentas milhas e escondem-se nas pequenas ilhas cobertas de mato de que eu antes te falei.


[268]
Quando se dispõem a explorar os lugares onde os Bagara levam os seus gados a beber, juntam-se em grupos de trinta, quarenta pirogas que, por serem velozes, compridas e baixas, podem navegar à noite sem serem vistas e desaparecerem rapidamente atrás da erva das margens. Quando os animais chegam e se lançam sedentos à água, os Schelluk, escondidos, caem com a lança em punho sobre os espantados guardiões e levam as vacas, os carneiros, os touros, etc., e regressam às suas ilhas, antes que, de seus longínquos acampamentos, os Bagara possam partir em socorro dos seus irmãos atacados: os quais, sem terem nenhuma barca ou outro meio de perseguir os ladrões, não podem fazer senão ameaçar de longe o inimigo espoliador.


[269]
Mas há ocasiões em que os Bagara se vingam dos Schelluk. Às vezes, informados da chegada e dos hostis propósitos dos Schelluk, esperam-nos emboscados no mato da margem e caem sobre eles no momento em que vão a apanhar o gado. Separam-nos de suas embarcações e, fazendo-os prisioneiros, vendem-nos como escravos aos mercadores núbios, convertendo-se assim em objectos de comércio nos mercados de Cartum.


[270]
O governo dos Schelluk é despótico e o seu trono está ensanguentado de lutas entre facções e de crimes entre herdeiros. Embora tenhamos passado em frente da capital dos Schelluk, não vimos a residência do rei, porque se encontra a três milhas de distância. Está construída, segundo me disse um indígena que sabia árabe, em forma de labirinto. A vida do rei está ameaçada de manhã à noite e ele vive oculto, não dormindo duas noites seguidas na mesma habitação.


[271]
Todos os povoados desta vasta tribo estão submetidos a uma contribuição anual de muitas vacas, segundo a riqueza ou o número de habitantes. Além disso, o rei tem direito à terça parte de todos os roubos que seus súbditos cometem fora da tribo e castiga com a perda de tudo ou quase tudo a quem roubar e não lhe levar a sua parte da presa. Como todas as tribos de África, praticam a poligamia, podem ter quantas mulheres quiserem e deixá-las quando lhes apetecer. Sobre a caça que fazem aos hipopótamos, a forma das suas cabanas, etc., como são idênticas às das outras tribos de África que temos visto no nosso trajecto, dir-te-ei algo quando delas te falar.


[272]
Teremos mais ocasiões de conhecer e de observar esta gente. Fisicamente são altos e vigorosos e vi muitos de estatura gigantesca. Os homens, como todos os de África que temos visitado, andam completamente nus; o mesmo acontece com as mulheres, à excepção das casadas, que se cingem do lado direito ou esquerdo com uma pele de cordeiro ou de cabra. As mais ricas trazem uma pele de tigre, porém, elas pouco se interessam em cobrir aquilo que deve andar coberto; e, pelo que vi, quase me inclino a crer que isto não o fazem por sentimento de pudor, mas por vaidade. A fantasia dos Schelluk manifesta-se especialmente nos adornos do cabelo. Cortam-no de mil maneiras: fazem cristas de galo, barbas de bode; às vezes cortam-no, deixando que forme como que orelhas de carneiro ou de tigre. Nem eu seria capaz de te indicar em pormenor o que de bizarro tem esta classe de adornos, em que gostam de caprichar.


[273]
Esta seria uma tribo adequada para o nosso plano de missão, porém, por motivos que já te direi, descartámo-la. E eis que estamos na sua capital, Denab e Kako. Esta cidade está situada no rio Branco e tem mais de uma milha de comprimento. O rei nunca concede audiência a ninguém, salvo a três ou quatro confidentes seus e às suas inumeráveis mulheres quando quer servir-se delas.

Quando esses seus confidentes se aproximam, têm de arrastar-se como serpentes, receber as ordens de rosto em terra e, depois, voltar atrás arrastando-se; em suma – e permite-me que use a expressão veronesa para me fazer entender – quando se apresentam ao rei, devem entrar dentro da sua cabana gatinhando. À vista da capital dos Schelluk, desfrutamos de um espectáculo surpreendente. Quando o Stella Mattutina pára em frente dela, surge uma multidão de variadas raças e costumes, que instalam um mercado na margem. Havia uma raça de homens completamente vermelhos, como sangue vivo, iguais aos que vi perto de Halfaya.


[274]
Havia nómadas de cor avermelhada; havia gentes de Abu-Gerid, cor de tijolo cozido; havia indivíduos amarelados, parecidos aos Hassanieh; havia gente de Cordofão, de cor pardo-escura; e nativos Schelluk, que, como todos os negros da África Central, andam sempre armados de lança (cuja forma varia segundo as tribos), de escudo de couro de forma alongada, de arco e de flechas. E estas armas trazem-nas sempre (à excepção do escudo que às vezes depõem), quer andem a apascentar os rebanhos quer estejam a comerciar ou sem fazer nada. Todas as tribos que visitámos usam a lança para se defender ou atacar, para cortar as coisas de que precisam, para pescar, caçar, etc.


[275]
Tanto os homens como as mulheres trazem fiadas de colares de missangas, que põem ao pescoço, ou à cintura como nós pomos a faixa, ou na fronte; e o que tiver mais missangas é considerado o mais belo. Vi o filho de um chefe que tinha contas de vidro até na barriga e andava como se fosse o dono do mundo.


[276]
O rei, certamente, crê-se o maior monarca da terra, com excepção do da Abissínia e, por isso, não concede audiência a ninguém, salvo ao rei da Abissínia, se ele vier. Em Kako, que é uma cidade dos Schelluk, situada no grau 10, tentei comparar a língua do meu amigo Bahhit Miniscalchi com a local; mas encontrai-as diferentes. Por outro lado, estou convencido de que por Kako se pode penetrar com muita facilidade nas tribos de Karco e Fanda, isto é, Gebel Nuba, sem passar o deserto de Bagara, o Cordofão e Dongola, que é o caminho que seguiu o negro Miniscalchi. Também essa tribo seria adequada ao nosso plano, porém, opõem-se a isso as razões de que te falarei. Em toda a margem esquerda dos Schelluk até ao grau 9 e meio abundam os guerreiros armados, como te disse, que caminham com bastante dificuldade, andando com os calcanhares voltados para fora.


[277]
Mas passemos aos Dincas. É a maios tribo da África Central, ao que consta; e esta é a razão pela qual desde há muito tempo pensamos escolhê-la como ponto central das nossas fadigas e como campo dos nossos suores. Sobre o estado desta tribo, o seu governo, religião, etc., não se sabe nada de concreto: até os seus confins se ignoram. Antes, contudo, de nos decidirmos definitivamente por ela, queremos visitar outras tribos para escolhermos com maior segurança e elementos de juízo. Os Dincas, que andam nus, como todas as tribos que temos visto, cobrem de cinza todo o corpo, incluindo a cabeça e os olhos; e isto, segundo nos foi dito, fazem-no para se protegerem dos mosquitos, que em número infindo, de diversas espécies, atormentam a quem vive na África Central.


[278]
As suas margens estão infestadas de crocodilos e hipopótamos: um dia, observando de longe, vi como que um grande e comprido escolho, que eu pensei ser de granito vermelho: era, afinal, uma ilha formada por enormes hipopótamos juntos. Os Dincas, como todos os negros da África, trazem braceletes de marfim no antebraço e nos pulsos. Esfregam as suas flechas com uma certa erva venenosa, tornando-as assim mortais. Os que pertencem a esta tribo distinguem-se das outras raças de negros: têm a fronte espaçosa e protuberante, o crânio achatado e inclinado até às fontes, o corpo comprido e delgado.


[279]
Vendo esses homens com a lança na mão, apoiando preguiçosamente todo o corpo no escudo, tem-se a impressão de estar diante da encarnação da vida ociosa e indolente; e eles, desde que tenham bebida alcoólica para se embriagarem, leite para se sustentarem e mulheres para se satisfazerem, não desejam mais nada. Porém, a luz do Evangelho brilhará aos seus olhos e, penetrando nas suas mentes e no seu coração, com a graça divina mudarão os seus pensamentos, índole e costumes. A sua língua estende-se a outras tribos de África; e, pelo que me parece, não passa duma amálgama de monossílabos. As povoações dos Dincas são bastante miseráveis, contrastando com o aspecto das cidades dos Schelluk, as quais são maiores, mais espaçosas e cómodas.

Todas as cidades são um conjunto de aldeias juntas, que se distinguem por um espaço intermédio de 30 passos. As povoações compõem-se de cinquenta, cem, trezentas ou mais cabanas, construídas em forma de cone. O seu perímetro é circular, a sua parede tem uns sete pés de altura e é de barro; sobre ela assenta uma cobertura de canas bastante elegante. Observai a figura n.o 1, que dá uma ideia de Kako. Mas deixemos os Dincas (1): mais tarde, se Deus quiser, quando conseguirmos entrar no interior desta vasta tribo, poderei dar-vos notícias mais abundantes.


[280]
Porém, antes de continuar, quero contar-vos como nos detivemos em Hano para comprarmos um touro. Aqui, no Stella Mattutina, recebemos o velho chefe (scheik) dessa cidade, o qual, com os seus cabelos brancos, com os membros a tremer, nu, metia dó. Fizemo-lo entrar na formosa capela e surpreendido pela maravilha, soltou um grande grito e recuou como fulminado; tendo-o levado diante de um grande espelho do camarote do barco... é melhor não contar as coisas estranhas e curiosas que fez. Ao ver a sua figura no espelho (falava com ele próprio, respondia, gritava), desatava em grandes gargalhadas e, finalmente, talvez por ter visto algo no espelho, pôs-se a fugir. Nós detivemo-lo; ele proferiu tanto palavreado acompanhado de movimentos, que parecia querer entregar-nos em mão o seu poder. Finalmente foi para terra num batel feito de canas de ambai, composto de sarmentos ou feixes, com que os Schelluk costumam atravessar o Nilo.


[281]
Aquela povoação ou cidade estava rodeada de formosas palmeiras de Doleb, que são como as tamareiras, porém, com a diferença de que na parte média do tronco são mais grossas que em cima e em baixo. Poucas milhas depois de Hano, abrem-se majestosas as bocas do rio Sobat, que levam ao interior do território dos Dincas e que estão ainda vermelhas, por assim dizer, dos que tentaram entrar por elas; estes pagaram porque se apresentaram com ânimo hostil, ameaçando aos indígenas se não lhes entregassem os dentes de elefante que possuíam. Nós, já na Europa, havíamos decidido penetrar no território dos Dincas pelas bocas do Sobat e talvez levemos a cabo este projecto. Mas agora, desde Assuão, decidimos percorrer os locais para nos assegurarmos melhor aonde quer Deus que comecemos a nossa missão.


[282]
Estas bocas formam como que um delicioso lago cercado de exuberante vegetação. Chegado a este ponto, o rio vira bruscamente para ocidente, banhando à esquerda a tribo dos Yangueh, à direita o imenso pântano dos Nuer, que é uma verdadeira ilha, circundada de um lado pelo rio Branco, do outro pelo canal dos Nuer, e tem a a circunferência de mais de 400 milhas. Não te digo nada da pequena tribo dos Yangueh, salvo que nela há uma infinidade de plantas de papiro, que os antigos usavam em vez do papel para escrever e que outrora abundava no Egipto. Esta útil planta é como a do milho, salvo que as suas folhas caem como cabelos, graciosamente, à maneira de melena.

Aqui saudamos os indígenas desta tribo que, de uma forma grosseira, mas cordialmente, respondem com gritos à nossa saudação, exultantes por terem morto um grande hipopótamo, cuja carne, feita em pedaços, haviam posto ao sol para a comerem assim, crua, como fazem os negros.


[283]
Em terras dos Yangueh vemos muitos baobás de tamanho mediano e imensas manadas de búfalos selvagens, grandes como bois, com os cornos monstruosamente retorcidos para a frente, aos quais aquela gente dá caça. Pelas montanhas de Tkem e Kira, que ficam muito no interior a ocidente, há imensas girafas que chegam com o pescoço até uma altura de 25 pés. A margem esquerda, passado o território dos Nuer, oferece-nos o espectáculo de um rebanho de grandes elefantes, abundantes nesse imenso pântano, que pastavam no caminho até ao rio onde iam beber. Há ali muitos rinocerontes, um dos quais foi morto anteontem perto da nossa estação provisória.

Foi depois da vista destes elefantes que um vento impetuoso rasgou a vela maior do nosso barco, de modo que nos vimos obrigados a permanecer naquele pântano meio dia, perto do lugar onde um núbio da missão de Cartum, que se afastara da margem, foi morto pela lança de um Nuer.


[284]
Aí, enquanto o P.e Beltrame dava caça a um hipopótamo, eu quis seguir um bando de abusin, que são aves do tamanho de um cabrito. Mas, diante dos disparos do P.e João, que é um bom caçador, o hipopótamo nem se dignava mover-se, porque só a sua pele tinha a grossura de 4 dedos; e, aos meus disparos, os abusin apenas se davam ao trabalho de voar quatro passos para mais longe, desprezando os meus esforços como inúteis. Eu nunca atirei com bala. Reparada a vela, prosseguimos viagem com ela embrulhada (puxada para cima) e o barco, sem velas despregadas, avança rapidamente como um vapor. Dois dias depois da nossa viragem a ocidente, chegámos à foz de outro enorme rio da África Central: o Bahar el-Gazal, o rio dos veados. O aspecto da paragem onde se juntam o rio Branco e o El-Ghazal é o de um lago encantado, rodeado de imensos e ameníssimos jardins de mimosas, ambalós e baobás, formados pela natureza e que nunca mão de homem ousou tocar.


[285]
Neste ponto, que se encontra no grau 9, virámos exactamente para o meio-dia, sempre percorrendo os imensos confins da tribo dos Nuer, que habita em ambas as margens. Desde aqui até aos Kich, o rio efectua mais de 40 mudanças de direcção, virando ora para sul, ora para norte, ora para oriente e ocidente, de modo que durante mais de um dia os marinheiros tiveram que rebocar o barco (tirar l’anzana, como dizeis vós no lago de Garda) debaixo dum sol abrasador; e como os Nuer dão pouco valor à vida do homem, cada vez que os tripulantes desciam a terra tinham que ir armados. A dificuldade aumentava naqueles lugares onde, com vento contrário, não se podia descer a terra, por causa do matagal que estende os densos ramos até bem dentro do rio; então lançávamos a âncora e esperávamos até ter o vento favorável. Mas lançar a âncora no Nilo Branco não é como fazê-lo num lago, porque aqui o rio corre impetuoso. Neste decurso, gozámos ao anoitecer um surpreendente espectáculo de hipopótamos e íbis. A partir de Cartum, vimos milhares e milhares de hipopótamos e também de íbis.

Com um tamanho igual a 4 vezes o de um boi, o hipopótamo tem uma cabeça desmesurada, parecida na forma à de um vitelo e na sua boca cabe um homem, o seu lombo é como o de um cavalo e as patas são curtas como as do porco, se bem que proporcionadas; o seu mugido normal é como o do boi, ainda que mais sonoro e grave. O hipopótamo vive de dia na água e de noite sai do rio e alimenta-se de erva; nos lugares onde há cereais e sorgo, como na Núbia, devasta um campo numa só noite. Ao entardecer, o hipopótamo costuma sair precipitadamente da profundidade do rio para a superfície, bufando e mugindo e dando saltos como os de cavalos e logo imergindo novamente, revolvendo toda a água como numa tempestade. A nossa embarcação passou mais de uma vez sobre o lombo dos hipopótamos; muitas outras vezes tivemos de suportar golpes tremendos, produzidos pela passagem de um hipopótamo; precisamente no Stella Mattutina, há uns anos, enquanto o cozinheiro estava no seu trabalho, foi projectado para a água por um hipopótamo e devorado de uma só vez.


[286]
Pois bem, naquele entardecer, encontrávamo-nos no meio de milhares de hipopótamos que bufavam, mugiam e corriam precipitadamente, como se à nossa volta se desencadeasse uma batalha entre estes temíveis anfíbios. Esta cena durou até à manhã seguinte e muitas vezes teve que se mover a embarcação de um lado para o outro do rio para evitar este temíveis animais quando estavam em grupos, formando outras tantas ilhas. Também naquela tarde percorremos um bom troço admirando na margem esquerda uma fileira de altíssimas árvores, durante três milhas, todas cobertas de íbis.


[287]
O íbis tem um tamanho equivalente a duas vezes o nosso peru, com pescoço comprido, bico de pato e belíssimas plumas. O íbis era na antiguidade um dos maiores deuses do Egipto e o seu nome também foi agora adoptado em Verona por uma sociedade científica, que imprime um boletim com o nome de Íbis. Imagina agora o que é percorrer três milhas junto de uma fileira de árvores todas cobertas não de moscas, mas de centenas de milhares destes preciosos voláteis que, sem temor, observavam a passagem do Stella Mattutina.


