É a festa do batismo de Jesus, da sua imersão por João no rio Jordão: o primeiro ato de Jesus como homem maduro, a sua primeira aparição pública. Todos os Evangelhos recordam esse evento, posto no início do ministério de Jesus, e cada um o narra a seu modo: tentemos, portanto, compreender e explicitar as peculiaridades do relato de Lucas. (...)

Somos filhos amados

Lucas 3,15-16.21-22

Queridos irmãs e irmãos,
Nesta cena do Batismo, que este ano nós lemos na narrativa do evangelista S. Lucas, o cenário é muito importante. Porque João Batista, de forma deliberada, quis construir um lugar simbólico. Então, possivelmente, ele que era ligado à dinastia sacerdotal (o seu pai segundo o próprio S. Lucas nos conta, Zacarias, era um sacerdote do templo), ele que vinha dessa linhagem dinástica, afastou-se de Jerusalém e foi para as margens do rio Jordão.

O rio Jordão não é um lugar inocente para João escolher, porque o Povo de Deus entrou naquela terra pelo rio Jordão. O rio Jordão foi a porta de entrada daquela terra. Quer dizer, foi o momento zero daquela história. Antes de tudo, de tudo o que se construiu, de tudo o que se fez, antes mesmo da cidade de Jerusalém e do Templo e de toda a máquina sacerdotal, o rio Jordão, aquele humilde rio, ali naquela planície sem tamanho, aquele humilde fio de água foi o lugar por onde o Povo de Deus passou para entrar na terra prometida.

Então o quilómetro zero é a possibilidade de dizer assim: “Vamos rebobinar o filme, vamos passar a história para trás, vamos começar de novo.” E, no fundo, a proposta de João Batista, que encontrava um eco nas aspirações disseminadas no Povo de Israel naquela época, era a construção de uma alternativa. No fundo Israel estava sobre o domínio Romano, não havia grande esperança de uma libertação e de uma vivência autêntica da própria palavra. Havia um messianismo, uma expetativa messiânica difusa e João sentiu-se chamado a construir uma alternativa.

Nós hoje conhecemos vários movimentos batistas e conhecemos, na história de Israel deste tempo, várias tentativas para construir uma alternativa ao modelo reinante em Jerusalém. João Batista também era isto, era uma pessoa, um carismático que se sentia chamado a um viver alternativo. Nesse sentido, S. Lucas não nos fala disso na passagem que nós ouvimos mas, quer a dieta de João Batista, ele se alimentar de mel e gafanhotos, quer a sua forma de vestir com uma pele de animal, um cinturão, é de facto alguém que quer comer e vestir de uma forma completamente diferente. Isto é, é alguém que quer instaurar uma rutura simbólica. E este desejo de João Batista é também um desejo partilhado porque muitos vão até ele para serem batizados por ele.

Este é um bocado o clima: há muitas expetativas no ar, há muito desejo de mudança, de construir um caminho diferente, há muitos sonhos. O próprio João Batista, que começa por encabeçar este movimento de rotura, a dada altura ele congrega em torno a si imensas expetativas: “Será ele ou não o Messias?” é a pergunta que abre a leitura do Evangelho que hoje nós lemos. Mas João Batista projeta mais longe a própria expetativa e diz: “há de vir um profeta escatológico. Ele batizará não na água mas no fogo, Ele será o profeta do fim dos tempos.” E também atira mais longe a esperança. É um dos trabalhos do profeta pegar nas expetativas do presente e atirá-las para um futuro maior, para uma escala maior, para uma dimensão mais larga.

E é neste contexto que aparece Jesus. E, sem dúvida, este contexto foi um contexto favorável a Jesus. No sentido de que as expetativas que primeiro se colocaram sobre João Batista foram depois transferidas para Jesus, os discípulos de João Batista foram depois discípulos de Jesus, os sonhos que primeiramente se viveram ali, naquela espécie de rebobinar da história ”voltemos ao princípio, comecemos de novo”, também foram potencializados por Jesus.

