O Evangelho deste domingo apresenta-nos as Bem-aventuranças na versão de São Lucas. O texto se estrutura em quatro bem-aventuranças e quatro advertências, marcadas por quatro "bem-aventurados" e quatro "ai de vós". Jesus declara bem-aventurados os pobres, os famintos, os aflitos e os perseguidos; e adverte os ricos, os saciados, os que riem e os que são aclamados pelo povo. [...]
Onde afundam as nossas raízes?
"Bem-aventurados vós, pobres... Mas ai de vós, ricos!"
Lucas 6, 17.20-26
O Evangelho de hoje apresenta-nos as Bem-aventuranças na versão de São Lucas. O texto se estrutura em quatro bem-aventuranças e quatro advertências, marcadas por quatro "bem-aventurados" e quatro "ai de vós". Jesus declara bem-aventurados os pobres, os famintos, os aflitos e os perseguidos; e adverte os ricos, os saciados, os que riem e os que são aclamados pelo povo.
Se por um lado essas palavras de Jesus nos fascinam, por outro, nos causam certo desconforto, pois apresentam parâmetros que chocam profundamente com a mentalidade corrente. Quem pode realmente dizer-se pobre e faminto? Talvez aflito e perseguido, às vezes. São Mateus de certa maneira as "espiritualiza": "Bem-aventurados os pobres em espírito", "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça"… Já São Lucas as "materializa" sem concessões.
O nosso espírito intui a verdade e a beleza dessa nova visão de vida, encarnada na própria pessoa de Jesus, mas a mente logo começa a relativizá-la, considerando-a irrealista, enquanto o inconsciente tenta suprimi-la o mais rápido possível. De fato, é uma graça deixar-se interpelar por esta palavra. Pois é grande a tentação de dizer, como em outra passagem: "Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la?" (João 6,60).
Nesta palavra, como em tantas outras do Evangelho, acontece o que disse o profeta Jeremias: "Minha palavra não é, talvez, como o fogo – oráculo do Senhor – e como um martelo que despedaça a rocha?" (23,29). Noutro trecho, ele afirma que a palavra, dentro das entranhas, causa uma grande dor de estômago (4,29). Qual melhor desejo, então, senão o de sair da celebração dominical com "uma grande dor de barriga"? Seria um sinal de que estamos no caminho certo. A alternativa, afinal, é ir embora tristes, como o jovem rico! Ouvir esta palavra cura-nos e salva-nos do perigo de levar uma vida sem sentido.
O contexto deste Evangelho
São Lucas diz-nos que Jesus se retirou para o monte, sozinho, e passou a noite inteira em oração. Jesus é o Mestre da oração porque ensina a partir da sua própria experiência. O evangelista destaca que Jesus sempre rezava antes das grandes decisões. O relato continua dizendo que, pela manhã, Jesus chamou a si todos os seus discípulos e escolheu doze, a quem chamou apóstolos (Lc 6,12-13).
Depois, Jesus desce com seus discípulos e para num lugar plano. Enquanto em São Mateus Jesus faz o seu discurso no monte, símbolo da proximidade com Deus, São Lucas situa-o na planície, símbolo da proximidade com as pessoas, onde pode ser facilmente alcançado por todos. De fato, "havia uma grande multidão de seus discípulos e uma imensa multidão de gente", vinda de todas as partes "para ouvi-lo e serem curados de suas doenças". Toda a multidão tentava tocá-lo, "porque dele saía uma força que curava a todos" (Lc 6,17-19).
Nesta vasta cena humana, Jesus, levantando os olhos para os discípulos, proclama as bem-aventuranças. O Senhor ergue o olhar porque fala de baixo. Deus é humilde e não se posiciona acima de nós.
Algumas observações
Bem-aventurados vós, pobres, porque vosso é o Reino de Deus.
Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados.
Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque rireis.
Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem... por causa do Filho do Homem.
Notamos que:
De forma simétrica, Jesus apresenta quatro advertências, os quatro "ai de vós":
Mas ai de vós, ricos, porque já recebestes a vossa consolação.
Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome.
Ai de vós, que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis.
Ai de vós, quando todos os homens falarem bem de vós...
Notamos que:
Para reflexão pessoal
As bem-aventuranças são o caminho proposto por Jesus para a felicidade, para ter uma existência bela, fecunda e significativa. O profeta Jeremias compara a felicidade a uma árvore sempre verde e frutífera, cujas raízes se estendem em direção ao rio. Em contraste, uma vida não enraizada em Deus é como o tamarisco do deserto que "não verá o bem chegar, habitará em lugares áridos no deserto, numa terra salgada, onde ninguém pode viver". Tudo depende, portanto, de onde afundamos nossas raízes. Onde afundam as minhas?
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
A felicidade escondida nas bem-aventuranças
Lucas 6,17.20-26
“E, levantando os olhos para os seus discípulos, disse: ‘bem-aventurados vós…” (Lc 6,20)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 6° Domingo do Tempo Comum – Ciclo C, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 6,17.20-26.
“Ser feliz”: não há outra meta mais importante na vida de todos nós. De fato, é tão importante que se converteu em um desejo que repetimos de maneira muito frequente e, de forma especial, para as pessoas que mais amamos. Proferimos os votos de felicidade em qualquer evento, em todos os aniversários, no início de cada ano… Não podemos desprezar o excesso de nossas felicitações, por mais rotineiras que nos pareçam. Elas expressam um desejo profundo, talvez o desejo mais íntimo de nós mesmos.
“Que sejas feliz!” Que melhor sentimento que isso podemos desejar a alguém, seja ele(ela) quem for?
A proposta evangélica de felicidade tem algo a nos dizer em nosso momento atual?