[288]
Aquilo foi um motivo para exaltar a grandeza de Deus que com tanta sabedoria e poder pensa também nesses animais. Para fazer ainda mais bela aquela tarde e aquela noite, contribuíram também as inumeráveis fogueiras dos Nuer, que, para abrir passagem desde o interior até ao rio, incendeiam o alto capim de toda a planície, o qual é um espectáculo digno de se ver. A vasta região dos Nuer oferece-nos, além disso, o espectáculo de manadas de antílopes, de búfalos e de muitos outros animais. Passada a extensa cidade de Goden, descobrimos com grande surpresa que os negros cultivam sorgo. As suas cabanas são muito semelhantes às dos Schelluk, porém, distanciadas umas das outras e, em volta de cada cabana, há sementeira de sorgo do qual se alimenta essa família.

A tribo dos Nuer é a mais laboriosa de todas as que temos visto e, portanto, a meu ver, a mais rica. Tive ocasião de conhecer algo deste povo, por nos termos detido em Fandah-el-Eliab, que é como que a capital e o mais importante mercado das tribos.


[289]
Quero agora fazer uma pequena digressão. Já na Europa, pelos livros, etc., e, depois, pelos relatos trágicos que ouvimos em Cartum, tínhamos formado uma ideia terrível sobre os Nuer: que matam, que massacram, que comem pessoas, etc., etc.; e sobre isto houve insistências especialmente em Cartum, onde nos aconselharam a armar-nos de muitos fuzis para resistir aos ataques dos negros. Mas desde a tribo dos Hassanieh vimos sempre que os negros fugiam ao ver-nos. Os Bagara, os Schelluk, os Dincas, os Nuer, etc., ou respondiam às nossas saudações ou fugiam. Em resumo, embora nos encontremos sempre no meio de tanta gente armada de lanças, escudos, flechas envenenadas e grossos varapaus, devo chegar à conclusão de que eles têm mais medo de nós do que nós deles; por isso, ao apresentarmo-nos diante dos negros, vamos resolutos e sem nenhum temor e eles, ao verem-nos assim, fogem se não os convidarmos a permanecer connosco.


[290]
E isto pu-lo em prática quando, chegado a Fandah, fui por entre lanças a um mercado dos Nuer, que, à medida que nos aproximávamos, nos abriam passagem como quando entre nós passa um imperador. Nessa altura, tive ocasião de admirar a fantasia dos homens e das mulheres Nuer. Muitos tinham o cabelo empastado de barro, de cinza ou de sorgo e caía-lhes em pequenas tranças; outros tinham-no todo coberto de pequenas pérolas e missangas à semelhança de um capacete militar; outros, com o cabelo eriçado bruscamente na vertical, pareciam os diabos que se costumam pintar entre nós; outros trazem pedaços de latão e de cobre na fronte; outros tinham o cabelo em forma de prato; outros traziam ao pescoço tiras de pele de tigre; e todos com dois, três, e até cinco braceletes de marfim nos braços. Adornadas de tal modo, essas figuras nuas, empastadas de cinza, para te dizer a verdade, pareciam-nos demónios.

Maior era contudo a extravagância das mulheres, que traziam nas orelhas duas, três, dez e até quinze anéis de cobre; havia-as que tinham as orelhas completamente cobertas de missangas e vidros coloridos; outras tinham a barriga toda adornada de fiadas de anéis, contas, etc., e muitas com uma fiada de contas, vidros, ou anéis de cobre enfiados no lábio superior, sobressaindo para cima.


[291]
Enfim, era um espectáculo vê-los entre as lanças, os escudos e as flechas. O aspecto das mulheres é monstruoso. Com os seus compridos e brancos dentes, com a pele enrugada pela cinza, com o corpo todo cheio de lodo, digo a verdade: quase fazem vomitar. Esta grande tribo dos Nuer seria um campo muito adaptado para o nosso trabalho; mas o seu território pantanoso é mortal para o europeu, e, o que é pior, tem contra uma razão que te direi depois. Em Fandah recebemos no barco o chefe desta tribo, o qual deu as mesmas mostras de assombro que o de Huao; mas este era mais corajoso e resoluto.


[292]
Perto de Meha, vemos no rio o cadáver de uma mulher e apercebemo-nos de que estamos na tribo dos Kich, onde têm o mau costume de atirar os mortos ao rio. Aqui um caucasiano Koschut veio visitar-nos juntamente com outros três ao Stella Mattutina e conta-nos muitas coisas da tribo dos Angai, que fica muito no interior e cujo chefe comprou há pouco um formoso jovem por dezassete bois e logo o matou. Encontramos o chefe da tribo sujo como um porco e furioso porque os Nuer tinham vindo e lhe tinham roubado todos os rebanhos. Vemos as sórdidas cabanas dos Kich, que nos revelam bastante em que miséria se encontram esses pobres africanos. Passando junto a uma aldeia, onde estava um dos chefes, este põe-se a correr atrás do nosso barco dizendo “nosso senhor veio” e gritando cham-cham, que significa «tenho fome». Demos-lhe uns biscoitos, e ele, armado, quer vir atrás de nós pela margem, como para nos proteger dos ladrões na nossa passagem, os quais existem ali em grande número; pode-se até dizer que todos os Kich são ladrões, ainda que tímidos e pouco astutos.


[293]
Depois de deixarmos para trás a povoação de Abu-Kuka, ajudados por negros que rebocavam a embarcação, chegámos, finalmente, à estação de Santa Cruz, onde agora nos encontramos, que fica na terra chamada Pa-Nom. A nossa chegada teve lugar a 14 de Fevereiro, vinte e cinco dias depois da nossa partida de Cartum, que dista mil milhas desta cidade, segundo cálculos precisos e restritos. Pa-Nom está situada a sete graus de lat. N. e é um magnífico ponto central e mais seguro que os outros para iniciar explorações.

Por isso detemo-nos aqui; e, se não aparecer nada que o impeça, estamos decididos a implementar o plano do nosso superior e cumprir as suas ordens de encontrar uma tribo adequada aos seus fins. Eis o que pensamos fazer: através de todas as explorações e averiguações levadas a cabo até agora, pudemos certificar-nos de que a língua dos Dincas é a mais difundida em toda a África banhada pelo Bahar el-Abiad; e é falada e entendida não só pelos Dincas, mas também pelos Nuer, pelos Yangueh, pelos Kich, pelos Tuit, assim como pelos Schelluk, que habitam a margem esquerda, em frente dos Dincas.


[294]
Agora ficamos aqui entre os Kich para aprender a língua dos Dincas e igualmente para explorar a zona para termos um melhor conhecimento do que Deus quer que façamos. Aprendida a língua, poderemos em seguida escolher entre muitas tribos, onde se fala o dinca; assim disporemos de mais tempo para consultar a vontade do Senhor.


[295]
A nossa actual estação provisória está situada a pouca distância do rio, no início de uma selva inexplorada, cheia de elefantes, tigres, leões, hienas, búfalos, rinocerontes e outras feras e animais selvagens. Todas as noites elefantes, leões e outras feras passam pela nossa estação e vão ao rio beber. Três dias depois da nossa chegada à tribo dos Kich, um leão arrastou um burro para fora do curral e dilacerou-lhe o lombo; dois dias mais tarde passaram mais de duzentos elefantes junto a nós (que estávamos metidos nas nossas cabanas) para irem ao rio. No passado domingo, o P.e Ângelo e eu penetrámos na selva durante meia hora para ver se encontrávamos árvores pequenas para fazermos uma cabana e descobrimos grande número de árvores derrubadas pelos elefantes e o rasto de búfalos e leões, mas não vimos animais ferozes, porque Deus nos protegia.

Prometi-te antes contar-te algo sobre a caça aos elefantes e hipopótamos, mas não tenho tempo. Basta que saibas que o elefante é o animal terrestre maior que se conhece, que, com a sua tromba, derruba enormes árvores; que, tendo dois dentes, cada um pesa três, quatro e até cinco arrobas; e que no Cairo cada dente de elefante se paga a cem táleres o qintâr (umas 4 arrobas).


[296]
Queridos pais, vejo que estou num mundo totalmente diferente do da Europa. [...] Parece-me, por outro lado, que os relatos dos viajantes sobre a África são exagerados. É verdade que estes homens matam e massacram, mas só quando provocados.


[297]
Nós viemos aqui com o ósculo da paz, a fim de lhes trazer o maior bem que existe: a religião. Eles nunca nos deram motivos de desgosto: trazem-nos lenha, palha e tudo o que há; nós, em troca, damos-lhe sorgo ou missangas e eles vão-se todos contentes. Não temais, meus queridos: com o crucifixo ao peito e com a palavra de paz, amansam-se as bestas mais ferozes; também é verdade que se tem necessidade da graça de Deus, mas esta nunca falta. Teremos que trabalhar, suar, morrer; porém, a ideia de que se sua e se morre por amor de Jesus Cristo e pela salvação das almas mais abandonadas do mundo é demasiado doce para desanimarmos de levar a cabo a grande empresa.


[298]
O primeiro esforço que Deus quer que façamos é aprender a língua dos Dincas. Quando se dispõe de gramáticas, de dicionários e de bons professores, não é tão difícil aprender uma língua estrangeira. Mas o nosso caso é bem diferente. A língua dos Dincas nunca foi conhecida, pelo que não existem nem gramáticas, nem dicionários, nem professores. A gramática e dicionário da língua dos Dincas vamos fazê-los nós. E, para o efeito, teremos de colher todas a palavras dos lábios destes indígenas, que não conhecem nem a nossa língua nem o árabe. Vede quantas dificuldades!


[299]
E uma vez que se disponha de um discreto reportório de palavras, à força de raciocínio e de deduções teremos que chegar às regras gramaticais, à formação dos tempos, ao modo de construir frases e similares. Sim, tudo isto terá de ser feito por nós. Por outro lado, para pregar, não podemos estar à espera de conhecer a língua na perfeição. Apenas saibamos balbuciar quatro pequenas frases, aí nos vereis no meio duma multidão de homens armados, a tentar dar-lhes uma ideia de Deus, de Jesus Cristo e da religião. Já começamos aqui a reunir os Kich. Que Deus comova os seus corações!


[300]
O que ainda nos dá pena é ver esta gente deploravelmente ociosa. Há aqui planícies de centenas de milhas que têm uma terra com a qual na Europa se fariam milagres e eles deixam-nas incultas. Passam fome e não pensam em semear. Carecem, é certo, de ferramentas e de tudo; mas o engenho que lhes permitiu fabricar lanças e flechas deveria tê-los ensinado também a fazer enxadas, pás, picaretas e ferramentas de corte. Mas sobre eles não quero dizer-vos nada até os conhecer melhor. Até agora não vos falei nada da religião desta gente, nem da ideia que têm de Deus. Nós, para escolhermos segundo um bom critério um lugar de missão, temos que nos informar de tudo, inclusive de coisas que aparentemente nada têm a ver com a religião. Mas tempo virá em que escreverei também sobre esta. Os que vivem perto do rio dedicam-se à pesca.


[301]
O Nilo está cheio de grandes peixes; não se pode comparar a abundância da pesca do nosso lago com a do Nilo, especialmente entre estas tribos; e deduzo isto pela maneira de pescar destes indígenas; não têm anzóis nem redes, apenas uma comprida cana, na ponta da qual há uma flecha. Com este arpão montam nas suas pirogas e percorrem, por exemplo, um trecho de cem passos a cravarem-no continuamente na água, sem tomarem o peixe de mira; e é curioso ver a quantidade de peixe que conseguem pescar em pouco tempo. As suas pirogas são do comprimento das nossas barcas, mas muito estreitas, não ultrapassando os três palmos, pelo que apenas cabe uma pessoa. Os Schelluk constroem estas pirogas com tiras de casca de árvore que unem umas às outras e aqui entre os Kich são de uma peça única, feitas de um tronco escavado à força de arpões.


[302]
Mas basta, queridos pais. Eu teria outras coisas para vos dizer, gostaria de estar sempre a falar-vos para vos consolar, para vos repetir que estejais satisfeitos e tranquilos. Não vos queixeis nem do abandono nem da separação; deixai que chorem a separação os que não têm religião; e ainda supondo que não nos voltaríamos mais a ver neste mundo, não é uma sorte abandonarmo-nos na Terra para nos encontrarmos para sempre felizes no céu?


[303]
A despedida, a distância, o abandono podem chorá-lo os mesquinhos e infelizes que não conhecem outro mundo além deste, nem outra união além da união material das pessoas. Mas nós sabemos pela fé que há um Paraíso, onde se reúnem todos os verdadeiros filhos de Deus; ali se juntam todas as preces dos homens, vindas de todos os rincões da terra. Por isso, ainda que vós estejais numa parte do mundo e eu noutra, estamos e estaremos sempre unidos, porque convergimos para um só ponto – Deus – que é centro de comunicação entre vós e mim.


[304]
Porém, sabeis porventura o que a Providência determinou? Talvez nos voltemos a ver. O clima de África é terrível, mas não tanto como se crê. Não vos parece uma maravilha que, de seis que somos, nenhum de nós tenha perecido na viagem? Para vossa consolação, devo dizer-vos, além disso, que a posição em que nos encontramos é muito melhor que a de Cartum e é saudável. Já nos habituámos ao calor, as febres vão e vêm, mas acabam por desaparecer. Morrerei, Deus o sabe, mas eu até agora estou são e os cinco gozamos de esplêndida saúde. Dêmos graças ao Senhor, mas com a condição de que nos mande outras tribulações, se não nos quiser mandar enfermidades e mortes.


[305]
Enfim, queridíssimos pais, o Senhor vos abençoe primeiro na alma e depois no corpo. Lembrai-vos que vos trago sempre no coração. Os meus companheiros saúdam-vos cordialmente, enviam-vos a sua santa bênção e desejam ser por vós recordados. Rogai por eles e pela missão. Quando menos o esperardes, Deus vos consolará. E, além disso, será que eu não serei capaz de consolar-vos com as minhas cartas? É verdade que são pobres e escassas de substância, mas pensai que, estando escritas embora grosseiramente, são escritas pelo vosso filho que vos ama.


[306]
Eu conservo as vossas como uma relíquia. Logo que as recebo, guardo-as por ordem e quando um natural sentimento de dor por vós me oprime, leio-as e consolo-me, porque sinto que vivo na vossa recordação. Fazei vós também o mesmo; quando as coisas correrem mal (o que é sinal de que estamos neste mundo) leiam algumas páginas destas toscas cartas que de quando em quando vos mando e vereis como vos sentireis aliviados. E quem sabe que alegrias vos tem Deus preparadas nesta Terra! Vós, porém, procurai sempre as do Céu, desprezando as temporais. Deus vê tudo! Deus pode tudo! Deus nos ama; rezai pela conversão da África!


[307]
Enquanto vos abraço a ambos, saudai cordialmente da minha parte Eustáquio, Hermínia, o tio José, César, Pedro, Vienna e a todos os parentes, não vos esquecendo de dar um beijo por mim a Eugénio, quando voltar gloriosamente de Innsbruck. Apresentai os meus respeitos ao sr. conselheiro, ao patrão, à sra. Lívia, e através deles, a Adolfo e aos senhores Santiago e o Teresa Ferrari, de Riva. Também ao novo ecónomo espiritual, dizendo-lhe que, como seu paroquiano, também tenho o direito à sua solicitude pastoral; porém, como ele está num hemisfério e eu noutro e, encontrando-me tantas milhas longe de seus olhos, não pode exercer sobre mim o seu paternal cuidado; mas ao menos tenho direito a participar nessa pastoral solicitude por meios das orações. E já que o seu múnus implica rezar ao Senhor pelo seu povo, e nas festas celebrar missa pro populo, eu desejo participar dos seus pastorais cuidados, participando das suas orações. Numa palavra, dizei-lhe que reze ao Senhor por mim, que sou sua ovelha, embora extraviada.


[308]
Em meu nome apresentai saudações ao sr. José e à sra. Júlia Carettoni, ao sr. Pedro Ragusini e a Bartolo Carboni; à família Patuzzi, velhos e jovens, a P.e Ben, às três sras. Parolari-Patuzzi, aos srs. Giraldi, quer dizer, às senhoras Nina e Tita, ao sr. João, a Ventura, etc.; ao médico, a todos os Luchini, ao amigo António Risatti, ao sargento, também em nome do P.e Ângelo; ao pintor, aos jardineiros de Supino e Tesolo, a Rambottini e Barbera, ao bom Pedro Roensa, com sua família e filha empregada dos nossos. E quanto à nossa criada, estamos entendidos; saudai também a sra. Cattina Luchini, Sassani, etc., etc. Mandai as minhas cordiais saudações ao arcipreste de Pieve, ao P.e Luís, ao P.e Pedro, ao pároco de Voltino, ao dr. David e a essa boa mulher que é a velha Mariana Perini.