Mas o que é que foi decisivo para Jesus? O que é que fez Jesus ao descobrir-se chamado para aquela missão messiânica? Qual foi o seu clique, a sua luz, a sua iluminação? O que é que Lhe deu força para ser? O que é que O confirmou verdadeiramente? E é, no fundo, a pergunta que nós podemos devolver a cada um de nós: O que é que nos confirma? O que é que nos dá força para agir? O que é que nos empurra? O que é que nos motiva para os trabalhos de todos os dias, para as pequenas e grandes decisões de todos da nossa vida? O que é que nos atira mais para a frente?

Se nós formos responder a isto, muitas vezes até são coisas que se revelam infundadas, pensávamos que era uma coisa e depois saiu-nos outra, quisemos usar uma esperança que depois vimos que não era tão esperança quanto isso. Esta reflexão sobre o que é que determina a nossa vida é uma reflexão, eu diria, fundamental, alicerçante daquilo que somos. E aqui importa olhar por os olhos em Jesus. Jesus é mais um nesta fila para se batizar por João Batista, mas naquele momento alguma coisa de fundamental acontece. Os céus abrem-se e Jesus escuta esta voz. Se calhar os que estavam juntos também puderam escutar, mas é claramente uma voz dirigida para Jesus, porque é uma voz que diz “Tu”, por isso é sobretudo para Aquele. E o que é que Jesus ouve? “Tu és o Meu filho muito amado, em Ti coloco o Meu agrado, a Minha complacência, o Meu amor, a Minha estima, o Meu elogio, a Minha esperança, a Minha expetativa, o Meu deleite, é em Ti que Eu coloco o Meu coração. Tu és o Meu filho, é em Ti que Eu coloco o Meu coração.”

É claro que o ambiente de expetativa messiânica que Jesus encontrou foi muito importante para o pregador que Jesus foi, para o profeta, para o taumaturgo, para o anunciador do Reino que Jesus foi. Isso tudo foi o contexto político, o contexto sociológico, o contexto social.

Mas se nós queremos perguntar: Qual é o segredo de Jesus? O que é que o empurrou para aquela vida? O que é que o fez sair de Nazaré para os caminhos da Galileia? O que é que O fez assumir plenamente o Seu destino? Eu não teria dúvidas a dizer que foi esta experiência profunda de que Ele é o Filho, de que Ele é o Filho amado, e que Nele Deus coloca o Seu deleite, o Seu coração, o Seu agrado. No fundamento de toda a vida de Jesus está esta certeza de amor, de ser amado. E uma certeza de que fomos amados é uma força para sempre, é uma fortaleza para sempre.

Isto na vida de Jesus é muito claro desde o princípio. E é interessante que nós ouvimos isto no Batismo de Jesus e depois vamos ouvir no momento da Transfiguração, quando o destino tremendo, exigentíssimo de Jesus, aquele desfecho que é a Cruz se desenhava, ouve-se de novo a voz do céu: “Tu és o Meu filho, em Ti coloquei o Meu coração.”

Queridos irmãos e irmãs, o que é que nós somos aqui? Qual é o sentido de estarmos aqui juntos? Porque é que o Cristianismo se torna razão da nossa vida? Nós não somos apenas simpatizantes, partidários, militantes de Jesus. Nós estamos aqui porque cada um de nós faz aquela experiência que Jesus fez. Nós, como depois dirá S. Paulo, somos feitos filhos no Filho. Em Jesus nós descobrimo-nos filhos amados de Deus, e é essa a experiência fundamental.

