Em ambos os textos citados por Jesus, a palavra-chave é o imperativo “Amarás!”. O amor torna-se, assim, a chave da Lei. Os deuses pagãos desejavam adoradores submissos, escravos; o Deus de Jesus Cristo, por sua vez, quer filhos livres, capazes de amar. O verbo “amar” (ahav em hebraico) aparece no Antigo Testamento 248 vezes (Fernando Armellini). Poderíamos dizer que a única coisa a fazer sempre (365 dias por ano!) é amar.
“Escuta, Israel!”
Mc. 12,28-32
Já passaram três dias desde a chegada a Jerusalém. No domingo passado, percorremos o último trecho da estrada, subindo de Jericó na companhia dos Doze e da multidão de peregrinos. Entre eles estava Bartimeu, o cego de Jericó que Jesus curou, símbolo de todos nós.
O Senhor passa os últimos dias da sua vida entre o Templo e Betânia, uma aldeia na periferia da cidade. Durante o dia, permanece no Templo, onde ensina o povo que o escuta de bom grado (11,18). À noite, com os seus, retira-se para Betânia, como hóspede de amigos.
Estamos no terceiro dia da sua estadia na cidade santa, o destino final do seu ministério. Este dia é particularmente intenso e começa com um sinal: a figueira seca desde as raízes (11,20-26), símbolo de uma vida estéril e do poder da oração. No Templo, Jesus confronta-se com os chefes religiosos, que contestam a sua autoridade para ensinar naquele lugar (11,27-33). A eles, Jesus conta a parábola dos vinhateiros homicidas (12,1-12). O destino de Jesus já está traçado: as autoridades decidiram eliminá-lo e só procuram a ocasião e um pretexto. Segue-se, então, uma série de armadilhas para o colocar em dificuldade: primeiro sobre o tributo a César (12,13-17) e depois sobre a ressurreição dos mortos (12,18-27). Este é o contexto do trecho do Evangelho de hoje.
Pontos para reflexão
1. Perdidos no labirinto das leis
“Aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: ‘Qual é o primeiro de todos os mandamentos?’”
Segundo Mateus e Lucas, este doutor da Lei também queria pôr Jesus à prova (Mateus 22,35; Lucas 10,25). Qual era, neste caso, a armadilha? Para a mentalidade comum da época, o grande mandamento era o terceiro do Decálogo: a observância do sábado, pois o próprio Deus o tinha observado após o “trabalho” da criação (Génesis 2,2). Os adversários esperavam que Jesus respondesse assim, para o acusarem: “Então, por que tu e os teus discípulos não respeitam o sábado?”.
Para o evangelista Marcos, porém, a pergunta do escriba era sincera e pertinente. Com a intenção de regular toda a vida segundo a lei de Deus, os rabinos tinham identificado 613 preceitos na Torá (Pentateuco), além dos dez mandamentos: 365 negativos (proibições, correspondentes aos dias do ano solar) e 248 positivos (prescrições, correspondentes aos órgãos do corpo humano, segundo a crença da época). Um verdadeiro labirinto! Num emaranhado de leis como este, sentia-se a necessidade de discernir o que era verdadeiramente essencial.
2. O amor é a lei!
“Jesus respondeu: O primeiro é este: ‘Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’”.
Jesus não cita nenhum dos dez mandamentos, mas eleva-se do plano legalista ao nível do amor. Refere a profissão de fé do “Shema Israel”, “Escuta, Israel” (Deuteronómio 6,4-5, ver a primeira leitura), a oração que todo judeu recita três vezes ao dia (de manhã, à noite e antes de dormir).
“O segundo é este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Não há nenhum mandamento maior que estes.”
Ao “primeiro” mandamento, Jesus acrescenta um “segundo” tirado de Levítico 19,18. Esta combinação de textos da Torá é original e própria de Jesus.
Qual é a relação entre os dois mandamentos? Santo Agostinho comenta: “O amor a Deus é o primeiro que é mandado; o amor ao próximo é o primeiro, porém, a ser praticado”. No Novo Testamento, esta síntese da lei nos dois mandamentos não é mencionada noutro lugar e parece inclinar-se para o amor ao próximo: “Isto vos mando: amai-vos uns aos outros” (Jo 15,17). Para São Paulo, “toda a lei encontra a sua plenitude num só preceito: amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14) e “o pleno cumprimento da lei é o amor” (Rm 13,10). O amor pelo irmão é o espelho e a prova do amor de Deus. Quem diz que ama a Deus e não ama o irmão é mentiroso (1 Jo 4,20-21). Os “dois amores” são, na verdade, inseparáveis.