[309]
Em resumo, cumprimentai da minha parte a todos os que frequentam a nossa casa, a Minico, o de Riva, aos nossos parentes de Bogliaco e Maderno e a todos os patrícios de Limone. Dizei aos habitantes de Limone que vos abandonei com a minha pessoa, mas nunca com o espírito. Nunca é tão doce a lembrança da própria terra como quando se está longe dela. Dizei-lhes que rezem ao Senhor por um conterrâneo seu que, ainda que afastado, sente afecto por eles. As minhas saudações ao invulnerável Pirele, a sua esposa, a pudibunda Maria. Enfim, adeus, queridos pais. Compraz-me repetir-vos que gozo da melhor saúde; o mesmo espero de vós. Ao receberdes esta, suponho que já vos terá chegado a encomenda de Jerusalém. Dizei a quem mando lembranças que se recordem de mim, mas diante de Deus.

Recebei o mais carinhoso abraço e, além disso, a santa bênção do



Vosso af.mo filho

Daniel Comboni

Missionário apostólico na África Central



(1) Os Dincas arrancam os dois dentes incisivos à idade de 7 anos.






33
Eustáquio Comboni
0
Territorio Kich
5. 3.1858

N.o 33 (31) - A EUSTÁQUIO COMBONI

AFC

Tribo dos Kich, no 7o lat. N.,

5 de Março de 1858

Querido primo,


 

[310]
Não me recordo se na minha última, que te escrevi de Cartum, te fiz uma queixa justificada; mas mesmo que o tenha feito, quero repeti-la. Ao abrir agora a tua carta, não encontrei notícias do pequeno Hermínio... enfim, já me entendes. Quero que me dês informações não só do meu querido Eugénio mas também dos outros. Espero que te encontres bem e do mesmo modo o tio.


[311]
Ouvi dizer que o tio quer fazer uma viagem a Jerusalém: seria uma óptima coisa, pois estou certo que, depois, não se importaria de morrer. Mas, para falar verdade, não o aconselharia a realizar essa viagem, não tanto pelas duas mil milhas que teria que percorrer no mar, mas especialmente pela passagem das montanhas da Judeia, que nem sempre são seguras. Além disso, requere-se uma força juvenil, uma vez que terá de sofrer incomodidades e outras dificuldades, incompatíveis com os seus sessenta anos. E muito menos o aconselharia a fazer a viagem com os frades, os quais, por estarem acostumados a sofrer, não lhes será excessivamente pesado passar um mês num barco sujo e pestilento.

Porém, se, chegada a Páscoa, o tio decidisse fazer essa viagem, é preferível que vá ao Lloyd austríaco e que tu, então, me escrevas em seguida para eu poder recomendá-lo em Alexandria, em Jaffa, ao cônsul francês em Jerusalém e em todas as cidades da Palestina, onde eu tenho úteis correspondentes. Advirto-te de novo de que nem todos os frades são convenientes; sei-o por experiência própria. Quanto à língua, quem não estiver habituado, desembaraça-se com o italiano, porque na Palestina há mais de cem missionários italianos. Passemos a outro assunto.


[312]
A minha actual situação, as minhas ocupações, impedem-me de te dar um breve relato da minha viagem ao Centro da África. Podes ler o confuso emaranhado de ideias que escrevi ao meu pai. Que mudanças se produzem na vida! Há seis meses encontrava-me entre gente civilizada, culta, entre cristãos; agora não posso dar uma volta sem me encontrar com uma chusma de pobres indivíduos, que, na sua língua, com a expressão cham-cham (tenho fome) nos pedem o baksis. Na Europa vivíamos em casas de alvenaria, comíamos em mesas e dormíamos em camas. Aqui vivemos em toscas cabanas de canas e juncos, comemos gostosamente sobre um dos nossos caixotes de viagem, dormimos sobre uma tábua ou sobre um catre feito de cordas de tamareira.


[313]
Na Europa não se viam senão cães, cabras, bois, burros; aqui estamos quase familiarizados com os elefantes de tromba comprida, com os búfalos de cornos bifurcados, com os hipopótamos de bocas enormes, com os crocodilos, as hienas, os leões e com outros animais ferozes que, de noite, se acercam das nossas cabanas. Em todo o caso, encontro-me muito satisfeito, porque, ainda que não veja como será possível converter estas pessoas e desconfie por completo dos meios humanos, tenho confiança num acto prodigioso da graça de Deus.


[314]
A nossa vida, a vida do missionário, é uma mistura de dor e gozo, de preocupações e esperanças, de sofrimentos e consolações. Trabalha-se com as mãos e com a cabeça, viaja-se a pé e em piroga, estuda-se, sua-se, sofre-se, goza-se: é isto o que de nós quer a Providência.


[315]
Ontem, recebemos a visita do chefe dos Abukuk, a quem queremos comprar uma barca; tendo-lhe nós falado de Deus e do Céu, perguntou se nesse Céu havia vacas e brincos de cobre. Ele tem 10 mulheres, cerca de mil vacas e três caixotes de missangas; no entanto, pediu-nos de comer, pois tinha fome; e veio mais vezes pedir-nos esmola. Aqui há uma só estação. O tempo mais quente é de Novembro a Abril, altura em que temos o Sol na vertical sobre a cabeça; e de Abril a Novembro faz menos calor devido às chuvas. Mas basta; lê devagar o pequeno relato da viagem enviado a meu pai.


[316]
Espero que estejais de boa saúde e que as convulsões dêem poucas vezes à minha boa prima Hermínia. Muitos cumprimentos para ela. Recomendo-te de todo o coração o meu querido Eugénio. Quando o orientares, aconselhares, cuidares dele (e sei com muito gosto que o farás com solicitude), pensa mais na religião que no interesse e nas vãs ideias de grandeza do mundo. Se conseguir sair-se bem em Innsbruck, isto é, se não se deixar contaminar no convívio com maus companheiros (o que me causa grande preocupação, devido à corrupção da juventude moderna), verás a satisfação que te dará o bom Eugénio.


[317]
Recomendo-te também Hermínio: procura mantê-lo distante de certas companhias pouco recomendáveis e grosseiras. E como, por natureza, é um pouco orgulhoso, convirá sobremaneira mantê-lo à rédea curta e em vigilância, procurando, isso sim, fazer-lhe compreender que tendes esperança de que se emendará; doutro modo desanimará e deixar-se-á levar pelo seu mau feitio.


[318]
Recomendo-te, além disso, o pequeno Henrique. Embora menos astuto e perspicaz, seguirá o caminho de Eugénio: cultiva nele a ideia da religião. Procura igualmente que os filhos de César sejam educados. Deus pôs-te em condição de o fazeres: aproveita. Certas ideias grosseiras adquiridas pelo contínuo contacto com más-criações crónicas, não me agradam; entendes-me... A educação é o mais precioso património do homem e da mulher e é mais estimável diante de Deus e dos homens do que muitos recursos patrimoniais; agora implica gastos, mas amanhã, ao fim e ao cabo, também faz crescer a bolsa.


[319]
Despedindo-me de ti, querido Eustáquio, peço-te que me escrevas. As tuas cartas consolam-me muito e são-me muito agradáveis. Oh, como são tão afectuosas as palavras das pessoas queridas e distantes. Que me escrevam também teus filhos. Dá-me notícias deles, de meus pais, de [...] de Pedro, de César, de todos. Apresenta os meus respeitosos cumprimentos ao patriarca Beppo e à tagarela da sua esposa, a Sra. Júlia.


[320]
Diz-lhe que gostaria de saber fazer o pão como ela, porque assim não teria de comer tanto sorgo, que se parece com massa consistente. Mas bendito seja Deus. Os meus cumprimentos também aos Srs. Santiago e Teresa Ferrari; e, naturalmente, a todos os nossos de Riva com os respectivos criados. Enquanto, com todo o coração e dando-te um carinhoso abraço, me declaro



Teu af.mo primo

Daniel Comboni




[321]
Lembranças ao tio, dizendo-lhe que os nossos acordos devem ser firmes. Manda também as minhas especiais saudações a P.e Giordani e P.e João Bertanza.






34
P.e Pedro Grana
0
Territorio Kich
9. 3.1858

N.o 34 (32) - A P.e PEDRO GRANA

ACR, A, c. 15/39

Da tribo dos Kich, a 7o lat. N.

9 de Março de 1858

Querido P.e Pedro,


 

[322]
A sua estimadíssima de 21-11-57, que me chegou há poucos dias de Cartum, proporcionou-me simultaneamente dor e prazer. A dor proveio do facto de pensar que a minha pobre terra natal, com a sua saída, fica privada do mais sábio dos seus pastores – o que é um mal e presságio de quem sabe quantas desventuras! O prazer, que foi grande, senti-o ao saber que o senhor foi, finalmente, eleito para o importante cargo de arcipreste de Toscolano; e quanto a isto, não sei se terão sentido mais júbilo em seu coração os afortunados toscolanenses ou este seu amigo distante, no momento em que o portador núbio lhe entregou a carta que trazia a feliz notícia.


[323]
Não, não, meu querido P.e Pedro; não era por o senhor ser pároco de Limone ou o consolo de meus isolados pais ou por outro motivo secundário que eu, unanimemente consigo, resolvia manter estreita relação, apesar da grande distância que nos separava.


[324]
Era o afecto; era a feliz circunstância de dois corações que se uniam como se de um só se tratasse; era, pois, a mais estreita amizade o que nos movia a mantermo-nos unidos, mesmo de longe, mediante leal e recíproca correspondência. Portanto, embora não esteja em Limone, embora agora seja arcipreste de Toscolano, não está em causa a ruptura da nossa relação epistolar; eu continuarei com ela, não a fazendo depender do êxito da nossa grande missão. P.e Pedro, continue, pois, a consolar a minha solidão com longas cartas, em que me informe de si e das suas coisas, da sua família, de Toscolano, etc., porque serão para mim notícias agradabilíssimas.


[325]
Saberá, como lhe escrevi de Cartum, que P.e João, P.e Francisco, D. Ângelo e eu partimos dessa cidade a 21 de Janeiro, depois de trocarmos abraços com o nosso irmão P.e Dalbosco, a quem deixámos como procurador e como elo de ligação entre nós e a Europa, se bem que em Alexandria disponhamos de outro procurador, este secular, na pessoa do conde Frisch de Viena, excelente italiano. Dobrada a ponta extrema de Ondurman, no 16o de latitude N., lugar onde se juntam os dois grandes rios Bahar el-Azrek e Bahar el-Abiad, formando o Nilo, o nosso barco entra majestoso no Bahar el-Abiad, que se abre diante de nós com toda a sua grandiosidade e beleza.


[326]
Este grande rio, embora menos profundo, é muito mais largo que o Nilo; e avançando embora contra a sua corrente, o barco em que viajamos corre por aquelas agitadas águas com a celeridade dos nossos vapores do Garda, graças a um vento favorável e forte. As tribos que encontrámos para lá de Cartum, que está situada num lugar fronteiriço, são os Hassanieh, os Lawin e os Bagara, que são nómadas por causa da sua principal actividade, a pastorícia, e, por isso, têm de se deslocar constantemente para os lugares onde a pastagem para o seu gado é mais abundante. Passadas estas tribos, encontram-se as dos Dincas na margem direita do rio, as dos Schelluk na esquerda. E é antes de chegarmos a estas duas tribos que gozamos do espectáculo de uma natureza entregue a si mesma, nunca travada nem adulterada pela mão do homem.


[327]
As margens do rio estão cobertas por uma vegetação exuberante e viçosa que durante um largo percurso parece um Éden encantado. Grupos de centenas de ilhéus revestidos de verde intenso, que salpicam o rio ao longo de quase duzentas milhas, oferecem o aspecto de aprazíveis jardins. Bosques virgens e florestas impenetráveis de gigantescas mimosas, de verdes nábac, de espinhosas acácias, de papiros, tamarindos e outras árvores frondosíssimas de todo o tamanho, estendem-se consideravelmente terra adentro, tanto a oriente como a ocidente e oferecem o mais seguro refúgio a milhares de antílopes, gazelas, girafas, leões e outros animais selvagens que se passeiam e vagueiam sem temor por aquelas paragens virgens, nunca tocadas pela mão do homem.

Imensos bandos de aves de todas as espécies, tamanhos e cores esvoaçam livremente por aquelas ramagens, enchendo o ambiente de desgarrados mas agradáveis cantos: os íbis, as águias reais, os patos selvagens, os airós, os abusin, os abumarkub, os papagaios de plumas de ouro, os pelicanos, etc., etc. andam e voam pelas margens em imensos bandos e, de longe, confundem-se facilmente com os macacos, que vão saltando pelas árvores, vêm beber ao rio e fazem caretas à nossa passagem. Em suma, parece ver-se uma floresta ambulante.


[328]
A este espectáculo acrescenta-se depois o fragoroso mugir de centenas de milhares de hipopótamos que, soprando, levantam da água a sua cabeça monstruosa e que com seu lombo sacodem a embarcação, enquanto nas ilhas se vêem a descansar grupos de crocodilos que, à nossa passagem, arrastando-se uns atrás dos outros, se refugiam na água. O hipopótamo é quase quatro vezes maior que o boi e a sua boca pode engolir um homem inteiro, como nos disseram que já aconteceu mais que uma vez. Nós vemo-los amiúde com a enorme boca aberta e é um espectáculo. O maior crocodilo que encontrámos media, pelos nossos cálculos, vinte pés; mas há-os até de trinta pés. Os hipopótamos nadam agrupados às centenas, aos milhares e à nossa passagem mergulham nas ondas.


[329]
No território dos Nuer, a nossa embarcação avançou durante quatro milhas, de velas enfunadas, sempre sobre lombos de hipopótamos. As primeiras vezes mete medo, mas, depois, uma pessoa habitua-se, ainda que o cozinheiro do nosso barco tenha sido atirado ao rio por um hipopótamo e devorado. Passados os 10o de latitude, a natureza mostra-se mais pálida, diminui a vegetação, as margens ficam cobertas de juncos e assim se continua até aos 7 graus. Não falo de muitas peripécias desta viagem, das manadas de elefantes, de búfalos selvagens, de antílopes, etc. que víamos do barco. Também não falo dos territórios dos Dincas, dos Nuer, dos Yangueh, etc. que percorremos, nem das inúmeras impressões que nos deixaram estas imensas paragens, porque seria demasiado prolixo como fui numa longuíssima carta escrita a meu pai sobre esta viagem. Contudo, mesmo assim, de passagem, vou narrar-lhe uma aventura que tivemos com a tribo dos Schelluk.


[330]
No dia 30 de Janeiro, o nosso barco vai parar a um banco de areia em Mocada el-Kelb. No Nilo e no Nilo Branco encalhámos mais de mil vezes, por o rio em muitos locais ser pouco fundo; mas aqui o vento empurrou o barco com tanta força que nem os braços dos nossos 15 valentes marinheiros foi capaz de o libertar. Normalmente, quando a embarcação encalha, os marinheiros descem à água e, com os ombros, ajudam o ímpeto do vento e põe-na a flutuar. Na noite de 29, depois de repetidos esforços, o nosso capitão diz-nos que não consegue libertar o barco. E encontramo-nos num sítio em que temos os Dincas à direita e os Schelluk à esquerda, que vivem de assaltos, tendo que dar ao rei a terça parte do produto roubado. Na praia vemos uma fila de dez barcas de Schelluk, todos armados de lança, arco, flechas, varapaus e escudos.


[331]
Em Cartum tinham-nos feito horríveis descrições dos Schelluk e o capitão confirmava tudo. Ao anoitecer pomo-nos a deliberar sobre o modo de sair daquele pântano, mas não surge nenhuma ideia que nos satisfaça. Finalmente decide-se chamar os Schelluk para ajudarem os marinheiros, prometendo-se-lhes missangas, pequenas pérolas e prendas. Nós, entretanto, a custo conseguimos impedir que os marinheiros peguem em armas.


[332]
O missionário deve preferir morrer que iniciar a pregação do Evangelho matando o inimigo para se defender. Por outro lado, que podiam fazer 11 fuzis que nós trazemos para nos defendermos das feras? À noite decidimos chamar em ajuda os Schelluk; e se eles aparecessem com ar hostil, entregar-lhe-íamos o barco com todo o conteúdo; e se não nos matassem, tentaríamos implantar a cruz naquela tribo, onde nunca brilhou a luz evangélica.