É claro que os cenários podem ser uns ou outros, mais favoráveis ou mais desfavoráveis. Mas o fundamental é que cada um de nós sinta, oiça, escute no fundo mais silencioso da sua alma Deus a dizer: “Tu és o Meu filho, tu és a Minha filha, amados, em ti coloco o Meu coração.” Cada um de nós é depositário desse amor, e é a certeza desse amor a alavanca da nossa vida, a força que nos sustem, a porção de espírito necessária par nós podermos ser. Deus derrama o Seu Espírito em Jesus quando derrama o Seu amor. E também em nós. Nós somos recetáculos do Espírito, o Espírito derramado em nós porque esse amor está presente nas nossas vidas.

Por isso, nesse discurso inicial que S. Pedro há de fazer, e que nós proclamamos hoje na leitura do livro dos Atos dos Apóstolos, S. Pedro explica assim o fenómeno Jesus, diz ele: “Ele passou pelo mundo fazendo o bem porque Deus estava com Ele.” E é porque Ele está com Jesus que Jesus é Jesus. Como é porque Deus está connosco, porque nós temos a memória desse amor viva em nós, que nós somos capazes de ser, que nós somos capazes de vencer a noite, vencer a dificuldade, vencer a dúvida, vencer o cerco de tudo aquilo que afunila a vida, de tudo aquilo que nos tira o tapete. Nós ganhamos a força na certeza de que somos filhos, e somos filhos amados.

Nós vemos isso, por exemplo, na história de pessoas que resistem a coisas inimagináveis. Por exemplo, uma pessoa que consegue num campo de concentração não ser completamente aniquilado mas consegue manter a esperança. Qual é o segredo daquela pessoa? Se formos analisar, o seu segredo é uma imagem de amor que a pessoa tem dentro de si, que internalizou, que experimentou e que vai ser a sua força para sempre, para sempre. E não há ameaça nenhuma, não há peso nenhum capaz de esmagar essa experiência fundamental.

Queridos irmãos, que neste Ano Santo da Misericórdia cada um de nós sinta o desafio muito grande de reforçar, de avivar, de iluminar dentro do seu coração a experiência fundante do amor de Deus. Este é o ano para nós ouvirmos a voz do Pai: “Tu és o meu filho, tu és a minha filha muito amada.”

Contrariando em nós tantas barreiras, tanto desamor, acharmo-nos órfãos de Deus, acharmos que Deus não está presente, que Deus no fundo não nos ama, que Ele tem razões para não gostar de nós, ou tem razões para castigar-nos, ou tem razões para voltar-nos as costas. Desmentirmos estas imagens, estes caminhos labirínticos das culpabilidades que não levam a parte alguma e colocarmos no centro da nossa experiência religiosa a experiência do amor, de que somos amados de uma forma incondicional, de uma forma primeira. E que esse amor nos dê forças, nos dê criatividade, nos dê emoção, nos dê alegria, nos dê as competências necessárias para afrontarmos os trabalhos da vida.

É muito belo isto que ouvimos na primeira leitura do profeta Isaías a falar da missão do Messias. No fundo o que é que o Messias vai fazer? O Messias vai como um relojoeiro, como um ourives, vai restaurar os traços pequeninos e frágeis da vida, vai cuidar da vida, e vai dar à vida que está quase a deslaçar-se uma nova oportunidade. Vai amparar, vai proteger, vai avivar, vai confirmar. E é, no fundo, isso que nos é pedido a nós, esse trabalho que a vida nos pede de sermos ourives, miniaturistas a restaurar os pequenos laços quebrados da vida. Nós só vamos ter força para isso se tivermos bem presente em nós a certeza de que somos, como dizia o verso da Sophia de Mello Breyner Andersen, a certeza de que somos “olhados, amados e conhecidos.” Esta certeza que fez a diferença na vida de Jesus é esta certeza que faz a diferença na vida de cada um de nós.

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org

Jesus mergulha no Espírito Santo
Enzo Bianchi

É a festa do batismo de Jesus, da sua imersão por João no rio Jordão: o primeiro ato de Jesus como homem maduro, a sua primeira aparição pública. Todos os Evangelhos recordam esse evento, posto no início do ministério de Jesus, e cada um o narra a seu modo: tentemos, portanto, compreender e explicitar as peculiaridades do relato de Lucas.

