A solenidade do Corpo e Sangue de Cristo parece quase um duplicado da Quinta-feira Santa. E de fato, de certo modo, é. Na Quinta-feira Santa, a Igreja não pôde expressar toda a sua alegria e gratidão pelo supremo dom da Eucaristia, dado o contexto de tristeza da paixão. Este é um dia consagrado ao louvor, ao agradecimento, à contemplação e à reflexão sobre este grande dom que Jesus deixou à sua Igreja.
Cada cristão é uma eucaristia viva enviada ao mundo
“Este é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens”
Marcos 14,12-16.22-26
Sessenta dias após a Páscoa, na quinta-feira após a Santíssima Trindade, a Igreja celebra a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Missal de Paulo VI), também conhecida como a festa do Corpus Domini (Missal de Pio V). É uma das três quintas-feiras mais solenes do ano litúrgico: Quinta-feira Santa, quinta-feira da Ascensão e quinta-feira do Corpus Domini. Por razões pastorais, em muitos países o Corpus Christi é transferido para o domingo após a Santíssima Trindade. Embora já tenhamos concluído o tempo Pascal, essa referência cronológica estabelece um vínculo dessa festa com a Páscoa, além de com a solenidade da Santíssima Trindade.
As origens desta festividade remontam ao século XIII. Nascida na Bélgica, foi estendida a toda a Igreja pelo Papa Urbano IV em 1264, impulsionado também pelos milagres eucarísticos de Bolsena e de Lanciano. Com esses sinais prodigiosos, o Senhor quis consolidar a fé da Igreja na Sua presença real no sacramento da santa Eucaristia, em tempos em que alguns a colocavam em dúvida. Os milagres eucarísticos são muitos (136 reconhecidos) e alguns deles bastante recentes (veja os que ocorreram em Buenos Aires com o então bispo Bergoglio). O beato Carlo Acutis, um adolescente que morreu aos 15 anos (1991-2006) e que será canonizado em breve, foi um entusiasta divulgador. Era um grande amante da Eucaristia, que ele chamava de “a autoestrada para o céu”.
A solenidade do Corpo e Sangue de Cristo parece quase um duplicado da Quinta-feira Santa. E de fato, de certo modo, é. Na Quinta-feira Santa, a Igreja não pôde expressar toda a sua alegria e gratidão pelo supremo dom da Eucaristia, dado o contexto de tristeza da paixão. Este é um dia consagrado ao louvor, ao agradecimento, à contemplação e à reflexão sobre este grande dom que Jesus deixou à sua Igreja.
Sacrifícios e sangue!
A primeira coisa que chama nossa atenção ao ouvir os textos bíblicos que a Igreja nos propõe hoje são as inúmeras referências aos SACRIFÍCIOS e ao SANGUE, presentes nas quatro leituras (incluindo o salmo). A associação dessas realidades com a Eucaristia não nos é familiar e pode até chocar a nossa sensibilidade. Trata-se de uma concepção de relação com Deus muito distante da nossa cultura. As advertências dos Profetas avançaram em um caminho de purificação dessa religiosidade dos sacrifícios. “Quero o amor e não o sacrifício, o conhecimento de Deus mais do que os holocaustos.” (Oseias 6,6). Jesus avança com essa denúncia profética. Aos fariseus que o criticam por comer com publicanos e pecadores, Jesus replica: “Ide aprender o que significa: Misericórdia quero e não sacrifícios.” (Mateus 9,13).
Encontramos frequentemente no Novo Testamento a apresentação da morte de Jesus como o sacrifício perfeito que redimiu a humanidade (ver Hebreus 9,11-15, segunda leitura). Eram as categorias bíblicas mais adequadas para proclamar a absoluta singularidade da morte de Jesus. O problema surge quando esse “sacrifício” de Jesus é visto como uma exigência da justiça divina. Tal afirmação, tomada ao pé da letra, seria chocante e distorceria a imagem de Deus, apresentando-o como um juiz que exige a paridade de contas entre ofensa e reparação. De que tipo de Deus Pai estamos falando? Infelizmente, essa mentalidade ainda persiste.
Então, a morte de Jesus não é um sacrifício? Por que se fala do “santo sacrifício da Missa”? Na apresentação do Sacramento da Eucaristia, o Catecismo da Igreja Católica menciona 140 vezes Eucaristia/eucarístico/a, mas encontramos quase setenta vezes a associação com sacrifício! A Eucaristia é um sacrifício, sim, mas de outra ordem. É um gesto extremo de amor, do “maior amor” (João 15,13). Não podemos, entretanto, esquecer a dimensão do “sacrifício”. O amor é dado gratuitamente, mas o amor custa, e como! Que o digam os esposos ou as mães! Como dizia Bonhoeffer, a graça de Deus é “uma graça a caro preço”, não uma mercadoria barata.