[333]
De manhã, à força de gritos, de levantar a bandeira da nossa missão, etc., demos a entender àqueles homens da margem que viessem até junto de nós. De repente aproxima-se uma canoa com 12 indígenas, de gigantesca estatura, armados como atrás ficou descrito; tendo-lhes feito compreender que queríamos que ajudassem os marinheiros a tirar o barco, respondem que dois de nós deviam subir como reféns para a sua piroga e acompanhá-los à margem, onde tratariam com o seu chefe o preço em missangas que nós pagaríamos pelos seus serviços. Enquanto o capitão se negou a isso, nós os quatro estávamos na disposição de ir como reféns. Foi difícil entender-nos mutuamente, pois cada qual queria ser escolhido como refém.


[334]
Enquanto nós assim falamos, os homens começam a ajudar os marinheiros. Mas depois de muitos esforços, vendo que o barco não se move de modo nenhum, tentamos fazer-lhes entender que devem chamar outros dos seus irmãos para que venham em nossa ajuda. (Talvez os Schelluk pensassem que, uma vez tirado o barco do banco de areia, iriam levá-lo consigo.) Em menos de meia hora eis que aparecem outras três barcas armadas; e todos, em número de 50, se põem a empurrar o barco. Logo que começou a mover-se, todos param e pedem missangas. Nós mostramos-lhas, mas eles, desconfiados, querem que lhas dêmos de imediato; apenas lhas entregamos, num instante afastam-se do nosso barco e fogem.

Este episódio sucedeu no dia 30. Às últimas horas da tarde, chamamos uma e outra vez pedindo ajuda, mas ninguém acorre. Que fazer no meio do rio entre duas poderosas tribos? O nosso problema era sério. Porém, no barco (que é propriedade da missão de Cartum) há uma belíssima capela, adornada com uma imagem de Maria. Poderia a nossa boa Mãe deixar desamparados a quatro filhos seus, que procuram dá-la também a conhecer juntamente com seu Filho a estes pobres povos? Não; a boa Mãe vinha em nossa ajuda sugerindo-nos um modo de sair daquela situação.


[335]
Na manhã do dia 31, com os 15 remos da embarcação improvisámos uma jangada e sobre ela colocámos mais de 30 caixotes, a fim de aligeirar o barco. Depois, à força de empurrões dados por aqueles incansáveis marinheiros núbios, foi finalmente arrastada para um lugar onde a água era profunda. Carregado de novo o barco, com grande esforço, o que nos levou dez horas, partimos, dando graças ao Senhor e a Maria, e deixando desiludidos os Schelluk, entre os quais notávamos um vaivém que nos agradava pouco. Bendito seja o Senhor que nos assistiu maravilhosamente em todas as nossas viagens.


[336]
Desde Cartum até ao território dos Kich, todos os homens e mulheres andam completamente nus, à excepção das casadas – ou melhor grávidas – que cingem os flancos com uma pele de cabra ou de tigre. Dormem estendidos na cinza, besuntam todo o corpo com cinza e andam sempre armados de lança, arco, flechas, escudo, etc., etc. Nós averiguámos através das nossas explorações que a língua mais difundida nas regiões incógnitas da África Central é a dos Dincas, a qual é falada não só por essa tribo mas por mais umas dez ou doze; por isso ficamos aqui entre os Kich, para estudar esta língua e ao mesmo tempo fazer explorações até ao equador. Depois, na tribo que julgarmos mais conveniente, começaremos a pregação do Evangelho, segundo o grande plano do nosso superior, P.e Mazza.


[337]
Eu comecei também a exercer a medicina e agora tenho como clientes todos os doentes que há por estas redondezas. Quando estão curados, vêm ver-me e cospem para cima de mim, mas sobretudo tomam-me as mãos e cospem-me nelas, em sinal do mais profundo agradecimento. Da língua dos Dincas balbucio 522 palavras, bom, 523, porque neste momento acabo de aprender que a-gnáo significa gato. É um trabalho indizível aprender uma língua tomando cada palavra dos lábios dos indígenas. Mas basta, meu P.e Pedro. Por esta folhinha, não pode fazer a menor ideia do que foi objecto das nossas observações; mas escrever-lhe-ei... Os meus companheiros saúdam-no cordialmente, congratulando-se por a Providência o ter chamado a cuidar de tão considerável grei.


[338]
Compraz-me também comunicar-lhe que, apesar dos incómodos de uma comprida peregrinação e do abrasador sol africano, gozamos de uma saúde maravilhosa. De 22 missionários da missão de Cartum, que tem dez anos de existência, morreram 16 e quase todos nos primeiros meses. Nós estamos a todo o momento preparados para a morte; mas, à parte o clima, muitas das mortes devem-se à falta de médicos e de medicamentos. Mas glória ao Senhor. Saúdo-o do coração; com a primeira expedição chegar-lhe-á algum objecto do Centro da África. Os meus cumprimentos à sua mãe, à bondosa Elisa, a toda a sua família, aos seus sacerdotes, a cujas orações me encomendo, a Júlia Pomaroli, e ao Engenheiro Mastela e esposa, quando escrever para Modena. E creia-me de coração



Seu af.mo Daniel Comboni




[339]
N.B. Na próxima semana tentaremos uma exploração entre a aguerrida tribo dos Tuit, que se acha no 6o de lat. Mandámos vir aqui, à tribo dos Kich, o chefe dessa outra tribo; e depois de lhe oferecer um embrulho de missangas, cruzinhas, etc., disse-nos que fôssemos à sua tribo quando quiséssemos, que ele se encarregaria de preparar os seus súbditos, mas fez-nos uma advertência: que não entrássemos nas suas cabanas, porque havia lá um espírito que devorava os homens. Nós assegurámos-lhe que o espantaríamos. “Não – respondeu –; ele devora tudo!”

Veremos. Agora que começamos a balbuciar esta língua, já podemos meter-nos no meio destes indígenas armados e falar-lhe de Deus. Bastantes vêm já à missa pela manhã, outros vêm para ser instruídos e muitos estão a adquirir o costume de se benzerem. O exercício da caridade, especialmente a assistência aos doentes, contribui muito para fazer crescer a estima por nós.


[340]
Aqui, tanto os vivos como os moribundos, jazem no chão cobertos de cinza: este é o seu único remédio. É deplorável toda a espécie de miséria que reina entre todas as tribos de África Central. Ah, se tantos bons sacerdotes da diocese de Bréscia, que agora estão apáticos e ociosos entre as paredes da sua casa, vissem tantos milhões de almas que se encontram nas trevas e sombras da morte! Se num voo se transportassem para estas regiões incógnitas, estou certo que se converteriam em outros tantos apóstolos da África! No entanto espero que a Providência de Deus há-de mover também o generoso coração dos sacerdotes brescianos; o pensamento de que são tão ardentes e magnânimos para com a pátria leva-me à persuasão de que o serão ainda mais pela causa de Deus, pelo incremento do seu Reino; mas para isso era preciso uma faísca...


[341]
Oh! Espero que o exemplo dos missionários do Instituto Mazza de Verona e o do seminário de S. Calocero de Milão incite os fervorosos e magnânimos corações dos meus irmãos e conterrâneos de Bréscia a entregarem-se a grandes empresas para a difusão do Reino de Deus. Rogo-lhe apresente o meu humilde respeito a sua Ex.a o senhor bispo de Bréscia. Enfim, meu caro P.e Pedro, escreva-me. Quando se está longe sabem melhor as palavras das pessoas queridas. E caras me serão as notícias da sua actual situação, do importante cargo a que foi chamado, etc., etc. e de tudo. Adeus!






35
Dr. Benito Patuzzi
0
Territorio Kich
15. 3.1858

N.o 35 (33) - AO DR. BENTO PATUZZI

ACR, A, c. 15/88

Tribo dos Kich

África Central, ao 7o lat. N.

15 de Março de 1858

Dilecto compadre e amigo,


 

[342]
Que grande descoberta fez neste dia o seu amigo distante! Hoje apercebi-me quão depressa passa o tempo... E sabe porquê? Porque hoje descobri que me estou a tornar rapidamente velho. Ah, meu amigo, hoje faço 27 anos e parece-me que ainda ontem era um jovem! Parece-me que ainda ontem, menino, aprendia no regaço de minha mãe a fazer o sinal da cruz ou quando pelo famoso tesólico vale, onde respirei os primeiros hálitos da vida, ia sozinho e me apresentava na sua excelente e patriarcal família para aprender os rudimentos da leitura italiana por obra do celebérrimo gramático P.e Pedro, seu querido tio, que, com uma paciência de Job e uma constância de alemão e amiúde com uma não muito agradável reguada, pelo considerável importância de 75 cêntimos por mês, se ocupava energicamente da minha instrução.


[343]
Ó inocentes e doces recordações dos tempos que já lá vão! Mas também o senhor, meu caro Bento, avança a passos largos para a idade da velhice dos seus veneráveis antepassados. E portanto como nós vamos envelhecendo tão rapidamente, quero que dediquemos este dia a recordar as vicissitudes da nossa juventude, o mesmo que agora fariam dois gloriosos veteranos de Napoleão que, encontrando-se juntos, passariam muitas horas a recordar as fadigas, as viagens, as batalhas e os triunfos passados; só que desta vez farei eu de protagonista. Efectivamente, começarei a entretê-lo, contando-lhe as minhas aventuras e o senhor, quando as tiver ouvido, fará o mesmo com as suas. Mas não vou abordar todas as circunstâncias das minhas peripécias passadas; far-lhe-ei apenas um pequeno resumo da minha viagem por Bahar el-Abiad, esperando que lhe agrade ouvir as coisas que aconteceram a um sincero amigo seu que, naqueles jocosos momentos, pensava também em si e, às vezes, até lhe parecia que era por si acompanhado, partilhando mutuamente as múltiplas e variadas impressões recebidas.


[344]
Porém, antes de abordar a breve exposição da minha viagem através do Bahar el-Abiad, tenho de explicar que o Nilo, pelo qual naveguei do Cairo a Korosko e de Berber a Cartum, é formado por dois grandes rios conhecidos pelos árabes com os nomes de Bahar el-Azrek, o Nilo Azul, e Bahar el-Abiad, o Nilo Branco, assim chamado precisamente pela cor das suas águas, os quais se juntam em Ondurman, perto de Cartum, formando assim o Nilo propriamente dito que, depois de um curso de bastantes milhares de milhas através da Núbia e do Egipto, desagua, por diversos braços, no Mediterrâneo.


[345]
As nascentes do Nilo Azul conhecem-se desde a Antiguidade e ficam nas montanhas da Abissínia, não muito longe do lago Dembea, as quais sempre foram erroneamente consideradas como as nascentes do verdadeiro Nilo. Por este rio viajou em 1875 o nosso P.e João Beltrame até ao 16o de lat. N., com o objectivo de procurar um lugar apto para uma missão, segundo o grande plano do nosso superior P.e Nicolau Mazza. Mas tendo-se considerado, por muito válidas razões, impróprio qualquer ponto ao longo do Nilo Azul, o superior decidiu que, mediante a nossa expedição, se tentasse a realização do seu plano no Nilo Branco.


[346]
Antes devo esclarecer também que este rio, muito mais largo, caudaloso e comprido que o Azul, foi anteriormente percorrido por outros e especialmente pelo missionário P.e Ângelo Vinco, do nosso Instituto. Por isso as suas margens são até certo ponto conhecidas; porém, nunca ninguém se aventurou muito terra adentro, onde, em contrapartida, se estendem as suas grandes tribos. De maneira que, embora se saiba o nome destas, porque um dos seus confins chega até ao rio, pode dizer-se que as tribos do misterioso Nilo Branco são desconhecidas, porque não se sabe nada ao certo sobre os seus costumes, população, governo, religião e coisas do género.


[347]
Estando assim as coisas, a nossa intenção é realizar o plano do nosso superior numa das tribos da África Central que se considere mais adequada, começando pelas margens do Nilo Branco. Nesta obra ser-nos-ão muito úteis os dois Institutos de negros e negras que o grande homem de Deus vai formando em Verona, como importante viveiro para a implantação das missões na África Central.


[348]
Com esse fim, ao amanhecer do dia 21 de Janeiro, depois de abraçarmos o nosso caro companheiro P.e Alexandre Dalbosco, que ficou em Cartum na qualidade de nosso procurador e elo de ligação entre a Europa e as tribos onde nós contávamos estabelecer-nos, saímos desta cidade nós os quatro, ou seja, P.e João Beltrame (o chefe da missão), P.e Francisco Oliboni, P.e Ângelo Melotto e eu, acompanhados por P.e Mateus Kichner, missionário da estação de Cartum, a quem o vigário apostólico, que recentemente se deslocara à Europa, tinha encarregado de ir visitar em seu lugar as estações de St.a Cruz e Gondokoro.


[349]
O barco que nos devia transportar nesta perigosa viagem era o Stella Mattutina, propriedade da missão de Cartum e um dos maiores e, sem dúvida, o mais elegante de quantos até então haviam sulcado as caudalosas águas do Nilo Branco. Levava uma população de 14 valentes marinheiros, à frente dos quais estava um muito experimentado rais (capitão), que já tinha feito outra vez esta mesma viagem; e nós experimentáramos anteriormente, de forma directa, até que ponto este capitão era perito e hábil na arte de navegar por este grande rio. Depois de uma não leve luta com o vento do Norte e de ter passado o Nilo Azul até à ponta extrema de Ondurman, onde se juntam os dois grandes rios (embora cada um conserve por cerca de quatro milhas as cores que lhe são próprias), abriu-se diante de nós o Nilo Branco, mostrando-se em toda a sua esplêndida grandiosidade e beleza.


[350]
Um vento muito forte leva-nos rapidamente por essas águas agitadas e revoltas, as quais, apesar de a corrente nos ser contrária, parecem retirar-se humilhadas à passagem do Stella Mattutina, que avança majestoso quase com a velocidade dos nossos vapores do lago de Garda. As suas margens distantes estão pitorescamente cobertas de um variada vegetação, onde pastam rebanhos de bois e cabras; e mais para o interior elevam-se ao céu os ramos de gigantescas mimosas, sobre as quais esvoaçam livremente numerosos bandos de belíssimas aves.


[351]
A primeira tribo que fica além de Cartum é a dos Hassanieh, que se estende por ambas as margens do rio. Os seus habitantes dedicam-se à pastorícia, que é a sua principal fonte de alimentação. Estes nómadas andam sempre armados de lança e como os núbios, que habitam neste e no outro lado do deserto, trazem sempre atado ao braço nu, junto ao cotovelo uma afiada faca que utilizam sempre que precisam. E foi precisamente no território desta tribo, em Uaschellai, onde no segundo dia nos detivemos para adquirirmos um boi, porque o nosso rais nos avisou que durante muitos dias não encontraríamos onde conseguir comida para nós e para a nossa tripulação. Não lhe posso contar nada desta tribo, a não ser que é nómada, de modo que a maior parte dos seus membro – embora haja uma ou outra aldeola – vão de um lugar para outro, conforme encontram melhores e mais abundantes pastagens para o gado.


[352]
Para lá do 14o de lat., encontram-se outras pequenas tribos: a dos Schamkab, à esquerda do rio, e a dos Lawins, à direita. Passadas estas, começa, em direcção ao sul, a grande tribo dos Bagara que, à esquerda, se estende entre os 12o e 14o de lat. N. e, à direita, entre os 13o e 12o; no espaço intermédio, entre os 12o e 13o, fica a tribo nómada dos Abu-Rof, da qual apenas posso dizer que existe. Precisamente aqui, ao longo das margens habitadas pelos Bagara e em parte pelos Schelluk, a paisagem torna-se mais interessante e maravilhosa; as aldeias e as cabanas começam a desaparecer: tudo é silêncio. A nossa dahhabia (o Stella Mattutina) é a única embarcação que navega por estas águas tranquilas e nós, da ponte do barco, observamos com o maior assombro o espectáculo duma natureza virgem e nunca contaminada, que sorri nesta parte encantadora do rio.


[353]
Durante um longo trajecto, as suas margens estão revestidas de uma imponente e exuberante vegetação nunca obstruída nem alterada pela mão do homem. Densos e imensos bosques impenetráveis e até agora inexplorados, formados por gigantescas mimosas e verdejantes nabak, avançam por longos espaços, formando uma interminável e variegada selva encantada, que oferece o mais seguro refúgio a grandes manadas de gazelas e antílopes e a alguns animais ferozes, que nós vemos vaguear livremente, sem temor de ciladas inimigas. Estes bosques das margens, por vezes, aparecem graciosamente adornados de verbenácias e de certa erva espessa e trepadeira, as quais formam como que pequenas cabanas naturais, debaixo das quais se estaria resguardado da mais intensa chuva. Centenas de ameníssimas ilhas, qual delas mais esplêndida, sucedem-se umas às outras, encantadoramente esmaltadas de verde, oferecem de longe o aspecto de ubérrimos jardins. Dá sombra a estas pequenas e preciosas ilhas um série de acácias e mimosas que, por vezes, apenas deixam penetrar algum raio do ardente sol africano e formam ao longo de quase duzentas milhas um arquipélago de maravilhosa fertilidade e beleza.