João Batista havia anunciado a vinda de Alguém mais forte do que ele, que imergiria (ou seja, batizaria) não nas águas do Jordão, mas no Espírito Santo e no fogo. No entanto, esse Alguém que viria, que é discípulo de João e traz o nome ainda não famoso de Jeshu’a, Jesus, também vai se fazer batizar.

Lucas enfatiza que ele faz isso junto com “todo o povo”, expressão enfática que quer acentuar o grande número de judeus reunidos por aquele que “evangelizava” (Lc 3,18), isto é, que anunciava a boa notícia e que devia “preparar ao Senhor um povo bem disposto” (Lc 1,17).

Solidário com aquele povo, homem como todos os outros, misturado na multidão anônima, na fila entre homens e mulheres, sem nenhuma vontade de distinção dos pecadores, Jesus se faz imergir por João: alguém do povo, com o povo, no meio do povo, em que esse termo certamente indica as pessoas comuns, mas também aquele novo povo que Deus está reunindo para fazer dele o seu povo para sempre.

Jesus inicia a sua vida pública assim: não com uma pregação, não com um milagre, não com uma aparição que pudesse surpreender e maravilhar os presentes, mas com um gesto humano de humildade, de submissão a Deus e de total solidariedade com seus irmãos e irmãs pecadores.

Lucas também quer evidenciar o que acontece com Jesus, aquela que se torna a sua experiência personalíssima naquele evento. Ao contrário dos outros Evangelhos, ele revela que Jesus recebe o batismo enquanto está rezando, enquanto reconhece a presença e o senhorio do seu Deus e Pai. Eis a primeira ação de Jesus na sua vida pública: a oração! E, no Evangelho segundo Lucas, a oração também será a última ação de Jesus na cruz, antes de morrer (cf. Lc 23,46).

O que significa rezar, portanto? Poucas coisas: fazer silêncio, abrir espaço dentro de si para acolher o Espírito de Deus e escutar aquela palavra que Deus dirige pessoalmente ao fiel. Isto e somente isto é a oração cristã: não palavras ditas a Deus, nem repetição de fórmulas, nem exercício de afetos, mas silêncio, predisposição de si mesmo para a acolhida da Palavra e do Espírito de Deus.

Acontece com Jesus aquilo que acontece com a primeira comunidade dos discípulos, depois da sua ressurreição, quando ele permanecerá em oração, abrirá espaço para o Espírito e receberá o dom (cf. Atos 1,4; 2,2-12). Por isso, Jesus, segundo Lucas, falando da oração e do seu cumprimento, especifica: “Se vocês, que são maus, sabem dar coisas boas aos filhos, quanto mais o Pai do céu! Ele dará o Espírito Santo àqueles que o pedirem” (Lc 11,13). A oração cristã é a epiclese do Espírito, e o seu cumprimento é o dom do Espírito.

Jesus, portanto, faz-se imergir por João, mas, acima de tudo, reza, prepara todo o seu ser para se tornar morada do Espírito Santo, que somente Jesus “vê descer” do céu sob a forma de uma pomba para habitar nele. É o sinal do Espírito de Deus que pairava sobre as águas no momento da criação (cf. Gn 1,2), o sinal da Shekinah, a Presença do Deus vivo que, do céu, desce sobre a terra. Os céus se abrem para essa descida do Espírito a partir de Deus, e, com o Espírito, eis ressoar a palavra personalíssima dirigida a Jesus: “Tu! Tu és meu filho!”. Esta é a identidade de Jesus: é o Filho de Deus!

Para explicitar essa proclamação, o Evangelho segundo Lucas cita o Salmo 2: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” (v. 7), de modo que essa voz não é uma revelação para Jesus, que conhecia a sua relação com o Pai (cf. Lc 2,49), mas sim uma entronização messiânica no início da sua missão.

