Comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 17º Domingo do Tempo Comum (Jo 6, 1-15). A tradução é de Moisés Sbardelotto. O ordo de leituras bíblicas do Ano Litúrgico B prevê que, tendo chegado, na leitura cursiva de Marcos, ao evento da multiplicação dos pães (Mc 6, 35-44), interrompa-se a leitura do evangelho mais antigo e que ela seja substituída pela leitura do mesmo episódio narrado no quarto evangelho. Por cinco domingos, portanto, lê-se o capítulo 6 de João, um texto que requer uma breve introdução geral.
Cinco pães e dois peixes, a receita do milagre!
"Este é realmente o profeta."
João 6,1-15
Neste domingo, a liturgia interrompe a leitura do evangelho de Marcos, quando havíamos chegado ao relato da multiplicação dos pães, para incluir a leitura da versão joanina deste milagre. Durante cinco domingos, ouviremos o capítulo 6 do evangelho de João, o capítulo mais longo e um dos mais densos dos quatro evangelhos. A multiplicação dos pães é o único milagre contado por todos os evangelhos. Na verdade, encontramo-lo seis vezes, já que é duplicado em Marcos e Mateus. Isso faz-nos entender a importância que os primeiros cristãos deram a este evento tão sensacional.
O capítulo 6 de João é particularmente rico e profundo do ponto de vista simbólico. Este “sinal” (assim João chama os milagres) é meditado e elaborado com grande cuidado, como ele faz com todos os sete “sinais” que recolhe no seu evangelho. No centro do relato encontramos o “pão”, mencionado 21 vezes (de 25 em todo o evangelho de João). No pano de fundo da narrativa e do discurso que se segue na sinagoga de Cafarnaum, encontramos a referência à eucaristia. Lembremos que João não relata a instituição da eucaristia, substituída pela lavagem dos pés. Aqui ele apresenta a sua meditação sobre a eucaristia.
O risco do reducionismo
Antes de nos aproximarmos do texto, parece-me oportuno sublinhar a necessidade de evitar alguns possíveis reducionismos:
1) Concentrar a nossa atenção quase exclusivamente no aspecto milagroso, ou seja, na dimensão histórica, no “facto” em si. Os quatro evangelistas dão versões com detalhes bastante diferentes. Isso ajuda-nos a entender que cada um deles já faz uma releitura em função da sua comunidade, por isso o “facto” é entrelaçado com a sua interpretação catequética;
2) Considerar do relato apenas a dimensão simbólica, esvaziando o “sinal” da sua referência histórica, reduzindo-o assim a uma “parábola”. Sem a veracidade do milagre não se explica porque os evangelistas e a primeira comunidade cristã deram tanta importância a este “sinal”;
3) Interpretar o relato exclusivamente em chave eucarística. Todos os evangelistas ligam o milagre à eucaristia, mas a narrativa tem um alcance mais amplo e mais rico. No texto de João 6 a referência explícita à eucaristia aparece apenas no final do discurso de Jesus;
4) Fazer uma leitura unívoca do texto, ou seja, apenas “religiosa” (o milagre como figura do alimento espiritual), ou unicamente “material” (como um simples convite à partilha e à solidariedade).
Alguns elementos simbólicos
1) A nova Páscoa. “Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus”. A referência à Páscoa não é apenas uma anotação temporal, mas tem um alcance simbólico. Esta “grande multidão” já não vai em direção a Jerusalém para celebrar a Páscoa, mas em direção a Jesus. Ele é a nova Páscoa que dá início ao êxodo definitivo da nossa libertação.
2) O novo Moisés. “Jesus subiu ao monte e sentou-se ali com os seus discípulos”. Este subir ao monte (primeiro com os discípulos e depois sozinho) lembra-nos Moisés. A comparação é ainda mais evidente se considerarmos que logo em seguida vem o relato de Jesus caminhando sobre o mar (Jo 6,16-21). Jesus é o novo Moisés, o novo profeta e líder do povo de Deus que está prestes a oferecer o novo maná.