[354]
Bandos infinitos de aves de toda a espécie, tamanho e colorido (íbis de plumagem branca e negra e bico longo e curvo, pelicanos de branco e majestoso pescoço, papagaios de penas douradas, águias reais, patos selvagens, abusin, grous reais, marabus, etc. esvoaçam sem temor por cima e por baixo dos ramos, ao longo das margens ou entre a erva espessa, olhando amiúde para o céu como a bendizerem ao Deus dos rios e dos bosques que os criou.

Macacos de toda a espécie brincam entre o arvoredo, trepam pelos troncos, assomam com a cabeça entre a folhagem, correm ao rio beber, lançam gritos, avançam, param... Grandes crocodilos, tranquilamente estendidos nas margens ou na areia nua de alguma pequena ilha, procuram, à nossa passagem, alcançar o rio para se esconderem, arrastando-se com muita dificuldade. Imensos hipopótamos, que, às centenas, resfolegando, mostram a sua enorme cabeça e lançam fragorosos mugidos, às vezes, chocam com os pesados dorsos contra o barco e, ruidosamente, voltam a mergulhar.


[355]
Em suma, meu caro, eu não seria capaz de dar-vos nem uma pálida ideia daquele maravilhoso espectáculo de que fomos testemunhas durante alguns dias entre as tribos dos Bagara e dos Schelluk. A nossa dahhabia, entretanto, avança rapidamente sobre as brancas águas sulcadas umas vezes por algumas pirogas de africanos armados de lança, que, à nossa passagem, se dão a precipitada fuga ou se escondem entre a densa folhagem das árvores que se espraiam muito além de margem, ou descendo a terra desaparecem na selva; outras vezes por alguma pequena barca dos Bagara que, furtivamente, nos observam ocultos entre as canas de lança na mão; e outras com algum schelluk, que, depois de nos saudarem com a palavra de ordem gabarah, foge rapidamente e enfia-se na selva. Foi uma cena bastante curiosa ver numa ilha uma manada de bois que, assustados à passagem do nosso barco, correram a lançar-se no canal para passar à margem; em vão os guardiães tentaram impedi-los com as lanças; eles mesmos, montando nos lombos dos bovinos, atravessaram precipitadamente o rio.


[356]
Mas eis que aqui o nosso Stella Mattutina choca com um escolho; e depois, logo que reparada, chegamos à passagem de Abuzeit, onde, pelo facto de o rio ser muito largo e pouco profundo, encalha ligeiramente e os marinheiros se vêem obrigados a saltar ao rio e mover o barco à força de empurrões. É incrível o esforço e suor que custa a esses infatigáveis núbios arrancar a embarcação de um banco de areia, sobretudo quando este se estende por várias milhas.

Graças a um vento forte, seguimos viagem já com as velas enfunadas, mas com muita lentidão devido aos bancos arenosos, chocando às vezes com alguma rocha escondida no rio. E deixados para trás os confins da vasta tribo dos Bagara, encontramo-nos rodeados pelos territórios de outras grandes tribos: os Dincas, à direita do rio, os Schelluk à esquerda.


[357]
Os Bagara, que na nossa língua se chamariam Vaqueiros, e que recebem esse nome pela especial predilecção destes povos pela criação de vacas, as quais lhes fazem o mesmo serviço que a nós os animais de carga e de tiro, estão frequentemente em guerra com a poderosa tribo dos seus vizinhos Schelluk. Estes, não tendo bastantes vacas para os dotes de casamento ou para manter as suas famílias, juntam-se em grandes grupos e, a bordo das suas velozes pirogas, escondem-se sob os grandes ramos que desde as contíguas ilhas se estendem sobre a água; aí ficam à espreita até que os Bagara levam o seu gado a beber ao rio e então lançam-se sobre este, apanham-no e afastam-se antes que os infelizes guardiães possam pedir socorro aos seus acampamentos vizinhos.


[358]
Depois os Bagara, às vezes, vingam-se dos Schelluk fazendo-os escravos e vendendo-os nos mercados de Cordofão e de Cartum. Encontramo-nos, pois, ao lado da poderosa tribo dos Schelluk. Estes andam sempre armados de lança e de um grosso varapau de ébano. Fisicamente, são musculosos e de estatura alta, às vezes gigantesca. Muitos dedicam-se ao roubo, sendo forçados a dar um terço do furto ao rei, que vive escondido não muito longe de Danab, numa povoação feita à maneira de labirinto e nunca dorme duas noites consecutivas na mesma cabana.

Sobre a crueldade desta gente dizem-se e escrevem-se coisas terríveis. Mas nós, graças a Deus, não sofremos nenhum dano ao passarmos pelo seu território, apesar de nos terem podido destroçar.


[359]
Isso aconteceu especialmente um pouco mais para lá do vau de Mocada el-Kelbonde o nosso barco foi empurrado por um vento fortíssimo contra um banco lamacento e os tripulantes, apesar dos reiterados esforços, não conseguiram libertá-lo. Era a noite do dia 27 para 28 de Janeiro quando divisámos as fogueiras acesas na margem esquerda dos Schelluk, que estavam a descansar em companhia das suas mulheres e com as pirogas ancoradas na margem do rio. Na margem direita havia muitos Dincas que, ao verem o nosso barco e sobretudo os Schelluk, se retiraram terra adentro.


[360]
Na manhã do dia 28, os marinheiros atiram-se ao rio e tentam mover o barco, mas de nada valem os seus esforços. Decide-se então chamar em ajuda os vizinhos Schelluk. O rais põe-se a gritar para onde eles estão, mas ninguém se move. Repetem-se os gritos altos e sonoros; e eis que então se desloca da margem uma piroga com 12 indivíduos armados de lanças e varapaus e em menos de cinco minutos temo-los a bordo da nossa dahhabia.

À força de gritos, faz-se-lhe compreender que queremos que nos ajudem a tirar a embarcação. Eles respondem que, antes, querem voltar à margem para combinarem com o seu chefe quanto vão levar pelo serviço e para isso pedem que dois de nós os acompanhemos como reféns. Perante um repetido «não» do rais, por um punhado de missangas e pequenas pérolas de vidro, esses Schelluk começam a empurrar o barco; porém, por terem pouca destreza nessa operação, de nada valem os seus esforços.


[361]
Então o rais dá-lhes a entender que devem chamar outras barcas e outros irmãos em nossa ajuda e que receberão generosa recompensa. Em menos de um quarto de hora aparecem outras três barcas com homens armados, os quais se precipitam em massa e sem ordem a ajudar os tripulantes na árdua tarefa de desencalhar o barco; finalmente conseguem movê-lo. Porém, em vez de continuarem com os empurrões a obra começada, eles, homens desconfiados, param e pedem o preço em missangas. Nós mostramos-lhas, incitando-os a trabalhar, mas eles negam-se.

Finalmente entregamos-lhas. Mas eles, vendo as pequenas pérolas em seu poder, num instante afastam-se de nós e retiram-se para a margem, onde se reúnem todos para repartir avidamente a gratificação conseguida, deixando-nos a nós em maior apuro que antes. Os marinheiros tentam repetidamente mover a embarcação, mas nada. Assim passou todo aquele dia.


[362]
Já depois de anoitecer, realizamos entre nós uma espécie de conselho sobre o modo como libertar o barco, mas não chegamos a uma conclusão satisfatória. Para falar verdade, a nossa situação é muito crítica: encontramo-nos no meio de duas aguerridas tribos, uma delas mais rapace e temida que a outra. Parte da tribo dos Schelluk vive do assalto, com a obrigação de dar ao rei a terça parte dos despojos, como disse antes, e está sempre em guerra: dificilmente os Schelluk perderão esta oportunidade de melhorar a sua condição. A passagem do Stella Mattutina atrai sempre grande número de observadores, por ser o mais bonito jamais visto no Sudão. Acrescente a tudo isto as trágicas cenas que, sobre os Schelluk, nos tinham descrito em Cartum e diga-me que pensámos nós naquele aperto...


[363]
A ideia de ser feitos prisioneiros, de ser assaltados e conduzidos perante aquele soberbo rei que crê ser o maior monarca do mundo, depois do da Abissínia, longe de nos desmoralizar, fazia surgir-nos a ideia de podermos fundar uma missão entre os Schelluk. Nunca se pode ter medo quando vela por nós com piedoso afã Aquela que se denomina Rainha dos Apóstolos. E como estaria de braços cruzados a nossa Mãe e não havia de socorrer quatro filhos seus que procuram dá-la conhecer e amar por aquelas bárbaras gentes, entre as quais jamais brilhou a luz da verdade e nunca foi implantada a Cruz de seu divino Filho?


[364]
Na manhã seguinte, dirigimo-nos confiados a esta grande Mãe. Celebra-se a missa na belíssima capela que fica na proa do Stella Mattutina, consagrada precisamente a Maria. Depois pensa-se, decide-se. E eis o modo como se tenta tirar a embarcação do fundo lamacento: com os remos da mesma, muito grossos e em número de 16, com tábuas e outra madeira, constrói-se uma jangada; posta a flutuar na água, carregam-se nela as caixas de objectos que não se estragam ao molhar-se, até que o barco fique aligeirado, de modo a que as forças reunidas dos marinheiros consigam levantá-lo, movê-lo e retirá-lo inteiramente daquele banco. Depois, tendo-o virado e levado para um sítio onde o leito é bastante profundo, voltam a carregar-se com indizível esforço as coisas colocadas na jangada e às cinco da tarde, quarenta e três horas depois do perigoso encalhe, com o júbilo de quem obteve um triunfo, desfraldamos as velas perante uma multidão dos Dincas, que em fila junto à margem se mostram contentes do nosso sucesso.


[365]
Então os Schelluk fogem e não sabemos concretamente porquê. Uma hora depois de sair do vau de Mocada el-Kelb, encalhamos de novo; mas em seguida conseguimos sair com a ajuda de um fortíssimo vento. Mais de uma vez o Stella Mattutina choca com escolhos e retrocede; mais de uma vez também, estando sentados na borda ou sobre uma tábua, retrocedemos de repente e caímos, de modo que, por uns dias, fica-nos a marca num joelho, num braço ou num pé.


[366]
Continuamos a nossa viagem pelas margens dos Schelluk e, depois de deixar para trás uma ilha, vemos uma longa cadeia de povoações, umas a seguir às outras, por mais de quatro milhas e que distam mais de meia milha do rio. Todos estão bem construídas, com cabanas em forma de cilindro, de terra ou de canas, e o tecto, de palha, em forma de cone alongado. Todo aquele conjunto constituía uma vista belíssima; e aquela simplicidade de vida fazia-nos crer que os habitantes daquelas cabanas, que mantêm algum comércio com Senaar e com o Cordofão, deveriam ser felizes; mas não são, porque esses desditosos estão privados do conhecimento d’Aquele que é fonte da verdadeira felicidade.

Este enorme número de aldeias forma a grande cidade de Kako, em frente da qual parámos. A gente apercebe-se da nossa chegada e em menos de dez minutos temos diante de nós numerosos homens, mas sobretudo mulheres e raparigas que trazem consigo grandes recipientes de barro cozido e outros mais pequenos de barro seco ou de cabaça, esteiras de palha ou de junco, cestas, canastras, sorgo, lentilhas, sésamo, legumes, ovos, galinhas e outros produtos para vender. Deste modo, em pouco tempo, toda a praia estava cheia de gente e havia-se formado um considerável mercado.


[367]
O que, além disso, tornava atractiva aquela vista era a variedade daquela multidão, constituída por pessoas de muitas raças, que se distinguiam pelas diferentes cores de pele e pelas feições do rosto. Ali estava, com efeito, o negro dos Dincas e dos Schelluk, o mulato das gentes de Cordofão e dos Bagara, o cobre-avermelhado dos Abu-Gerid, o amarelado dos Hassanieh. Junte a tudo isto as diferentes maneiras de se adornar e pintar a pele, especialmente a cara e a cabeça; depois os gritos, o vozear ruidoso, o entrechocar de corpos, o vaivém contínuo e pode fazer uma ideia de como era o mercado de Kako.


[368]
Depois de os marinheiros e o nosso criado se ocuparem do abastecimento das coisas mais necessárias, abandonamos com ânimo preocupado aqueles infelizes, pensando no deplorável estado em que se encontram por estarem privados da luz da verdade. Havia já dias que cessara aquele encanto da natureza de que falei antes. A margem esquerda do rio começava a mostrar-se quase desértica e só de longe distinguíamos à esquerda as cada vez mais raras acácias, mimosas e tamarindos, a que se juntava alguma majestosa palmeira de doleb, que se elevava junto às povoações e algum gigantesco baobá, que estendia soberbo os seus ramos no meio de uma interminável planície.


[369]
Já se tornavam a ver na margem os Schelluk armados, que se cobrem de cinza ou pintam caprichosamente de cor avermelhada mais ou menos intensa a cara e todo o corpo, e besuntam o cabelo com cinza e lama, de modo que parecem espantosos fantasmas. No início de Fevereiro, avançando lentamente, porque um vento fortíssimo não permitia ter a vela desfraldada, vimos alinhar-se perante nós outra cadeia de talvez umas trinta aldeias, conhecida com o nome de Denab. Diz-se que uma delas, afastada três milhas do rio, é a residência do grande rei dos Schelluk, o qual vive escondido e nunca passa duas noites seguidas numa mesma habitação ou cabana, por medo de que súbditos rebeldes o matem.


[370]
Ele pensa ser o maior rei da terra, depois do da Abissínia, e não concede audiência a ninguém, a não ser a esse da Abissínia, o qual, por outro lado, não sabe que existe a tribo e menos ainda o rei dos Schelluk. Apenas as suas mulheres e algum ministro destinado a recolher os impostos são admitidos à sua presença, mas não podem apresentar-se diante dele sem se arrastarem de joelhos, rastejando de boca para baixo. Os Schelluk são altos de estatura; (1) fisicamente bem formados, robustos e belicosos. Andam armados de lança e escudo e dispostos a [Desde “Os Schelluk são altos...” até “a” as palavras aparecem um pouco rasuradas pelo próprio Comboni] travar combate e roubar.

Mas deixemos esta poderosa tribo. À direita, em frente da imensa margem dos Schelluk, habitam os Dincas, que, embora mais inteligentes, são em contrapartida mais fracos. Por isso mantêm-se o mais possível longe dos rapaces e assassinos Schelluk, que se entregam a toda a espécie de roubos, especialmente de mulheres e crianças, que depois vendem aos jilabas, os quais, por sua vez, fazem com eles comércio nas cidades da Núbia.


[371]
Os Dincas são uma grande tribo da África; distinguem-se facilmente dos das outras tribos pela fronte espaçosa e saliente, pelo crânio achatado e inclinado em direcção às têmporas, pelo corpo comprido e delgado. Das línguas faladas pelas tribos da África Central do Baharel-Abiad, a sua é a mais difundida e por isso na Europa foi esta a tribo que nós tomámos em consideração.


[372]
Mas agora queremos fazer primeiro cuidadosas explorações, e depois, a seu tempo, também nas áridas terras da tão desconhecida tribo dos Dincas brilhará a luz do Evangelho. Perto do [rio] Sobat, em Huae, detivemo-nos para comprar um touro e convidámos o chefe da aldeia a subir ao barco. Como vinha receoso e inseguro, fizemo-lo subir mostrando-lhe todos os sinais de amizade, com o que pareceu ficar confiante; já dentro dos nossos aposentos, olhava para todo o lado atónito, avançava em bicos de pés e com o braços levantados. Mostrámos-lhe a capela, elegantemente adornada e pareceu magnetizado; e, como deslumbrado, retrocedeu com as mãos na cara. Pusemo-lo diante de um espelho: são indescritíveis as caretas, as contorções, os gritos, os gestos e as risadas loucas a que se entregou ao ver a sua figura.


[373]
Partiu dali, claro, tão maravilhado pelas coisas vistas, que parecia que tinham vindo do Céu. Avançámos, velas desfraldadas, e ainda naquela noite passámos na foz do Sobat, considerável afluente do Nilo Branco e maior, sem dúvida, que o nosso Pó. A sua origem é desconhecida, sabendo-se unicamente que desce desde os cinco graus em direcção paralela oriental à do Nilo Branco, no qual lança todo o seu caudal. E é precisamente nesta foz onde o grande Bahar el-Abiad vira de maneira brusca completamente para ocidente pelo espaço de mais de 150 milhas, nos 9 graus e 15 minutos de latitude. E este trajecto é flanqueado à esquerda pelo território dos Yangueh e à direita pelo grande pântano dos Nuer, em cujos contornos nós percorremos mais de 350 milhas. Foi neste rápido trajecto que nós avistámos uma manada de enormes elefantes que, tendo vindo ao rio beber, se infiltrava de novo na floresta.