A impressão que temos é que a vivência de muitos cristãos está longe de apresentar a Deus como amigo da felicidade humana, fonte de vida, alegria, saúde; na experiência de fé de muitas pessoas, o seguimento de Jesus, muitas vezes, não se associa com a ideia de “felicidade”. Predomina, em certos ambientes ou grupos cristãos, uma doutrina dolorida e uma catequese afastada da busca humana da felicidade. O cristianismo se apresentou, durante muito tempo, como a religião da cruz, da dor, do sofrimento, da renúncia, da repressão ao prazer e à felicidade neste mundo.
Diante de tal situação, Jesus, no Evangelho de hoje, afirma categoricamente: “Felizes sois vós!”
Jesus, ao “descer à planície”, promulga seu programa “com” vida, fundado não numa ética de “deveres e obrigações”, mas numa ética de “felicidade e ventura”.
Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Sem sombra de dúvida, o significado das bem-aventuranças e, portanto, do programa de Jesus, é algo mais humano, mais próximo e mais ao alcance de ser entendido e vivido por qualquer pessoa de boa vontade.
O Evangelho, a “boa notícia”, é o tesouro que enche o ser humano de uma felicidade indescritível. Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é que o programa de Jesus para os seus é um “programa de felicidade”. Cada afirmação de Jesus começa com a palavra “makárioi”, “ditosos”. Essa palavra, significa, em grego, a condição de quem está livre de preocupações e atribulações cotidianas.
As bem-aventuranças substituem os mandamentos que proíbem por um anúncio que atrai para a felicidade. E a promessa de felicidade não é para depois da morte. Jesus fala da felicidade nesta vida.
Conhecemos duas listas de Bem-aventuranças: a de Lucas e a de Mateus. São bastante distintas, porque uma fala dos pobres e a outra fala dos pobres “em espírito”; uma fala de fome e outra de fome de “justiça”… Costuma-se dizer que as Bem-aventuranças de Lucas são bem-aventuranças “de situação”, e as de Mateus são “de atitude”. Ou seja, enquanto Lucas diz: os que se encontram assim, os que estão nesta situação, são bem-aventurados (os que estão chorando, os que tem fome, os que são pobres…), Mateus diz: os que reagem desta maneira diante dos que choram, dos que são pobres, dos que tem fome… são bem-aventurados. É como a atitude que se toma frente aqueles que Lucas descreveu.
Antes de proclamá-las, Jesus vive intensamente as bem-aventuranças; elas são a expressão daquilo que é mais humano no seu interior; elas são seu auto-retrato. Jesus é o bem-aventurado. Ele personaliza tais atitudes: é o pobre, aquele que se comoveu diante da dor e misérias humanas, que expressa uma fome e sede de plenitude e humanização, que é incompreendido e perseguido por causa dos seus sonhos.
O Jesus que os Evangelhos nos apresentam deixa transparecer, permanentemente, um sentimento sereno e agradecido diante da vida. Ele vive apaixonado pelo Reino do Pai; Ele é um homem aberto e próximo das pessoas, com uma enorme capacidade de relação, de maneira especial diante dos mais pobres e excluídos. Mostra uma infinita confiança nas pessoas que encontra, seja qual for sua situação existencial. Ele é o portador definitivo de boas notícias. O evangelho da salvação chega até às barreiras e fronteiras humanas. Seu tempo é tempo de alegria; é a festa das bodas. Jesus nos convida a entrar na nova vida de felicidade e fraternidade. As bem-aventuranças são o caminho da felicidade.
Jesus, ao proclamar “bem-aventurados” os pobres, os famintos, os que choram, os que são perseguidos… jamais quis sacralizar a dor humana. Ao contrário, são bem-aventurados, sim, os pobres, porque, vazios de apegos e cheios de esperança, anunciam o sonho de Deus para a humanidade, uma nova sociedade baseada na solidariedade e na partilha; são bem-aventurados, sim, os famintos, porque trazem nas entranhas a fome de liberdade e sabem que o ser humano e o mundo carregam infinitas possibilidades de crescimento; são bem-aventurados, sim, os que choram porque suas lágrimas demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são verdadeiramente os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um mundo novo; são bem-aventurados, sim, os que são perseguidos porque seguem corajosamente a estrela do Reino e são sinal de grande transformação realizada por Deus.
As bem-aventuranças nos revelam que somos habitados por um impulso que nos torna “buscadores de felicidade”. A sociedade de consumo que invadiu tudo, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja… e de novo empreendemos nossa busca. Assim, pois, a felicidade nos escapa quando a buscamos “fora”, como fim em si mesma, para saciar nosso ego insaciável.
A felicidade nasce dentro de nós: daquilo que sentimos, que valorizamos, que vivemos…
Por isso, as bem-aventuranças não são algo externo, mas atitudes que plenificam nossos corações.
A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser.
Ser o que somos, em serenidade e profundo sentido. A felicidade, tal como a verdade e a beleza, ao se revelar a nós, desata a potencialidade daquilo que somos e de tudo o que é.
Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; felicidade é viver sem chegada, sem partida; é experimentar uma sensação de renascimento de satisfação interior… ou sentir des-pertar em si um potencial de bondade, de compaixão, de solidariedade…muitas vezes desconhecida.
A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir, cada dia, que a vida se inicia novamente em cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura… Por isso, a felicidade está relacionada com a gratuidade e com a gratidão.
Para meditar na oração
– “empalavrar” (pôr em palavras) as bem-aventuranças que brotam do seu coração, aquelas que lhe inspiram e dão sentido à sua existência, como seguidor(a) de Jesus.
http://www.ihu.unisinos.br