3) O verdadeiro Pastor. “Façam-os sentar. Havia muita relva naquele lugar”. Esta anotação, além de ser uma referência à primavera e ao período da Páscoa, nos remete ao salmo 23: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Em verdes pastos me faz descansar”. Jesus, que reúne a multidão ao seu redor e percebe as suas necessidades, é o Pastor prometido por Deus (Ezequiel 34,23).
4) O novo maná. “Recolham os pedaços que sobraram, para que nada se perca”. O maná não devia ser recolhido para o dia seguinte, exceto para o sábado (Êxodo 16,13-20). Aqui, no entanto, Jesus recomenda recolher os pedaços que sobraram. Não tanto para que nada se desperdice, mas como uma alusão à eucaristia. “Eles recolheram-nos e encheram doze cestos”, tantos quantas as doze tribos de Israel, como as horas do dia e os meses do ano.
Dois pontos de reflexão
1) Converter-se a uma visão global, integral do Reino. Notamos, antes de tudo, que Jesus se preocupa não apenas com a fome espiritual das pessoas, mas também com a fome física. Não podemos ignorar que, além da fome da Palavra, há também uma fome dramática de pão no mundo. O Reino de Deus diz respeito à totalidade da pessoa. No entanto, em nossa mentalidade persiste uma visão dualista da vida, uma separação entre a esfera espiritual e a material. “As pessoas vão à igreja para rezar; para comer, cada um volta para sua casa e se arranja!”: esta é a nossa lógica, muito prática! E era a dos apóstolos, como vemos na versão do relato do evangelho de Lucas, onde eles dizem a Jesus: “Está a ficar tarde, manda a multidão embora para que vá às aldeias e campos ao redor para encontrar hospedagem e comida”. Jesus, no entanto, parece carecer de senso prático e responde-lhes: “Vocês mesmos deem-lhes de comer” (Lucas 9,12-13). A Igreja não pode alienar-se das condições em que a humanidade vive, “caída nas mãos dos ladrões”!
2) Da economia do comércio para a do dom. “Onde poderemos comprar pão para que estes tenham de comer? Ele disse isso [Jesus a Filipe] para testá-lo”. Por que ele pergunta justamente a Filipe? Porque é um tipo prático e esperto (veja Jo 1,46; 14,8-9). De facto, ele faz as contas rapidamente: “Duzentos denários de pão não seriam suficientes para que cada um recebesse um pedaço!” Duzentos denários era muito, considerando que um denário era o salário diário de um trabalhador. Neste ponto, intervém André, seu amigo e conterrâneo, já que Jesus havia perguntado “onde” se podia encontrar pão: “Aqui está um rapaz que tem [para vender?] cinco pães de cevada e dois peixes”, mas percebendo o absurdo, acrescenta rapidamente: “mas o que é isso para tanta gente?”. Mas 5+2 dá 7, o número da plenitude. Para Jesus é mais do que suficiente. E o milagre acontece!
Hoje em dia, vemos poucos milagres deste tipo. Como Gideão, poderíamos perguntar-nos: “Onde estão todas as suas maravilhas que nossos pais nos contaram?” (Juízes 6,13). Mas se hoje não ocorrem “milagres”, não é porque “o braço do Senhor se encolheu” (Isaías 59,1). Ele gostaria de realizar muitos milagres: o milagre de acabar com a fome no mundo, de fazer desaparecer as guerras que matam seus filhos e filhas e desfiguram a sua criação, de instaurar definitivamente um mundo novo onde reina a paz e a justiça... No entanto, há um problema. Deus, depois de criar o homem, decidiu não fazer mais nada sem a cooperação dos homens. O Senhor gostaria de realizar milagres, mas faltam-lhe os ingredientes que só nós podemos oferecer. Faltam-lhe os cinco pães de cevada e os dois peixes, que insistimos em querer vender, em vez de compartilhá-los.
Para a reflexão semanal
1) Quais são os “cinco pães de cevada e os dois peixes” que o Senhor me está a pedir para mudar minha vida?
2) Que lógica predomina na minha vida: a do acúmulo ou a da solidariedade?