[374]
À nossa passagem, vemos fugir milhares de búfalos selvagens, do tamanho de um boi, que se assemelham a exércitos precipitados em fuga. Uma hora depois, um golpe de vento despedaça-nos a vela maior, pelo que nos vemos forçados a determo-nos junto a uma ilha de trezentos hipopótamos que nos ensurdecem e ameaçam com os seus furibundos e espantosos mugidos.


[375]
Tendo partido ao anoitecer, depois de os marinheiros repararem a vela, na manhã seguinte encontramo-nos diante da foz do caudaloso Ghazal, onde conflui com o Nilo Branco. No ângulo da sua confluência forma-se uma linda lagoa cujas margens, todas verdejantes de juncos e de bosques de papiro, realçam com sua beleza a plácida tranquilidade das suas águas. Referi-me ao papiro, que o senhor conhece bem, porque os antigos utilizavam a sua casca para escrever. Pois bem, o caule desta planta tem uma altura de cinco a sete pés e é de forma triangular, mais que redonda; na raiz tem uma grossura de três dedos e no cimo a de um; é encimado por um verde penacho, como verde é também o fuste; a ponta é semelhante à do nosso funcho. Vimos também, junto a ilhas inteiras, bosques destes papiros, que parecem gostar da proximidade da água e dos terrenos pantanosos.


[376]
O resto da viagem tornou-se um pouco aborrecida, especialmente pelo avanço lento, por causa das frequentes e grandíssimas curvas do rio que, deixando-nos contra o vento, obrigava os marinheiros a agarrar os cabos e a rebocar o barco. O aspecto das margens tornava-se cada vez mais triste e desolado; desapareciam os deliciosos bosquezinhos de ambalós e de papiros, sendo substituídos por enormes charnecas cobertas de canas secas e queimadas. Amiúde, até ao anoitecer, contemplávamos os famosos fogos nocturnos, porque os negros Nuer pegam fogo a vastíssimas planícies cobertas de juncos muito altos e densos, a fim de prepararem a terra para novos rebentos antes das chuvas.

O fumo denso e abundante, puxado pelo vento, cobria as plantas de toda a floresta e dava-lhe o aspecto duma longínqua cadeia de montanhas que coroavam o nebuloso horizonte. As chamas do incêndio provocado ora se elevavam majestosas ora se arrastavam e se empurravam como rápidas vagas à procura de nova mecha; e, pegando-se o fogo a outros bosques de juncos, elas voltavam a elevar-se, maiores e mais intensas, silvando, crepitando, estalando pavorosamente.


[377]
Nós passámos bastantes noites no meio deste maravilhoso espectáculo, do qual talvez apenas os heróis do maior dos guerreiros modernos puderam ter uma pálida ideia sob as muralhas de Moscovo incendiada. E parecia-me como se o Deus dos exércitos inclinasse os céus, descesse apoiado no denso nevoeiro, arremessando do Céu aos seus inimigos os raios da sua divina ira. A monotonia desta viagem depois do Ghazal era todavia interrompida, de quando em quando, por nuvens imensas de milhões de aves que, à sua passagem, obscureciam, e não por pouco tempo, a luz do Sol, como quando de repente em pleno meio-dia rebenta uma forte tempestade. Às vezes, enormes bandos de grous reais, pelicanos e íbis que, aos milhares, assomavam à margem, ensurdeciam-nos com o seu esvoaçar barulhento e o pouco agradável grasnido. E não quero silenciar que uma noite passámos durante três milhas junto de uma grande extensão de bosques de ambalós, repletos de íbis.


[378]
O que também nos maravilhou foi vermos uma grande manada de milhares de búfalos selvagens que, assustados à nossa passagem, corriam pela vastíssima planura, lançando nos ares a escura cinza das canas queimadas, escurecendo com ela o horizonte. Além disso, foi aqui, no 8o grau, onde vimos o maior número de hipopótamos: era um espectáculo ver centenas, milhares de hipopótamos muito corpulentos que sopravam e lançavam fragorosos e roucos mugidos, e que, tirando e metendo a sua enorme cabeça na água, produziam nesta gorgolejos e remoinhos como quando no mar se avizinha uma forte tempestade. Às vezes acercavam-se do barco, como em atitude de ameaça, e outras deixavam que lhes passasse por cima, dando-lhe golpes e fazendo-o oscilar com os seus férreos dorsos.

O hipopótamo é um animal disforme e desmesurado: o seu tamanho é quatro vezes o do nosso boi. Tem a cabeça, em proporção, semelhante à do touro, os dentes duríssimos e enormes, sobretudo os incisivos, que são algo desproporcionados e muito brancos. O resto do corpo é parecido na sua forma ao do porco; porém, exceptuando a cauda, não cerdoso mas liso. A sua pele tem uma grossura de dois ou três dedos e, portanto, à excepção de uma pequena parte da garganta, é impenetrável às lanças, aos arpões e às balas de fuzil. O seu sopro lembra a descarga de muitos arcabuzes ouvidos de longe; o mugido é tão sonoro que faz ribombar as margens e ouve-se de muito longe; o movimento do seu pescoço e cabeça ao aparecer fora da água é semelhante ao arranque de um veloz corcel para a corrida; talvez isso tenha sido a razão para o chamar hipopótamo, quer dizer, cavalo do rio.


[379]
Depois vi alguns que os negros tinham caçado. Além do uso de arpões para caçar estes enormes habitantes do Nilo Branco, os indígenas escavam profundas covas, que cobrem de ervas; depois, esperam que à noite o hipopótamo saia do rio para se alimentar de erva; este, acreditando ter encontrado comida suficiente onde está a cova, acaba desgraçadamente por cair nela; depois, um bom número de negros com lanças e arpões trespassam a infeliz vítima.


[380]
A imensa tribo dos Nuer, que se estende desde a foz do Bahar el-Ghazal até ao 7o, além da ilha anteriormente citada, que fica à nossa esquerda, ocupa também um grande espaço de terreno a ocidente do rio. E foi precisamente nesta margem, em Fandah-Eliab, onde desfrutámos de um espectáculo mais estranho que o de Kako. Os Nuer cultivam sorgo e outras leguminosas em quantidade suficiente para as comercializarem com os seus vizinhos. Por isso, ainda que mais baixos que os Dincas e os Schelluk, alimentam-se melhor e fisicamente são mais bem constituídos; a sua vida, menos ociosa e folgazã, fá-los mais vivos e despertos.

A sua intensa actividade comercial proporciona-lhes meios para satisfazer o seu génio caprichoso de enfeitar o seu corpo de inúmeras e bizarras formas. Daí que, embora totalmente nus, tragam diversos adornos como colares e braceletes, argolas nos pés e pequenos anéis nas orelhas; outros, ao cobrirem todo o corpo de cinza, tingem de um modo estranho a cara e as têmporas; há quem ande de cabelo rapado, com uma tira ou faixa de conchinhas de mar à volta da cabeça: há quem recolha o cabelo no alto da testa e o pinte de vermelho, dispondo-o em forma de coroa realçada; há também quem cubra a cabeça com uma peruca de caulino ou com uma mistura de cabelos e cinza e desta peruca fazem sair, por trás, como que um corno dobrado para baixo, o que é verdadeiramente motivo de riso.


[381]
Entre as mulheres, contudo, abundam mais os adornos curiosos, e além de utilizarem os mesmos que os homens, menos a peruca, algumas trazem nas bordas da pele de cabra ou de tigre com que cingem os flancos correntes pequenas de ferro ou de cobre que sacodem ao caminhar, como os nossos arlequins do Carnaval. Outras enfeitam as orelhas com dezenas de anéis enfiados na carne; outras trazem grandíssimos aros arame que, desde as orelhas, lhes caem sobre os ombros; e algumas, perfurando o lábio superior, enfiam nele um arame, fazendo-o cair para a frente meio palmo ou mais e ornando-o com contas de vidro azul, de modo que, quando falam, este arame azulado sobe e desce com o movimento do lábio. Imaginem-se ainda outras extravagâncias ainda mais bizarras, pois já me dá enfado descrevê-las. As mulheres parecem almas do purgatório ou pior ainda.


[382]
Mas basta, pois seria cansativo de ler, como o é de escrever. Deixada para trás a tribo dos Nuer e entrados na dos Kich, detemo-nos no 7o de lat. N., donde lhe escrevo. Pelas observações que fizemos, concluímos que a língua mais difundida que se conhece é a dos Dincas, a qual é falada não só pelos Dincas, mas também por muitas tribos do Centro da África, como os Nuer, os Kich, os Tutuit, os Eliab, os Arol, os Yok, etc.; por isso, agora paramos aqui em St.a Cruz, onde há um missionário de Cartum. Com ele esforçar-nos-emos por aprender da boca dos indígenas a língua dos Dincas, enquanto iremos fazendo explorações; posteriormente, iremos às tribos que nos parecerem mais convenientes para plantar nelas a Cruz de Cristo.


[383]
Espero que o senhor se encontre de excelente saúde, como nós. Saúdo-o em nome de todos os meus companheiros e especialmente de P.e Oliboni. Com ele vou algumas vezes, pela tarde, ao bosque procurar líquenes para o digníssimo prof. Massalongo, ocupação que nos proporciona um pouco de descanso nas nossas fadigas diárias. Devo também dizer-lhe que não tem sido pequena a utilidade da preciosa recordação que me deixou, o tratado de medicina de Buchan, ao qual recorro amiúde; e não posso servir-me dele sem que me venha à mente a querida recordação do meu amigo Bento e da sua amável família.


[384]
Adeus, meu caro; tinha mil coisas para lhe dizer, mas o cansaço tirou-mas da mente. Além disso, é um pouco molesto escrever, porque aqui não temos mesas e cadeiras, nem os escritórios que o senhor tem; temos que nos deitar no chão ou ao pé de uma árvore ou, quando se pode e há luz, um caixote é o nosso mais cómodo escritório. Desculpe, portanto, as muitas incoerências que lhe tornarão difícil a leitura deste escrito.


[385]
Ponha os óculos e leia esta folha sem ter ao lado, como tónico estomacal, uma dessas garrafinhas que abriu o ano passado, depois da procissão do Carmine, para honrar a presença do excelente Prof. Massalongo e do amável P.e Bartolo. Basta; as minhas saudações a todos vós e saibam que nunca deixarei de ser



Vosso af.mo Daniel Comboni




[386]
N.B. Com esta carta não procurei fazer-lhe um relato extenso da minha viagem pelo Nilo Branco, nem explicar-lhe tudo o que foi objecto das nossas observações, o que se tornaria demasiado longo: só quis dar-lhe uma ideia. Da tribo onde estamos não lhe falo, reservando-me até ter suficientes conhecimentos directos; então dar-lhe-ei informação mais completa sobre estes costumes selvagens.

Por outro lado, até agora não lhe dei a conhecer o meu pensamento sobre a África Central, mas sim as minhas impressões de viajante. A partir de agora, ver-me-á como missionário e receberá notícias, espero, de missionário. Adeus, caríssimo amigo. Como médico, gostará de saber quais são as doenças dominantes nesta terra amaldiçoada pelo pai de Cam. De momento não exponho a minha opinião, porque até agora é contrária à dos viajantes.


[387]
Dizem estes que em África não há senão febres, disenterias e escorbuto. Coitados! Também na Europa não há senão febres: de facto, o tuberculoso morre de febre, quem tem uma pericardite morre de febre, quem tem uma hepatite morre de febre, porque a febre é inerente a estas doenças. Porém, quais são as causas que produzem essa febre? Pois a tuberculose, a hepatite, etc. Portanto, entende qual é o meu sentimento, mas, como disse, reservo-me até ter mais elementos para ajuizar; então darei a minha opinião, se Deus me der vida.

Apresente os meus respeitos ao P.e Battistino, ao P.e Bartolo, ao prof. Massalongo e a todos e considere-me



Seu af.mo Daniel Comboni

Missionário apostólico




[388]
Saúde atenciosamente, da minha parte, a sra. Marietta, a sra. Angelina e o sr. Horetzki.



(1) Repeti sem dar conta, porque esta parte escrevi-a hoje, 16/3...






36
Dr. Benito Patuzzi
0
Territorio Kich
27. 3.1858

N.o 36 (34) - AO DR. BENTO PATUZZI

ACR,A, c. 15/89

Da tribo dos Kich, 27 de Março de 1858

Caríssimo amigo,


 

[389]
Quando eu escrevia a carta aqui junta, todos nós gozávamos de perfeita saúde. Quem poderia imaginar que o mais forte de nós iria falecer daí a poucos dias, deixando-nos no meio da dor? P.e Francisco Oliboni, que há poucos dias me pedia para o saudar, foi afectado por uma fortíssima e velha úlcera gástrica complicada com uma moderada inflamação do peito. Tendo-se transformado estas duas doenças numa doença maligna, expirava nos braços de Deus completamente resignado e contente, ontem, pela tarde, às cinco. Nós sentimos o maior pesar por esta perda, porque era de grande ajuda para a nossa missão.


[390]
Mas bendito seja o Senhor. Nós, longe de perder o ânimo por isso, não nos pouparemos nem a fadigas nem a suores para cooperarmos na conversão da África e realizarmos o plano do nosso superior, que é a forma mais adequada para tirar das trevas e das sombras da morte esta gente, sobre cuja cabeça pesa ainda a maldição lançada pelo mais antigo dos Patriarcas aos filhos de Cam, ainda que haja que rever esta forma de actuar no lugar da sua aplicação.


[391]
Por outro lado, estou a imaginar o falatório que em Verona surgirá acerca da morte do nosso irmão P.e Francisco. «Era muito melhor dirão que continuasse a ser professor, ganhando 700 florins ao ano, do que ir para a África Central para lá deixar a vida». E quem sabe quantas coisas mais acrescentarão. Mas há que deixar que o mundo fale à sua vontade. Depois de as coisas terem acontecido, fala-se do que se devia ter feito primeiro. Sim, então é que se fala bem... Nós porém, raciocinamos de um modo completamente diferente.


[392]
Deus, que dirige o destino do homem, chamava-o a África e queria que aqui não fizesse nada pela missão. Ele pensava nisso há mais de dez anos, tinha pedido conselho, etc., etc. e foi-se deste mundo com o sorriso nos lábios e a alegria no coração, dando graças ao Céu que o tinha feito digno de morrer por Cristo. Bendito seja eternamente o Senhor.


[393]
Eu teria muito que contar, mas a morte de P.e Checco lançou sobre meus ombros um peso maior, que eu porém, carrego de bom grado, e o senhor saberá desculpar-me, considerando que, devido ao ânimo um pouco conturbado, as coisas se me esbatem na memória. Fui eu o primeiro a adoecer, no barco, quando íamos pelo território dos Schelluk: foi uma febre muito forte, mas Deus quis preservar-me. O segundo a ficar doente foi P.e Francisco e morreu; o terceiro foi P.e Beltrame e agora está bem; o quarto foi Isidoro, nosso operário, que agora se acha convalescente. A todos, em suma, nos afectou o clima africano; porém, bendito seja Deus. Espero que o senhor, toda a sua família e a amável sra. Anita se encontrem bem.


[394]
Tinha intenção de escrever ao muito estimado P.e Bartolo, mas, por agora, não posso. Apresente-lhe entretanto as minhas considerações. Quando me escrever, não sele as cartas, porque, de qualquer modo, o nosso procurador em Cartum tem de pagar o mesmo. Eu também não as mando franquear, porque, de toda a maneira, terá o senhor de pagar. Assim bem entendidos, escreva-me amiúde; oxalá o Senhor o inspire a fazê-lo sempre que o vapor, a 10 e 27 de cada mês, sair de Trieste.

Adeus, meu caríssimo, tenha a certeza de que serei sempre



Seu af.mo amigo

Daniel Comboni






37
P.e Pedro Grana
0
Territorio Kich
27. 3.1858

N.o 37 (35) - A P.e PEDRO GRANA

ACR, A, c. 15/40

Da tribo dos Kich, 27 de Março de 1858

Meu caríssimo P.e Pedro,


 

[395]
Quando escrevia a carta aqui junta, encontrávamo-nos todos sãos e fortes. Quem teria pensado que ontem faleceria o mais forte de nós? P.e Francisco Oliboni, depois de ter suspirado durante dez anos por esta bendita África, cai vítima da primeira febre que o atacou. Bendito seja para sempre o Senhor. Morreu muito resignado e com a alegria que brilha no rosto de quem está a ponto de ser admitido nas bodas eternas do Paraíso. O primeiro a apanhar febre fui eu, porém, com a ajuda do Céu e com o método preventivo, superei-a mais de três vezes.