O “sacrifício” da Eucaristia não envolve apenas Cristo, mas cada um de nós. Aquele pão nas mãos de Jesus não é apenas o seu corpo, a sua vida, mas também a nossa. A Eucaristia não é um rito, mas um caminho de vida. Quando Jesus diz: “Fazei isto em memória de mim”, não se refere à repetição de um rito, mas à emulação do seu gesto. Tu és aquele pão em suas mãos, é a tua existência que ele abençoa, é a tua vida que ele parte e oferece a todos aqueles que és chamado/a a nutrir e amar. Cada cristão é uma eucaristia viva enviada ao mundo. Cada nosso gesto e momento de vida deveria repetir: “A minha vida foi dada a vocês”. Cada vez que celebramos a Eucaristia deveríamos voltar para casa “por outro caminho”, como os magos.
A nova e eterna Aliança
Uma segunda palavra que emerge das leituras é ALIANÇA: “Eis o sangue da aliança que o Senhor fez convosco, conforme todas estas palavras.” (Êxodo 24,3-8, primeira leitura); “Ele [Cristo] é o mediador de uma nova aliança”, em oposição à “primeira aliança” (Hebreus 9,11-15, segunda leitura); “Este é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens.” (evangelho). A aliança é um tema central nas Escrituras, especialmente no Antigo Testamento, onde encontramos 287 vezes o termo hebraico “berît” (G. Ravasi).
A ideia de aliança é mais familiar para nós. A mais comum é a aliança matrimonial. A Eucaristia é a celebração da aliança de Deus com a humanidade. É o matrimônio de Cristo com a sua Igreja. Esta aliança é definida como “nova” (Marcos, Lucas, Paulo e Carta aos Hebreus) e como “uma aliança eterna” (Hebreus 13,20), portanto definitiva. O sangue dos sacrifícios selaram a primeira aliança no monte Sinai, com a mediação de Moisés. A nova e eterna aliança é selada pelo sangue de Cristo na cruz. Trata-se do cumprimento da profecia de Jeremias que anunciava “uma nova aliança” (31,31; ver também Ezequiel 11,19).
Hoje constatamos que, infelizmente, a Eucaristia, o selo da Aliança, está “em crise” no ocidente. A maioria dos chamados fiéis a ignora, nossas comunidades eucarísticas muitas vezes parecem frias, desmotivadas e indiferentes… Fala-se de “missa desbotada” (sociólogo Luca Diotallevi)… Como estamos longe da experiência dos mártires de Abitene (Tunísia, 304 d.C.) que, interrogados por terem desobedecido à ordem do imperador que proibia a reunião dos cristãos, responderam: “Sem a Eucaristia não podemos viver”! Se celebramos a Eucaristia com plena consciência, não podemos permanecer indiferentes a tanto amor. Nos virá espontaneamente exclamarmos como São Paulo: “Esta vida, que eu vivo no corpo, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim.” (Gálatas 2,20).
Da manjedoura de Belém à mesa da Eucaristia
Toda a vida de Jesus revela sua vontade de permanecer para sempre entre nós. Isso, porém, nos é difícil de acreditar. Também somos como os israelitas no deserto: “O Senhor está no meio de nós, sim ou não?” (Êxodo 17,7). Toda a Sagrada Escritura é uma contínua, paciente e amorosa declaração de Deus ao nosso coração: “Não temas, eu estou contigo!”.
Esta palavra torna-se visível e audível com a encarnação. O evangelho de Mateus começa anunciando a vinda de Jesus como o Emanuel (“Deus conosco”) e conclui com a afirmação de Jesus ressuscitado: “Eu estarei sempre convosco”. Marcos o introduz com o batismo no Jordão, solidário com seus irmãos, e o segue até a cruz compartilhada com os malfeitores. Lucas narra seu nascimento em Belém (“casa do pão”) e diz que Maria “o colocou em uma manjedoura” (Lucas 2,7) e, ressuscitado, ele se faz reconhecer ao partir o pão (24,35). João diz: “E o Verbo se fez carne e habitou [armou sua tenda] entre nós” (1,14); “Se alguém me ama, guardará minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele e faremos nele morada” (14,23). Esta vontade do Senhor o leva a se tornar um peregrino para bater à porta do coração de cada um/a de nós: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Apocalipse 3,20). Este é o profundo mensagem da Eucaristia!