3) Para meditar:
- “Se compartilhamos o pão do céu, como não compartilharemos o da terra?” (Didaqué);
- “O pão do necessitado é a vida dos pobres, quem o priva dele é um assassino. Mata o próximo quem lhe tira o sustento, derrama sangue quem nega o salário ao trabalhador.” (Sirácide 34,25-27);
- “No mundo há pão suficiente para a fome de todos, mas insuficiente para a ganância de poucos” (Gandhi).
Pe. Manuel João Pereira Correia MCCJ
Verona, Julho de 2024
O sinal da multiplicação dos pães
João 6,1-15
Comentário de Enzo Bianchi
Na verdade, esse capítulo, todo centrado no tema do “pão da vida”, que nunca aparece em outro lugar, parece bastante isolado no desenvolvimento do relato joanino. Com toda a probabilidade, trata-se de um trecho acrescentado mais tarde para dar à Igreja joanina uma catequese sobre a eucaristia, já que o relato da sua instituição falta no quarto evangelho, sendo substituído pelo do lava-pés (cf. Jo 13, 1-17).
Esse capítulo, em todo o caso, é decisivamente importante no quarto evangelho, porque, justamente através da compreensão eucarística, Pedro e os outros discípulos chegam à confissão da identidade de Jesus: para os judeus, ele é o filho de José, simplesmente um homem da Galileia (cf. Jo 6, 42), enquanto Jesus declara ser o Filho de Deus, aquele que é e que desceu do céu como enviado do Pai (cf. Jo 6, 57); a verdadeira identidade de Jesus é proclamada com a confissão de Pedro, que reconhece nele “o Santo de Deus” (Jo 6, 69).
Os evangelhos nos dão nada menos do que seis testemunhos da multiplicação dos pães, porque Mateus e Marcos conservaram duas tradições daquele “prodígio”, recebido pela Igreja como profético do dom do pão eucarístico dado por Jesus aos seus discípulos na noite da sua paixão. O quarto evangelho, de modo ainda mais explícito, narra-o como “sinal” (semeîon) que anuncia o dom do corpo e do sangue, da vida inteira de Jesus.
Jesus se encontra na Galileia, no Lago de Tiberíades, quando decide atravessar a ampla baía para chegar à outra margem, sempre no lado ocidental do lago, talvez para procurar um lugar de descanso e de oração. Mas “uma grande multidão” o segue, e logo o evangelista nos indica a razão: Jesus fez muitos sinais sobre os doentes, a sua ação e a sua pregação despertam assombro e curiosidade.
Portanto, essa parece ser uma hora de sucesso para ele, que escolhe subir ao monte, como Moisés havia feito por ocasião da celebração da aliança entre Deus e o seu povo. Também é explicitada uma informação temporal: “Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus”. Portanto, era uma hora vigilar (como a hora da instituição eucarística), e, de fato, o sinal que Jesus agirá, será o sinal da Páscoa cristã por excelência. Sentado no alto, Jesus tem diante dele a grande multidão, que observa erguendo os olhos: é uma multidão à espera! E eis que, livre e gratuitamente, ele toma a iniciativa de dar um sinal, de fazer um gesto que narre o amor de Deus, que ama tanto a humanidade a ponto de lhe dar o seu Filho como dom (cf. Jo 3, 16).
Ele chama a si um discípulo, Filipe e lhe pergunta: “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?”. Na realidade, Jesus sabe o que está prestes a fazer, porque sua intenção é fruto da sua comunhão com os pensamentos de Deus, a quem ele chama de “Pai”. Filipe, por sua vez, faz cálculos para determinar a despesa da compra do pão para tantas pessoas, e André ressalta que os cinco pães de cevada e os dois peixes que um menino trouxe com ele seriam absolutamente insuficientes.
Então, Jesus, com sua soberania, pede que os discípulos acomodem a multidão naquele gramado verde que recorda as pastagens onde Deus, o Pastor, conduz as suas ovelhas (cf. Sl 23, 2), para que tenham comida abundante. Depois, diante de todos, faz o gesto: “Tomou os pães, deu graças (eucharistésas) e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes”. Eis o sinal dado e os gestos que preanunciam os da instituição eucarística na última ceia:
Jesus toma o pão em suas mãos
dá graças a Deus (ou o abençoa, de acordo com Marcos e Mateus),
parte-o
e o dá, distribui-o aos discípulos.