[396]
O segundo foi P.e Oliboni; o terceiro P.e Beltrame e receio que a febre lhe dure ainda mais de um mês: está já habituado! O quarto é um nosso artífice e está agora convalescente. Bendito seja o Senhor. Desejo notícias da sua actual situação. O Senhor o faça prosperar, o abençoe e cubra de bênçãos seu amado rebanho. Tais são os votos de



Seu af.mo amigo

Daniel






38
Seu pai
0
Territorio Kich
29. 3.1858

N.o 38 (36) - A SEU PAI

AFC

Da tribo dos Kich, África Central,

29 de Março de 1858

Querido pai,


 

[397]
Até ao dia 26 do corrente, a todos a quem escrevi para a Europa disse-lhes sempre com sinceridade que todos nós desfrutávamos da mais perfeita saúde, e já dávamos graças a Deus por isso. Agora devo apresentar outro panorama e usar outro tom, porque o Senhor, Deus de misericórdia, começou a tratar-nos como autênticos servos e apóstolos seus. Bendito seja eternamente o Senhor!


[398]
Certo é que fui eu o primeiro a apanhar a terrível febre africana, no barco, ao atravessarmos o território dos Schelluk; ao cabo de seis dias fiquei curado; o mesmo, é verdade, sofreu também o P.e João e o ferreiro Isidoro, os quais felizmente também a superaram. E nós tivemos sorte, porque muitos missionários da Sociedade de Maria pereceram ao primeiro ataque de febre, habitualmente o mais letal. Mas aprouve a Deus visitar-nos mais de perto.


[399]
Não te assustes, querido pai; a bela alma do P.e Francisco Oliboni voou a juntar-se ao seu Deus, pelo qual tinha abandonado o pai, a pátria e uma das mais notáveis cátedras do liceu de Verona. Bendito seja para sempre o Senhor. Na tarde do dia 19, dedicado a São José, sentiu a cabeça pesada e um estranho mal-estar no estômago; parecia coisa sem importância e só quis tomar um pouco de magnésio e tamarindo. No dia 20, não registando melhoras, teve que tomar um pouco de óleo de rícino, sentindo-se como curado. Mas o seu pulso bem como a sua respiração não me agradavam nada.

Já desde o dia 19 ele estava absolutamente convencido que ia morrer; de facto, dispôs todas as suas coisas e assuntos como se fosse morrer no dia seguinte. No dia 22 sofreu um fortíssimo ataque de febre que o levou às últimas; sentindo assim o seu mal agravado, pediu os santíssimos sacramentos.


[400]
Logo pela manhã confessou-se e comungou. Antes de receber a Unção dos Enfermos, chamou-nos a todos junto ao seu catre, que lhe servia de leito, e com a sua natural eloquência e com a força e veemência que o Espírito de Deus lhe dava no momento da morte dirigiu-nos uma alocução. Pediu-nos que permanecêssemos firmes e constantes na empresa de levar a cabo o grande plano do superior; que mostrássemos o nosso amor ao superior não fraquejando na realização dos seus planos para a glória de Deus; que não nos poupássemos a esforços para redimir almas para o Céu, etc., etc.


[401]
«Adeus – dizia; não voltaremos a ver-nos na Terra, mas eu estarei sempre convosco em espírito, rezarei a Deus por vós, pela nossa missão e seremos sempre irmãos inseparáveis em espírito. Adeus!» Depois, corajoso, ele mesmo respondeu às preces da Igreja e recebeu os santos óleos, depois do que lhe passou a febre e esteve bastante bem. A ele nunca lhe tinham feito uma sangria na vida e, por isso, sempre se negara ao nosso pedido para a fazer, crendo que morreria. Mas quando, no dia 22, se sentiu mal, ele mesmo a pediu; antes, contudo, quis receber os santos óleos.

Eu, sabendo que ele tinha desde há tempo uma pequena inflamação de peito, causada especialmente pelos incómodos da viagem, a que se juntava uma úlcera gástrica de que sofria há muitos anos, consenti, embora fosse já um pouco tarde e, imediatamente depois dos santos óleos, fiz-lhe a primeira sangria, depois do que lhe cessou a febre; e na manhã seguinte fiz-lhe a segunda.


[402]
O dia 23 passou-o bastante bem e nós éramos incapazes de persuadir-nos de que o íamos perder. E ele dizia: «Seja como for, mas eu tenho de morrer.» No dia 24 atacou-o de novo a febre, agora com mais força que no dia 22, e à tarde demos-lhe a bênção papal, depois da qual melhorou, mas a febre já não cessou, antes começou uma erupção saramposa que eu combati com todos os meios que a arte médica recomenda; mas o doente continuava a alternar as melhoras com as recaídas, até que na manhã do dia 26 se sentiu o pior possível. Mas como aliviá-lo, como baixar-lhe a febre, sem ter gelo, de que necessitaria, além disso, para controlar a erupção saramposa?


[403]
Mas Deus chamava-o a si. Nós, aflitos, começamos a encomendá-lo a Deus, se bem que a sua perda nos trouxesse o maior dano, uma vez que agora a grande empresa que Deus nos tinha confiado recaía sobre os débeis ombros de nós os três. Mas Deus tudo pode: bendito seja! Tendo piorado ainda mais ao meio-dia, enquanto os três o assistíamos, começou a delirar, estado em que se manteve por cerca de duas horas. Depois entrou em mortal agonia e, na presença dos três, depois de o confortar de todas as maneiras e de derramar muitas lágrimas, expirou nos braços de Deus às cinco da tarde do dia 26 de Março, aos 33 anos menos três dias.


[404]
Perfeita resignação, viva fé, firme confiança, piedade admirável, ardente desejo de se unir inseparavelmente ao seu Deus foram os sentimentos e os afectos com que se preparou para a última viagem. Quem o conheceu em vida, quem conhecia os dotes e virtudes que embelezavam o seu espírito, pode imaginar quanta dor e dano nos causou a sua perda. Mas faça-se eternamente a divina vontade.


[405]
Ele quase nunca dormia mais que três horas por noite, passando o resto na oração e meditação. Submetia-se a duros jejuns: passou todo o deserto da Núbia com um simples café sem açúcar, que bebia pela manhã, e com o jantar pela noite, sem beber mais água nem outro alimento de espécie alguma. Além do seu breviário, rezava diariamente os salmos penitenciais, os salmos graduais, o ofício do dia, sem contar o resto das orações que fazia em comum connosco. Era o mais pacífico de nós, sempre afável, sempre doce; em suma, era um santo. Até teve a sorte de morrer como J. C. nasceu, num estábulo, porque ao chegar à tribo dos Kich não nos deram mais que um estábulo destinado às vacas, onde estivemos os cinco desde 18 de Fevereiro até 26 de Março.


[406]
Pela manhã do dia 27, P.e Ângelo e eu lavámo-lo e vestimo-lo, metemo-lo num caixão que pregámos. Feitos os funerais, acompanhámo-lo a enterrar numa campa que mandámos escavar na floresta próxima; e escrita uma breve biografia, metemo-la numa garrafa bem selada e esta noutra maior e bem selada também; sepultámo-lo, colocando-lhe uma cruz sobre a campa. Depois de várias noites, em duas ocasiões as hienas removeram a terra até chegarem ao caixão para o devorar; porém, como a madeira era dura, não puderam fazer nada. Morreu, pois, um irmão nosso, querido pai; mas a sua morte, longe de nos fazer desanimar, infunde-nos, pelo contrário, mais ânimo para nos mantermos firmes na grande empresa.


[407]
Não duvides, querido pai: vim como missionário para trabalhar para a glória de Deus e consumir a vida pelo bem das almas, e ainda que visse cair todos os meus companheiros, quando a prudência ou outras causas não me aconselhassem o contrário, eu ficarei firme e farei todo o esforço para realizar o grande plano do superior. Por outro lado, prometo-te – e é a regra que temos nós missionários – que se virmos, de forma clara, que é fisicamente impossível resistir nestes climas, regressaremos com alguma comitiva para trabalhar no nosso país. Mas o Senhor que disponha. Entretanto, mantém-te alegre e não temas: uma vítima entre nós quatro era de prever. Faça-se a vontade de Deus.


[408]
Chamámos o chefe da tribo dos Tuit, para tentarmos granjear a sua simpatia e o sondarmos no sentido de nos estabelecermos na sua tribo. Oferecemos-lhe prendas e ele responde que vamos à sua tribo quando quisermos e a todas as cabanas, excepto às suas. «E porque é que – perguntámos-lhe – não queres que vamos às tuas?» «Porque – responde – nas minhas há um espírito que devora os homens.» «Nós livrar-te-emos dele» – assegurámos-lhe. «É impossível – afirma –, ele devora tudo.» Já veremos; desde que estamos entre os Kich, comecei a exercer a medicina. E sabes qual é o cumprimento que recebo desta gente a cada momento? Apenas tomado o remédio, estes negros agarram-me as mãos e cospem-me nelas; depois, gentil e graciosamente, cospem-me nos ombros e nos braços. E uma vez em que me neguei, uma mulher lançou-me um tal olhar que parecia querer fulminar-me.

Estas cuspidelas são o mais vivo sinal de gratidão entre este povo. Aqui há uma imensa quantidade de mosquitos que nos atormentam bastante, mas será pior na época das chuvas. É assombrosa a destruição que aqui fazem as formigas; uma cabana não pode durar mais de um ano, porque elas a destroem. O primeiro dia em que deixámos as nossas caixas na cabana, sofreram logo o ataque das formigas; e se nós, com diligência contínua, não destruíssemos os ninhos que fazem na madeira, a estas horas já nos teriam devorado as caixas. Basta dizer-te que em todas as planícies dos Kich, numa extensão de mais de 400 milhas, há montículos de terra da altura do quarto onde vós dormis, feitos pelas formigas, e estes são centenas de milhares, porque há um a cada dez passos.


[409]
Quanto a esta tribo, devo dizer-te que é muito medrosa, indolente e extravagante. As suas planícies têm um terreno muito fértil; nas mãos de uma colónia europeia poderia ser um paraíso terreal; mas assim apenas produzem espinhos, pois os seus habitantes não as cultivam: os Kich preferem sofrer uma fome indizível a trabalhar. As manadas de vacas são só de alguns proprietários. Eles, os Kich, vivem unicamente de uns frutos de árvores, bastante mais ásperos que as nossas amoras. Estão, sob este calor, três e quatro dias sem comer e, depois, saciam-se com estes frutos e com o produto de algum roubo praticado. Repara na miséria a que estão sujeitos os que não foram iluminados pela fé. E sempre se vê esta gente sem fazer nada, de lança na mão.

Aqui há, além do mais, aranhas e escorpiões. No mesmo dia em que morreu P.e Francisco, caiu-me do tecto um escorpião e deu-me uma valente picadela num dedo. Eu tomei a lanceta, dei um corte no sítio onde me tinha picado o escorpião, deitei amoníaco e ao fim de dez minutos estava curado. Vou dizer-te outra coisa: gosto tanto de leite, mas raras vezes posso tomá-lo, porque, apesar de tantos milhares de vacas que há aqui, apenas produzem leite suficiente para os seus novilhos, que são amamentados ano e meio. Penso que a causa deve ser a escassez de erva: é tudo espinhos e deles se alimentam as vacas.


[410]
Aqui, no Centro da África, são impressionantes os temporais e os tufões. São tão terríveis os temporais, que se levantam num instante, que, às vezes, derrubam árvores, cabanas, etc. Do mesmo modo formam-se turbilhões de poeira, a modo de cilindros, que rodopiam velozmente. Mas basta. Querido pai, reza ao Senhor por mim e por nós; certamente que o Senhor te abençoará. Deves saber que o Senhor só premeia os seus servos e tu é-lo, pois abraçaste a sua cruz. Abraça-a, aperta-a contra ti, beija-a, que é o mais precioso tesouro. Quanto ao mais, procura estar alegre, tranquilo, divertir-te. Mais, peço-te encarecidamente que continues a tocar, porque quando voltar a Verona, se não morrer, quero ouvir-te tocar.


[411]
Foram cinco as febres que superei e que, a dizer a verdade, não me agradaram muito, mas faça-se a vontade de Deus. Digo-te para não ficarem preocupados se, por acaso, estiver muito tempo sem poder enviar-vos cartas por falta de oportunidade. Talvez a encontre se alguma embarcação núbia passar por aqui, porém, poderia ser que não; o Senhor que decida. Eu leio sempre as cartas que tu desde o princípio me mandaste para ganhar ânimo; tu lê as minhas anteriores e será como se as tivesses recebido agora.


[412]
É para mim um grande prazer que vos tenhais alegrado muito por causa da minha visita à Terra Santa. Eu, querido pai, também tenho sempre na mente essa terra de mistérios e com o pensamento passeio sempre por aqueles lugares; e especialmente agora, que é Semana Santa, tenho presentes no espírito todos os lugares dos mistérios da Paixão de Jesus Cristo.


[413]
Basta que te diga que não se pode exprimir com palavras o que se sente ao pisar aquela terra santificada pela presença adorável do Redentor! E agora, querido pai, adeus; estai sempre alegres, pensai em mim que eu penso sempre em vós e no vosso belo sacrifício. Lede as cartas que vos mando e, depois, selai-as e mandai-as para o seu destino. Para não [...] vos fazer pesar a despesa do correio, muitas cartas mandei-as para Verona, donde as recebereis.


[414]
Mandei-as à sra. Rosina Faccioli, de Sartori in Cittadella, em Verona, que pode pagar e paga com gosto. O resto fica por vossa conta e lamento que o maço acabe por ser demasiado grosso. Mas faça-se a vontade de Deus. Adeus, querido pai; dá saudações a todos os parentes e amigos; apresenta as minhas considerações ao conselheiro, ao ecónomo espiritual, etc., etc. E enquanto vos dou aos dois a santa bênção, recebei também mil beijos de amor de

Vosso af.mo filho Daniel Comboni

Missionário apostólico na África Central



N.B. Participo-vos que nós os três nos encontramos maravilhosamente de boa saúde e esperamos estar também no futuro, porque já começam as chuvas. Até agora tendes visto o vosso filho como simples viajante; para o futuro vê-lo-eis como missionário e vos dará contínuas notícias da nossa missão. Adeus.






39
Seu pai
0
Territorio Kich
20.11.1858

N.o 39 (37) - A SEU PAI

AFC

Da tribo dos Kich, 20 de Novembro de 1858

Meu doce e muito querido pai,


 

[415]
Havia já sete meses que não podia escrever-vos e enviar-vos umas linhas, dado que os ventos do sul impediam os barcos dos comerciantes de Cartum de transpor a impenetrável barreira das espessas selvas que dividem as regiões de domínio egípcio na Núbia das tribos dos negros, no meio das quais nos encontramos nós. Quando eis que um barco a vapor, que já em 1857 havia saído do Cairo – quando nós estávamos ainda em Alexandria –, conduzido por Monsieur Lafarque, comerciante francês de marfim, sulcando pela primeira vez as águas do Nilo Branco, trazia-nos um grande embrulho de cartas da Europa, entre elas a tua estimadíssima que me anunciava a morte da minha querida mãe...


[416]
Ah! Então a minha mãe já não existe?!... Portanto a inexorável morte truncou o curso dos dias da minha boa mãe?... Assim, ficaste sozinho depois de outrora teres à tua volta uma feliz coroa de sete filhos, acariciados e amados por aquela que Deus escolheu para companheira inseparável de teus dias?... Sim: pela divina misericórdia, é assim. Bendito seja o grande Deus que assim o quis. Bendita seja a providente mão que se dignou visitar-nos nesta terra de exílio e pranto.


[417]
Oh, meu querido pai! Com que língua devemos dar graças à Divina Misericórdia que, apesar das nossas falhas, se digna estar connosco, de nos visitar e nos cumular de benefícios?... Minha alma ficou sobremaneira consolada quando, ao ler, vi a tua resignação cristã ante a vontade divina, que quis separar-nos de quanto no mundo constituía a tua felicidade. Sei que em certos momentos a fraqueza da natureza humana nos faz sucumbir sob o peso duma grave tristeza; porém, sei também que a graça do Senhor, a preciosa ajuda da Virgem Imaculada e a eficaz palavra das almas piedosas que te têm verdadeiro afecto te elevam a mais nobres pensamentos e até te fazem louvar e bendizer essa mão que, benfazeja, se dignou visitar-te.