A Eucaristia, um dom em crescimento
A Eucaristia é um dom sempre em crescimento, uma herança que continua a gerar novas riquezas, a árvore da vida do paraíso que, em sua exuberante fecundidade, produz frutos em todo tempo e estação, em resposta às necessidades específicas de cada época. Quais são as necessidades do nosso tempo? Penso principalmente em quatro.
O Pão da simplicidade. Nosso mundo abunda em oferta de pão substituto que parece “bom para comer, agradável aos olhos e desejável para adquirir sabedoria” (Gênesis 3,6), mas que não sacia. O Senhor nos pergunta: “Por que gastais dinheiro naquilo que não é pão, e o vosso suor naquilo que não satisfaz?”. O Pão eucarístico, o Pão vivo e verdadeiro, o único Pão necessário, é um apelo à essencialidade, à simplicidade e à sobriedade em nosso estilo de vida.
O Pão da intimidade. Num mundo globalizado, onde as diferenças se sentem ameaçadas, numa sociedade massificante, onde predomina o anonimato, numa cultura padronizada, onde cresce a incomunicabilidade, a Eucaristia é o Pão da intimidade, da familiaridade, dos laços de amizade, da acolhida e da comunicação fraterna. Participando da mesa eucarística, somos introduzidos na intimidade da Trindade, nos sentimos verdadeiramente pessoas amadas, compreendidas, consoladas, encorajadas, e somos reconciliados com nossa vida, nossa história, com o mundo e a humanidade.
O Pão da solidariedade. O “nosso pão” hoje, ou seja, os recursos da terra, cria divisões e marginalização, desigualdades e injustiça. O “nosso pão” hoje gera guerras e destruição, egoísmos e indiferença. O “nosso pão” hoje traz morte, goteja sangue dos pobres, cheira a apodrecimento de uma natureza pisoteada e explorada. O “pão nosso de cada dia” que juntos pedimos ao Pai é, ao contrário, o pão da solidariedade que traz vida e dignidade para todos. É o pão da paz e da justiça que suscita esperança em todo lugar. O Pão eucarístico evoca o pão da solidariedade, porque, como diz a Didaché (do I-II século, uma espécie de catecismo dos primeiros cristãos): “Se compartilhamos entre nós o pão celestial, como não compartilharemos o pão terreno?”.
O Pão do futuro. No mundo de hoje, assolado por guerras e injustiças, dividido em blocos opostos, ameaçado pela crise climática e pelo pesadelo de uma guerra nuclear…, o pessimismo em relação ao futuro cresce e a esperança em um mundo melhor diminui. Todos os dias pedimos ao Pai: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. São Jerônimo afirmava, ao invés disso, que deveríamos traduzir: “Dá-nos hoje o nosso pão do amanhã”, ou seja, o do futuro. A Eucaristia é o Pão do futuro, o do Reino de Deus. Diz Jesus no evangelho de hoje: “Em verdade vos digo que não beberei mais do fruto da videira, até aquele dia em que o beberei novo no Reino de Deus”. A Eucaristia é o vinho novo da alegria do Reino, dos “novos céus e nova terra”, objeto de nossa esperança!
Exercício espiritual para a semana
1. Antes de receber a comunhão, olhe com sorpresa e admiração o Pão depositado em sua mão e pergunte a si mesmo, como os israelitas com o dom do maná: Man hu? O que é? E o Senhor responderá: É o meu corpo!
2. Louve e agradeça ao Senhor pelo dom da Eucaristia com este hino conclusivo da Páscoa judaica:
“Mesmo que nossa boca estivesse cheia de hinos como o mar está cheio de água, nossa língua de cânticos como são numerosas as ondas, nossos lábios de louvores como é vasto o firmamento, nossos olhos brilhantes como o sol e a lua, nossos braços estendidos como as asas das águias do céu, e nossos pés velozes como os dos cervos, não poderíamos te agradecer, ó Senhor nosso Deus, e bendizer o teu Nome, ó nosso Rei, por um só dos mil milhares e miríades de benefícios, de prodígios e de maravilhas que tu realizaste por nós e por nossos pais ao longo da história… Portanto, os membros que tu distribuíste em nós, o fôlego e o ar que soprastes em nós, a língua que colocaste em nossa boca, agradeçam, bendigam, louvem, exaltem, cantem o teu nome, ó nosso rei, para sempre…”
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Verona, Junho de 2024