É ele, o Cristo Senhor, que dá, distribui (dédoken) aquele pão que sacia cinco mil pessoas, aqueles cinco pães que, compartilhados, conseguem saciar a todos. E precisamente em virtude dessa ação totalmente decidida e feita por ele mesmo, ele poderá dizer: “O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo” (Jo 6, 51). Assim, Jesus aparece como o Profeta escatológico, bem mais do que Eliseu, que havia multiplicado os pães de cevada (cf. 2Re 4, 42-44), porque não socorre apenas a fome, a necessidade humana de comer para viver, mas faz o dom do seu corpo, amando os seus até o fim (cf. Jo 13, 1).
O pão, que é uma necessidade para o ser humano, para a sua necessidade de viver, é também aquilo que Deus dá a cada criatura (cf. Sl 136, 25). No gesto de Jesus, portanto, há o fato de ir ao encontro da necessidade humana, mas também a narração do amor de Deus, amor gratuito e superabundante, excessivo, que não pede contrapartida, mas apenas acolhida e agradecimento.
A injunção de Jesus – “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca” – tem um significado particular: não manifesta apenas a abundância do pão compartilhado, mas significa que sempre, na comunidade do Senhor, haverá o pão eucarístico, que deverá ser conservado com cuidado e solicitude.
O relato desse sinal, porém, se resolve em um mal-entendido. Através desse sinal, Jesus quis revelar algo da sua identidade e da sua inserção na história da salvação: ele é o Profeta, é o Messias, é aquele que renova e transcende em uma inédita plenitude os sinais operados pelo próprio Deus no êxodo, mas as pessoas que chegam a essa compreensão de Jesus tiram consequências que ele rejeita, até se isentar e fugir para a solidão.
De fato, posta diante desse sinal profético e desse prodígio da multiplicação do pão compartilhado, a multidão pensa que chegou a hora de proclamar Jesus como Rei dos Judeus e de celebrar a sua glória. Equívoco, mal-entendido que revela também que a aquisição do conhecimento de Jesus pode ser desviante e trair a sua verdadeira identidade e a autêntica intenção dos seus gestos.
Perceber Jesus como rei do modo dos reis, dos poderosos deste mundo, seria negar a missão que ele recebeu do Pai e consentir com as intenções do Príncipe deste mundo, Satanás. Jesus é o Rei dos Judeus e assim será proclamado na cruz pelo título que Pilatos fará erguer sobre a sua cabeça (cf. Jo 19, 19); mas é um Rei crucificado, na fraqueza do homem das dores, vítima do ódio do mundo, solidário com os perseguidos, os oprimidos, os pobres, os descartados da história. A numerosa multidão, portanto, desconhece aquele Jesus a quem seguiu, porque o interpreta e o quer de acordo com os próprios desejos e as próprias projeções, não estando disposta a aceitar um Profeta e Messias conforme ao desígnio de Deus.
É significativo que João anota que “estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei”, isto é, queriam reduzi-la a um objeto, a um ídolo moldado pelos seus desejos, queriam um Messias com um programa mundano. Mas Jesus recusa, porque sabe que esse poder que querem lhe dar não é o verdadeiro poder que lhe foi conferido pelo Pai.
Assim como ele havia fugido das tentações de poder no deserto (cf. Mc 1, 12-13; Mt 4, 1-11; Lc 4, 1-13), assim também agora ele se retira na solidão da montanha, fugindo da multidão que o aclama, discernindo a ilusão de um aparente sucesso, que não pode nem desejar nem aceitar. Subindo naquele monte, sozinho, deixando até os discípulos no vale, Jesus medita sobre aquela incompreensão e se confia novamente ao Pai, confiando-lhe também aquela multidão e aqueles discípulos que não haviam entendido nem o seu gesto nem a sua intenção.
Mas a sequência do relato, que escutaremos nos próximos domingos, nos revelará, através de um longo discurso de Jesus, que aquele que deu o pão em abundância, na verdade, é ele mesmo o pão dado por Deus à humanidade para a plenitude da sua vida.
Enzo Bianchi