No Evangelho segundo Marcos, a voz que desce do céu (retomada por Mateus e por alguns manuscritos de Lucas) ressoa de modo diferente: “Tu és o meu Filho amado, em ti encontro o meu agrado” (Mc 1,11; Mt 3,17). Além do Salmo 2, ecoa aqui a declaração do Senhor sobre o seu Servo (“Eis o meu servo… nele tenho o meu agrado”: Is 42,1). Sim, Deus se compraz, encontra alegria no seu Servo, assim como a encontra na sua vinda entre os humanos (cf. Lc 2,14). Também na transfiguração essa voz do céu descerá para proclamar Jesus como Filho de Deus, como Servo eleito ao qual se deve escutar, e para confirmá-lo no seu caminho rumo à paixão e à morte (cf. Lc 9,35).

Ninguém escuta aquela voz, ninguém vê o Espírito descendo sobre Jesus, que poderá, portanto, proclamar aquele evento com autoridade: “O Espírito do Senhor está sobre mim; por isso me ungiu e me enviou para levar a boa notícia aos pobres” (Lc 4,18; Is 61,1). O batismo, então, é revelação do chamado dirigido a Jesus, que ele realizará plena e pontualmente como Messias e, portanto, Filho de Deus, como Profeta e, portanto, Servo do Senhor.

“Jesus tinha cerca de 30 anos” (Lc 3,23), anota Lucas logo depois; portanto, ele passou muitos anos de vida oculta. Desde o seu bar mitzwah, quando, aos 12 anos, tornou-se “filho do mandamento” (cf. Lc 2,41-50), até este evento de revelação, Jesus viveu uma existência comum, que permanece obscura para nós. É inútil reconstruir com a fantasia e a imaginação aqueles anos, a fim de deduzir uma “espiritualidade” de Jesus em família, de Jesus operário, de Jesus em Nazaré… Basta-nos saber que ele esperou, que não assumiu papéis nem uma vocação, mas que sempre soube viver o hoje de Deus.

Temos certeza apenas da sua obediência a Deus, e não aos homens e à família (cf. Lc 2,49; At 5,29); da sua disponibilidade de dar lugar na própria vida e no próprio corpo ao Espírito Santo, “o seu companheiro inseparável” (Basílio de Cesareia); do seu exercício na arte da escuta da Palavra de Deus, que ele encontrava na assiduidade das Sagradas Escrituras; do fato de se tornar discípulo, pondo-se no seguimento de João, rabi e profeta; do fato de fazer discernimento da própria vocação e missão.

Isso até cerca dos 30 anos, quando já era um homem maduro e, para o seu tempo, avançado em anos. E, quando o seu mestre João foi preso por Herodes (cf. Lc 3,19-20), eis chegada a sua hora, a hora de fazer ressoar a sua palavra, a hora de proclamar o Evangelho, a hora de percorrer as ruas da Galileia e da Judeia “passando entre os humanos fazendo o bem” (cf. At 10,38) e fazendo o diabo recuar.

Esse caminho vai da imersão nas águas do Jordão até a imersão nas águas da paixão e da morte (cf. Sl 69,2-3). E, na hora da morte, Jesus também será crucificado no meio de dois malfeitores (cf. Lc 22,37; 23,33; Is 53,12), solidário com os pecadores, como havia sido por toda a vida. Ele os preferira aos justos, fazendo-se batizar junto com eles por João; ainda os preferiria aos justos morrendo na cruz entre eles, mas chegando a prometer justamente a um deles: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). E, assim que morreu, ouviu de novo a voz do Pai: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei”, voz que o chama de volta dos mortos, Espírito Santo que o levanta para a vida eterna.