[418]
Graças, pois, ao Altíssimo, porque os teus pensamentos e os meus felizmente coincidem! Deus nos deu esta boa mãe e esposa, Deus no-la tirou. Façamos, pois, dela um generoso sacrifício ao Senhor e seja grande o nosso gozo porque Deus quis chamá-la para junto de Si, para lhe dar um prémio bem merecido pelos sofrimentos e sacrifícios que ela suportou ao longo da sua vida e porque piedosamente quis dar-nos a nós uma feliz ocasião de sofrer algo por Seu amor. Sim, meu pai, ela deixou de chorar nesta terra; e agora encontra-se por fim na posse da glória do Céu, partilhando com seus seis filhos da ventura de um paraíso que nunca acabará e à espera que nós, vencedores na luta desta peregrinação temporal, vamos juntar-nos a eles.


[419]
Eu exulto de alegria porque agora tenho-a mais perto que antes; e alegra-te tu também, que o Senhor quer escutar os férvidos votos dos nossos entes queridos que agora rogam por nós e pela nossa salvação diante do trono de Deus. Exultemos os dois e quase diria gloriemo-nos mutuamente, porque Deus, em sua infinita misericórdia, parece que se digna fazer-nos sentir e mostrar-nos os sinais infalíveis de que Ele nos ama como a seus ternos filhos e nos predestinou para a sua glória. Somos sumamente afortunados, pois Deus se mostra pródigo connosco e bondosamente nos oferece meios e ocasiões de sofrer por amor d’Ele.


[420]
Para nos certificarmos, basta olhar para a ordem da Providência, para o modo como ele trata os seus fiéis servos que predestina para a eterna bem-aventurança. A Igreja de Cristo começou na Terra, cresceu e propagou-se no meio da dor e sacrifício de seus filhos, com as perseguições e o sangue dos seus mártires e pontífices. O seu próprio Chefe e Fundador J. C. expirou sobre um infame patíbulo, vítima de uma nação cruel e ímpia; e os seus Apóstolos sofreram o mesmo que o seu Divino Mestre.


[421]
Todas as missões onde se difundiu a fé foram implantadas, cresceram e tornaram-se grandes no mundo entre o furor de príncipes, entre os patíbulos, as perseguições que aniquilavam os crentes. Não se lê na história de nenhum santo cuja vida não tenha decorrido entre espinhos, sofrimentos e adversidades. Entre as próprias almas justas que nós conhecemos, não há uma única que não tenha tido uma vida atribulada, que não se tenha visto aflita e desprezada. Não, a palma do céu não se pode alcançar sem penas, aflições e sacrifícios; e aqueles a quem é concedida esta espécie de favores celestiais podem com todo o direito chamar-se felizes nesta Terra, pois gozam da bem-aventurança dos santos, que consideraram suma delícia sofrer muito pela glória de Cristo.


[422]
E estes especiais favores, estas sublimes prerrogativas com as quais Deus quer marcar os seus servos para distingui-los entre a multidão inumerável dos filhos do século, que põem todo o seu empenho em conseguir nesta terra a sua plena felicidade, estes favores e prerrogativas, digo, Deus em sua misericórdia compraz-se em outorgá-los também a nós. Nós, porém, querido pai, não somos dignos de tão grandes dons; não somos dignos de padecer pelo amor de Cristo.


[423]
Mas Deus, que é o Senhor de todas as coisas, quer beneficiar-nos para além de todos os nossos méritos. Coragem, pois, meu querido pai. Agora estamos no campo de batalha entre os combatentes desta mísera terra; agora somos atacados pelos nossos mais tremendos e furibundos inimigos. A miséria humana quer induzir-nos a procurar cá em baixo uma felicidade perecedoira e nós, lutando como heróis, abraçamos com ânimo generoso as adversidades, os sofrimentos, os padecimentos, a separação.


[424]
A miséria humana esforça-se por nos tirar a paz do coração e a esperança de uma vida melhor; e nós, ao lado de J. C. crucificado, que padeceu por nós, exultamos no meio da má sorte, mantendo intacta essa paz preciosa que só ao pé da cruz e no pranto pode encontrar o verdadeiro servo de Deus. Estamos no campo de batalha, repito, e é preciso lutar como valentes. Os grandes prémios e triunfos não se alcançam senão por meio de grandes fadigas, pesar e sofrimentos. Sirva-nos, pois, de acicate e de consolação a grandeza do prémio que nos espera no Céu e não nos perturbe nem atemorize a grandeza e dificuldade do combate.


[425]
Temos a nosso lado o mesmo Cristo que luta e sofre por nós e connosco, de modo que, acompanhados e assistidos por tão magnânimo e poderoso Capitão e Senhor, não só podemos suportar com alegria e constância as penas e sofrimentos que o Senhor nos manda mas também será nosso exercício permanente pedir-Lhos maiores, porque só assim e com o desprezo das coisas terrenas se podem conquistar os louros do Céu.


[426]
Coragem, sempre te repetirei que já nos resta pouco de vida; que o palco vão e ilusório deste mundo não tardará a apagar-se dos nossos olhos e estamos prestes a entrar no interminável palco da eternidade que nos espera. Para corroborar o que te estou a dizer, eis aqui três frases de santos, com as quais quero convencer-te de que nós somos afortunados nesta Terra, especialmente agora que Deus quer que aproximemos os lábios do cálice da adversidade e das penas.


[427]
Santo Agostinho afirma que é indício de estar predestinado à glória dos eleitos padecer muito por J. C. e ter aflições nesta vida: “Coniectura est, cum te Deus immensis persecutionibus corripit, te in electorum suorum numerum destinasse.”


[428]
São João Crisóstomo diz que é uma graça realmente suprema ser considerado digno de sofrer algo por Cristo; e é uma coroa verdadeiramente perfeita e uma recompensa não inferior ao prémio do Paraíso: “Est gratia vere maxima dignum censeri propter Christum aliquid pati: est corona vere perfecta, et merces futura retributione non minor.”


[429]
S. Pedro de Alcântara, por seu lado, depois de ter passado toda a sua vida entre mortificações e espinhos, poucos dias depois de expirar nos braços do Senhor, apareceu a St.a Teresa em Espanha e assim lhe falou: «Ó feliz penitência, ó doces sofrimentos e pesares, que tanta glória me valeram!» O felix poenitentia, quae tantam mihi promeruit gloriam! Assim se expressam os filhos de Deus, assim pensam os verdadeiros seguidores de Cristo.


[430]
Pensemos nós assim também; lancemo-nos totalmente nos braços amorosos da Providência divina e lutemos valorosamente até à morte à sombra da gloriosa bandeira da cruz e a preciosa coroa da recompensa eterna será para nós.


[431]
No momento em que te escrevo, encontro-me em perfeito estado de saúde. Desde 6 de Abril até meados de Agosto, o Senhor dignou-se visitar-me com dores de cabeça muito fortes e prolongadas, que me deixaram muito fraco; mas desde o começo da segunda metade de Agosto fui-me restabelecendo, de modo que em Setembro pude empreender uma viagem às terras dos Gogh, a ocidente do Nilo Branco, no interior. No dia seguinte àquele em que recebi correspondência da Europa, ou seja, a 14 do corrente, fui atacado por uma fortíssima febre, que me durou cinco dias seguidos e bem pensei que entregava alma ao Criador.


[432]
Mas também desta vez Deus não me quis com Ele. Ao nosso caríssimo P.e Ângelo aconteceu-lhe o mesmo que a mim. Já P.e Beltrame, nosso superior, à excepção de poucas e ligeiras febres sofridas no começo das chuvas, gozou e goza de perfeita saúde. Bendito seja o Senhor. Agora estamos os três realmente com saúde e preparados para trabalhar, com a ajuda da divina graça, pela glória de Cristo.


[433]
Teria muitas coisas para te dizer sobre este país e sobre o que fizemos e projectamos fazer no futuro. Mas sobre isso escrever-te-ei com mais calma quando as nossas ocupações me permitirem fazê-lo. Por agora te comunico simplesmente que morreram em quatro meses cinco missionários, entre eles o pró-vigário apostólico P.e Inácio Knoblecher e P.e José Gostner, director da estação de Cartum, mortes que deixaram muito diminuído o número de obreiros evangélicos destas missões; as circunstâncias chamam alguns de nós e talvez a todos a Cartum, cuja missão agora se apoia nos ombros do nosso procurador P.e Alexandre.


[434]
Morreu também o ferreiro que trouxemos de Verona. Bendito seja o Senhor. Não te assustes. A nossa vida está nas mãos de Deus e que Ele faça o que quiser; nós, em irrevogável entrega, sacrificámo-la a Ele. Bendito seja. Aqui uma pessoa morre da noite para o dia, sem tempo de se preparar para morrer: é preciso estar sempre preparado. Em poucas horas, uma febre deixa uma pessoa no último grau de fraqueza, à beira da morte. Por isso, roga por nós, que nem sempre podemos estar na graça de Deus e preparados para morrer de um momento para o outro.


[435]
A 13 do corrente, recebi todas as tuas cartas e as da mãe desde Dezembro do passado ano até 7 de Agosto do presente. Também me chegaram duas cartas do pároco de Voltino, uma de António Risatti, outra do cabo, etc., e umas gentis linhas do Sr. Pedro Ragusini, cartas que me foram todas muito gratas. Saúda-os cordialmente da minha parte, que quando tiver tempo, escreverei a todos. P.e João e P.e Ângelo enviam-te saudações cordiais; amiúde falamos de ti.


[436]
Ah, a tua sorte de poderes sofrer por Cristo é verdadeiramente invejável! Saúda e apresenta os meus respeitos à família Patuzzi, a P.e Bem especialmente ao sr. Luís, ao sr. Beppo, ao amigo António Risatti, ao doutor, ao sr. Cândido, ao muito gentil sr. Pedro e ao seu tio, o sr. Bartolo Carboni; a Checcho e Bárbara Rambottini, a quem recordo sempre com agrado; ao pintor; ao sr. conselheiro e sua família, de quem recebi carta; ao arcipreste de Tremosine; a P.e Luís; ao pároco de Voltino, a quem vou certamente escrever; à sra. Mariana Perini; a Bettanini de Bassanega; aos jardineiros de Tesolo e de Supino; à sra. Minica e filhas; às boas famílias de Pedro Roensa, Carlos e ao sr. Vicente Carettoni; a P.e Pedro Grana; aos nossos parentes de Limone por parte da mãe, de Bogliaco e de Maderno; ao famoso cabo, a quem saúdam também P.e Ângelo, etc., etc.; a Salsani, etc., etc.


[437]

Adeus, querido pai. O Senhor esteja sempre contigo. Tais são os votos de quem te ama; tais os suspiros daquele que, abraçando-te e dando-te mil beijos com todo o carinho, se declara

Teu af.mo e agradecidíssimo filho

Daniel Comboni
Servo dos negros na pobre África Central


 


[438]
N. B. Espero que gostes das estampas de santos que te mando e que escolhi como minha recordação, com as quais te consagrei à Padroeira e Rainha da Nigrícia, a Imaculada Virgem Maria. Em suas mãos estás melhor que se estivesses sentado no trono de um grande império. Ela te conforte sempre.

O outro santo negro que vai junto dá-o ao tio José. Comunico-te também que celebrei por ti e pela pobre mãe cinquenta e seis missas, em mérito de vossas almas. E como tinha o pressentimento de que a mamã ia morrer, desde 17 de Julho apliquei por ela em particular dezassete missas, do que agora me alegro. No dia seguinte à chegada das cartas da Europa, P.e João quis que todos nós celebrássemos a missa por alma da mãe. Deixa que eu me encarregarei de a cobrir de missas, quando pudermos celebrar. Mas aplico-as sob condição, no caso de que ela tenha necessidade, porque de outro modo quero que as minhas missas sejam em teu benefício e das almas dos nossos familiares defuntos. Ela está no Paraíso rogando por nós. Adeus, mil vezes adeus, em nome de Jesus Cristo.


[439]
Quanto ao imprimir as nossas informações, como por algumas cartas percebi que alguém deseja fazer, é inútil, já que o nosso Instituto manda imprimir tudo, como até agora tem vindo a fazer com tudo o que escrevemos e que tem alguma importância.


[440]
Quando houver uma ocasião propícia, mandaremos para o Instituto um dente de marfim de elefante. Os elefantes são animais de tamanho desmesurado, como nunca se viu. O elefante que tinha este dente foi caçado no território dos Gogh, aonde P.e João e eu viajámos em Setembro passado. Este dente pesa 121 rolos que correspondem a mais de 6 pesos brescianos [aproximadamente 107 quilos]. Oh, a quantidade de feras e de caça que se vêem por aqui! Certamente que o Sr. Ventura Girardi se sentiria no paraíso no meio destas solidões, ele que sonha sempre com aves e pássaros.




[441]
N. B. Deixo-te ainda uma lembrança e é uma famosa e verdadeira sentença de Cristo. Medita-a sempre e trá-la sempre na mente, que bem merece a nossa veneração. E é esta: BEATI QUI LUGENT: felizes os que choram.






40
Eustáquio Comboni
0
Territorio Kich
24.11.1858

N.o 40 (38) - A EUSTÁQUIO COMBONI

AFC

Da tribo dos Kich, 24 de Novembro de 1858

Querido primo,

[442]
Meu bom Eustáquio! Fiquei sem mãe!... tinha-a... mas já a não tenho! Bendito seja o Deus da misericórdia, que quis lembrar-se de mim! Embora eu tenha resolutamente virado as costas ao mundo a fim de assegurar a salvação da minha alma, consagrando-me a um estado de vida totalmente semelhante ao de Cristo e dos Apóstolos; e ainda que com a graça divina tenha vencido a natureza, separando-me de quanto mais amava no mundo para servir com maior liberdade o Senhor, contudo, senti vivamente os rebates da frágil condição humana e chorei amargamente a grande perda.


[443]
Mas bendito seja eternamente o Senhor! Ele assim o dispôs: eu adoro humildemente os seus divinos decretos. Ele quis chamar para junto de si a minha pobre mãe, da qual recordo o carinho que me dedicou e o quanto a pobrezinha sofreu e se sacrificou por mim. Ele quis deixar em dolorosa solidão o meu bom pai, que, ainda que resignado à vontade divina, devido à sua grande sensibilidade, se vê arrastado para uma profunda melancolia.


[444]
Mas Deus o quer assim: bendito seja. A morte de minha mãe e a solidão de meu pai perturbam-me bastante. Mas, ó minha alma, sacode o teu letargo e eleva ao céu o olhar, que o homem não é feito para esta terra! Este doce pensamento, caríssimo Eustáquio, não só faz evaporar do meu espírito toda a perturbação, mas também enche a minha alma de inefável alegria.


[445]
Sim, agradeço ao Senhor que me visitou a mim e a meu pai. Não abandonei eu o mundo para servir o Senhor? E meu pai não deu o seu generoso consentimento, com o único objectivo de obedecer à vontade de Deus e ter assim uma nova ocasião de sacrificar o seu espírito a Deus para salvar a sua alma? Por acaso não é a via da aflição, do sofrimento, da negação de si mesmo o caminho mais recto e seguro para conseguir a salvação da alma, sacrificando a Deus todos os ídolos do próprio coração?


[446]
Sim, meu querido primo, essa viril sentença do Salvador – “Quid prodest homini, etc.: «De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma? E se a perde, que poderá o homem dar em troca para a recuperar?...»; essa viril sentença, digo, que significou o triunfo de tantas almas que antes estavam apegadas às coisas deste mundo, que salvou da morte a tantos idólatras dos bens e das riquezas do século; esta sentença que, repito, mudou o coração a tantas almas que queriam construir a felicidade nesta terra e que ganhou tantas almas para a cruz, esta sentença, pronunciada pela infalível verdade eterna, vestida com os míseros despojos da natureza humana para nos indicar o caminho do céu, é a que dá alento ao meu espírito, é a que o eleva acima das coisas desta terra, pondo em minha alma desejos de novas adversidades, porque estou convencido de que estas são o melhor meio para triunfar do mundo e ganhar a Deus.


[447]
Seja, pois, bendita a mão que nos purifica no crisol da mortificação, as calamidades e aflições desta mísera vida, que ao fim de contas não é mais que um sopro que rápido se desvanece. Pouco nos fica já para viver a mim e a meu pai e se queres que te diga, também a ti: somos já velhos e em breve ter-se-á que dar contas dos talentos que o Senhor nos deu. Toda a minha confiança está, portanto, em Deus, que vê tudo, que pode tudo e que nos ama.


[448]
Porém, não penses que, porque atribuo tudo a Ele, não aprecio as solícitas preocupações que os homens têm e tomam por amor de Deus. O Senhor serve-se dos homens como de causas secundárias para levar a cabo os seus desígnios divinos. Sim, querido primo, o Senhor serve-se de ti e da tua família para confortar a desolada alma de meu pai.


[449]
Oh, como ficou comovida a minha alma por sentimentos de afecto e gratidão para contigo e para com os teus, quando percebi, pelas cartas de meu pai, o tratamento carinhoso que vós usastes para com ele nos momentos mais críticos da perda que eu e ele ...



[carta incompleta]