3. “Amarás!”: dar um coração à lei
Em ambos os textos citados por Jesus, a palavra-chave é o imperativo “Amarás!”. O amor torna-se, assim, a chave da Lei. Os deuses pagãos desejavam adoradores submissos, escravos; o Deus de Jesus Cristo, por sua vez, quer filhos livres, capazes de amar. O verbo “amar” (ahav em hebraico) aparece no Antigo Testamento 248 vezes (Fernando Armellini). Dir-se-ia que é um número simbólico, pois corresponde ao número de preceitos positivos (coisas a fazer), segundo a tradição rabínica. Poderíamos dizer que a única coisa a fazer sempre (365 dias por ano!) é amar.
A Torá, que emanava do coração de Deus, tinha perdido o seu espírito original e, em vez de servir o homem, tinha-se transformado num fardo pesado. Jesus veio para devolver o coração a tudo o que é humano. Agora, no coração da Lei, podemos redescobrir o Seu Coração!
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
A única medida do amor é amar sem medida
Marcos 12,28-34
Ermes Ronchi
Qual é, na Lei, o mandamento maior? Sabiam-no todos em Israel: o terceiro, aquele que prescreve santificar o sábado, porque também Deus o tinha observado. À pergunta de um dos escribas (cf. Marcos 12, 28-34), a resposta de Jesus, como habitualmente, surpreende e vai além: não cita nenhuma das dez palavras, mas coloca no coração do Evangelho a mesma coisa que está no coração da vida: amarás. Um verbo no futuro, como uma viagem que nunca acaba… que é desejo, expetativa, profecia de felicidade para cada pessoa.
O percurso da fé inicia com um «és amado» e conclui-se com um «amarás». No meio germina a nossa resposta ao cortejar de Deus. Amarás Deus com todo o teu coração e o teu próximo como a ti mesmo. Jesus não acrescenta nada de novo: a primeira e a segunda palavra já estavam escritas no Livro. A novidade está no facto de que as duas palavras fazem uma só, a primeira. Tê-las separado é a origem dos nossos males, dos fundamentalismos, de todas as arrogâncias, do triste individualismo.
Mas amar o quê? Amar o próprio Amor. Se amo Deus, amo o que Ele é: vida, compaixão, perdão, beleza; cada fragmento de pão, um ato de coragem, um abraço confortante, uma intuição iluminadora, um ângulo de harmonia. Amarei o que Ele mais ama: o ser humano, de quem se orgulha. Mas amar como? Colocando-se inteiramente em jogo. Deixando ressoar e agir a força do adjetivo «todo», proferido quatro vezes. O todo do coração, mente, alma, força. Nós pensamos que a santidade consiste na moderação das paixões. Mas onde é que está essa moderação na Bíblia? A única medida do amor é amar sem medida.
Amarás com todo, com todo, com todo… Fazer assim é já cura do ser humano, reencontrar a unidade, a convergência de todas as faculdades, a nossa plenitude feliz: «Escuta, Israel. Estes são os mandamentos do Senhor (…) para que sejas feliz» (Deuteronómio 6, 1-3). Não há outra resposta ao desejo profundo de felicidade do ser humano, nenhuma outra resposta ao mal do mundo a não ser só e só esta: amarás Deus e o próximo. Para narrar o amor pelo próximo, Jesus presenteia a parábola do bom samaritano (Lucas 10, 29-37). Para indicar como amar Deus com todo o coração, não escolhe nem uma parábola, nem uma imagem, mas uma mulher, Maria de Betânia, «que sentada aos pés do Senhor, escutava a sua Palavra» (Lucas 10, 38).
Jesus viu que a maneira de escutar de Maria é a «melhor escolha», a mais capaz de descrever como se ama Deus: como uma amiga que se senta aos seus pés, sob a cúpula dourada da amizade, e escuta-o, fascinada, e não deixará cair uma só das suas palavras. Amar Deus é escutá-lo, como crianças, como enamorados.
Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
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