O Apóstolo Paulo releria essa história de modo sintético no início da Carta aos Romanos: “Cristo Jesus (…) Filho de Deus, nascido da linhagem de Davi segundo a carne, constituído Filho de Deus com poder, segundo o Espírito Santo, por meio da ressurreição dos mortos” (Rm 1,1,3-4).

A festa do batismo de Jesus é a última manifestação-epifania do tempo do Natal. Vindo ao mundo, Jesus se manifestou em Belém aos pastores, aos pobres de Israel; manifestou-se como Rei dos judeus aos sábios vindos do Oriente, aos povos da terra; e, no início do seu ministério público, manifestou-se a todo o Israel como Messias e Filho de Deus.

A partir do próximo domingo, mediante a leitura sequencial do Evangelho segundo Lucas, a Igreja nos pedirá para seguir Jesus rumo à sua Páscoa, “o seu êxodo que deverá se cumprir em Jerusalém” (Lc 9,31).

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Vozes e veredas do Senhor
Marcel Domergue

O simbolismo do batismo

À primeira vista, estamos diante de uma incoerência: Jesus submete-se a um rito que é destinado a preparar a sua própria vinda. E mais; o batismo de João é «um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados» (Lucas 3,3). Quem, no entanto, poderia reconhecer o Cristo como culpado de qualquer pecado? Para compreender isto, é preciso que levemos em conta o simbolismo do Batismo. A imersão na água, morta e mortífera, e o soerguimento para fora do «abismo» fazem-nos repetir os cenários da nossa criação e do nosso nascimento, passando este por aquele. É preciso superpor a isto também a nossa travessia da morte, na Paixão e Ressurreição do Cristo. Em resumo, Jesus se fez batizar por João porque acabara de se fazer solidário com os pecadores, prefigurando por este rito a hora em que for assumir o semblante das nossas dores e do nosso mal. «Deus o fez pecado», dirá Paulo (2 Coríntios 5,21). Temos, portanto, logo nas primeiras páginas do Evangelho, anunciado desde já o final do percurso.

“O céu se abriu”

Mas, então, estivera o céu fechado até ali? Em certo sentido, sim. O que este «céu» representa só vai se abrir para a Ascensão e para a vinda do Espírito que, naquele exato momento, descia sobre Jesus. As presenças simultâneas do Espírito e da água (batismal) nos remetem mais uma vez aos primeiros versículos do Gênesis, em que o Espírito de Deus sobrevoa (a palavra hebraica evoca o voo de um pássaro) o abismo. «Deus criou o céu e a terra» como duas realidades separadas. Daí em diante, mesmo se céu e terra guardem entre si as suas diferenças, foram ambos postos em comunicação. Mas, em sua humanidade, Jesus só poderia ser declarado Filho depois de ter reunido os homens pecadores nas águas pascais. É característico que a citação do Salmo 2, «Eu hoje te gerei», seja usada ao mesmo tempo para o nascimento do Cristo, para o seu Batismo (segundo a versão a mais provável) e para a Ressurreição (cf. Atos 13,33; Hebreus 1,5, etc.).

Um resumo do mistério

Paulo dirá (Romanos 1,4) «estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos». E já não era antes? Sim, mas era preciso que se tornasse o Filho, enquanto lastro de toda a nossa humanidade na qual foi enterrado, para nos fazer atravessar as portas. Por ser o Filho desde toda a eternidade é que pode tornar-se o Filho na espessura do nosso tempo. Por motivo de o seu Batismo recapitular toda a obra da salvação e antecipar a sua saída de glória é que, desde o ponto de partida, pode ser declarado Filho. «Primogênito» dentre os mortos (Colossenses 1,18). A palavra do Pai, «Tu és meu Filho», foi dita para nós que, daí para frente, temos de ver nele o Único, o depositário do Amor e do Espírito. E também foi dita para Ele. Daí em diante, já poderá se pôr a caminho, para afrontar e superar as tentações todas do homem (Lucas 4).

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