Neste domingo, escutamos o Evangelho de João (6, 41-51), no qual Jesus afirma: “Eu sou o pão vivo descido do céu”. Jesus não se exprime através de raciocínios, mas de imagens concretas e compreensíveis: pão, vivo, descida, céu. Quatro palavras e quatro metáforas, cada uma delas generativa, rica de movimento, de experiência, de sabor e de horizontes. É verdade que não explicam o mistério, mas fazem-no iluminar e seduzem-nos a saboreá-lo e a desfrutá-lo. “Eu sou o pão da vida”, acrescenta Jesus. Pois é, o Pão de que aqui se fala não é apenas aquela pequena porção de farinha passada pela mó do moinho e depois pela água e pelo fogo, mas é a representação de tudo o que é bom para mim e para ti, é Ele mesmo (o Pão vivo) que nos mantém vivos.
“Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.”
João 6,41-51
Estamos no terceiro domingo da leitura do capítulo sexto do evangelho de João, sobre o discurso de Jesus sobre o pão da vida, após a multiplicação dos pães. Depois de falar do pão misterioso dado pelo Pai, Jesus agora revela que tal pão é ele próprio. Talvez sintamos uma certa dificuldade em seguir a reflexão que São João coloca na boca de Jesus. Não se trata de um relato linear, como fazem os outros evangelistas. Tem-se a impressão de que o evangelista repete as mesmas coisas. Na realidade, João avança em espiral, retomando conceitos e ideias para aprofundar o discurso. Neste “progresso em espiral” podemos notar três mudanças no trecho de hoje.
1. Mudança de interlocutores
Domingo passado era a MULTIDÃO que dialogava com Jesus, a respeito do sinal do Pão. Apesar da dificuldade em ir além do interesse pelo pão material, as pessoas manifestaram uma certa disponibilidade ao diálogo com Jesus, pedindo explicações e formulando uma oração, a seu modo: “Senhor, dá-nos sempre desse pão”, à qual Jesus respondeu: “Eu sou o pão da vida!”
MURMURADORES. Hoje não se trata mais da multidão, mas dos JUDEUS. Quem são esses “judeus”, visto que estamos em Cafarnaum, na Galileia, e eles conhecem as origens de Jesus? João, em seu evangelho, quando fala de “judeus” não se refere aos habitantes da Judeia, mas aos adversários de Jesus, particularmente os líderes religiosos, aqueles que rejeitam sua mensagem e o condenarão à morte. Esses “judeus” não dialogam com Jesus, mas murmuram entre si contra ele. O evangelista introduz aqui o tema da murmuração do povo de Israel no deserto, contra Deus e contra Moisés.
São João nos faz refletir sobre os “judeus” que existem no seio da comunidade eclesial (e em nós mesmos) que, da rejeição da Palavra, passam à murmuração, que é uma forma justificativa da própria “cardiosclerose”. Além da murmuração do mexerico pode haver uma murmuração “espiritual” bem mais perigosa, pela qual nos fechamos em nossos próprios pensamentos e mentalidade, impermeáveis a qualquer novidade. Infelizmente, esses “murmuradores” abundam e são muito ativos na Igreja de hoje. Antes de julgar os outros, contudo, busquemos identificar o “murmurador” que há em cada um de nós!
2. A origem de Jesus
Um novo tema de discussão é introduzido pelos judeus, sobre as origens de Jesus: “Os judeus murmuravam de Jesus, por Ele ter dito: «Eu sou o pão que desceu do Céu». E diziam: «Não é Ele Jesus, o filho de José? Não conhecemos o seu pai e a sua mãe? Como é que Ele diz agora: ‘Eu desci do Céu’?»”. Para eles, “o pão descido do céu” é a Torá, transmitida por Deus por meio de Moisés. Não podem conceber que a Palavra possa “se fazer carne” em um homem, em “Jesus, filho de José”. Como é possível? perguntam-se entre si. Estamos diante do mistério da encarnação, que é o “evangelho” do cristão, mas desde sempre uma pedra de tropeço para o homem “religioso” e escândalo para as “religiões do Livro”, hebreus e muçulmanos.
COMO É POSSÍVEL? À esta pergunta dos judeus de ontem e de hoje, Jesus responde de um modo que nos surpreende: “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou, não o trouxer”! Mas então a fé em Jesus é pura graça, dada a alguns e negada a outros? Não pode ser assim, pois “Deus não faz acepção de pessoas” (Atos 10,34). A graça é oferecida a todos, mas deve ser solicitada e acolhida humildemente. É dom e não conquista nossa.
Esta pergunta “Como é possível?” é uma exclamação frequente para manifestar surpresa e espanto, mas também dúvida e incredulidade. Também no âmbito da fé nos colocamos essa pergunta sobre eventos que parecem questionar a presença de Deus em nossa vida e em nosso mundo. Jesus nos diz: “Não murmureis entre vós”, mas não nos impede de fazer perguntas e buscar explicações. Uma fé que não se questiona pode facilmente se tornar um fundamentalismo que leva a uma mentalidade de enclausuramento e psicose de perseguição. Um questionamento saudável (não estamos falando da dúvida sistemática da desconfiança) nos coloca em diálogo com todos, como companheiros de jornada de cada homem e mulher. Mas, como conciliar isso com a fé? A Virgem Maria, com o pedido feito ao anjo: “como é possível?”, nos diz que tal pergunta é legítima, se feita para tornar mais consciente o nosso “sim”, o nosso “fiat”. Também é possível “duvidar em plena certeza”! (Cristina Simonelli).
3. Comer o pão, comer a sua carne
Até agora, Jesus se limitou a falar de si como o pão descido do céu. Agora introduz o verbo comer: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei de dar é a minha carne, que Eu darei pela vida do mundo” (v. 51). Este versículo, que será retomado no próximo domingo, nos introduzirá, finalmente, no discurso sobre a eucaristia. Comer o pão que é sua pessoa, sua palavra e sua carne torna-se a condição para ter em nós a vida eterna.
LEVANTA-TE, COME E CAMINHA! A primeira leitura e o evangelho giram em torno do “comer” e nos convidam a nos perguntar do que nutrimos nossa vida. Fala-se de três tipos de pão: o pão do maná que nutre por um dia, o pão de Elias que nutre por quarenta dias e o pão que é Jesus que nutre para sempre. A primeira leitura (1Reis 19,4-8), que nos conta a crise do profeta Elias, perseguido de morte pela rainha Jezabel, é de uma beleza extraordinária. Por um lado, mostra-nos a fraqueza do grande profeta, que desafiara sozinho os 400 profetas de Baal, uma fraqueza que o torna semelhante e próximo a nós. Por outro lado, mostra-nos a ternura de Deus que não repreende seu profeta, mas lhe envia seu anjo, por duas vezes, para revigorá-lo e colocá-lo de novo em caminho em direção ao monte Sinai, onde o Senhor o espera. Este é o nosso Deus, que se aproxima de cada um de nós nos momentos de prova, de crise e de desânimo para nos reanimar: “Levanta-te e come, porque ainda tens um longo caminho a percorrer!”
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Verona, Agosto de 2024
Que alimento dou à minha vida?
Generosidade e beleza ou intolerância e insensatez?
João 6, 41-51
Ermes Ronchi
Eu sou o pão vivo descido do céu. O poder da linguagem de Jesus, o seu mistério e a sua história exprimidas não com raciocínios mas por imagens: pão, vivo, descida, céu. Quatro palavras e quatro metáforas, cada uma generativa enquanto rica de movimento, de experiência, de sabor e de horizontes. Não explicam o mistério, mas fazem-no vibrar na tua vida, mistério jubiloso a desfrutar e a saborear. O pão de que se fala não é aquela mão de água e farinha passada pela mó e pelo fogo, mas tem muito mais: é o símbolo de tudo aquilo que é bom para ti e te mantém vivo.
Os judeus puseram-se a murmurar contra Jesus. Mas como? Pretendes ser o pão chovido do céu? Mas vieste como todos da tua mãe e do teu pai. Queres mudar-nos a vida? Fazendo aquilo que faz o pão com o nosso corpo, que se oculta e desaparece no íntimo, e não faz ruído. Não, o Deus omnipotente teria de fazer algo bem diferente: milagres poderosos, definitivos, evidentes, solares. Mas Deus não faz espetáculo. No fundo é a mesma crítica que também nós murmuramos: que pretensões tem sobre a minha vida este homem de há dois mil anos? Pensará Ele realmente que nos faz viver melhor?
Não murmureis entre vós. Não desperdiceis palavras a discutir Deus, podeis fazer melhor: mergulha no seu mistério. Pão que desce do céu. Nota: desce, por mil estradas, de centenas de maneiras, como o pão no corpo; desce para mim, agora, neste momento, e continuamente. Esse pão, posso relegá-lo para o repertório das fantasias, mas ele desce incansavelmente, envolve-me de forças boas. Eu estou imerso nele e ele está imerso em mim, e alimenta a minha parte mais bela.
Não murmureis, comei. O trecho do Evangelho deste domingo articula-se em torno do verbo comer. Um gesto tão simples e quotidiano, e no entanto tão vital e poderoso, que Jesus o escolheu como símbolo do encontro com Deus. Narrou a fronteira avançada do Reino dos Céus com as parábolas do banquete, da convivialidade. O Pão que desce do céu é a auto-apresentação de Deus como uma questão vital para o ser humano. O pão que comes faz-te viver, e então vives de Deus e comes a sua vida, sonhas os seus sonhos, preferes aqueles que Ele preferia. Dentada de céu.
Surge uma pergunta: de que coisa alimento alma e pensamentos? Estou a comer generosidade, beleza, profundidade? Ou nutro-me de egoísmo, intolerância, miopia do espírito, insensatez do viver, medo?
Se acolhermos pensamentos degradados, estes tornam-nos como eles. Se acolhemos pensamentos de Evangelho e de beleza, estes transformar-nos-ão em guardiães da beleza e da ternura, o pão que salvará o mundo.
Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins