«Jesus partiu com os discípulos para as aldeias de Cesareia de Filipe. No caminho, fez aos discípulos esta pergunta: “Quem dizem os homens que Eu sou?”. Disseram-lhe: “João Baptista; outros, Elias; e outros, que és um dos profetas”. “E vós, quem dizeis que Eu sou?” – perguntou-lhes (…)» (Marcos 8, 27-35).
“Tu és o Messias.”
Marcos 8,27-35
O trecho do evangelho de hoje apresenta-nos a chamada confissão de Pedro em Cesareia de Filipe, episódio também narrado por São Mateus e São Lucas. O evangelho de São Marcos, escrito pensando sobretudo nos catecúmenos, tem como tema central a identidade de Jesus. Uma pergunta o percorre do início ao fim: “Quem é este homem?” (Mc 4,41). O título que São Marcos deu ao seu evangelho foi: “Início do evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus” (1,1). Com o trecho de hoje, chegamos ao centro do itinerário que o seu evangelho nos propõe: “Tu és o Cristo!”. A confissão de fé na messianidade de Jesus é o primeiro grande marco e sinaliza a virada para uma segunda etapa, a do reconhecimento de sua filiação divina, que ocorrerá junto à cruz: “Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus!” (15,39).
“Tu és o Messias!”. Enquanto a multidão intui que Jesus é uma figura especial, mas o interpreta com categorias do passado (João Batista, Elias ou um dos profetas), Pedro vê em Jesus o Messias, aquele que Israel aguardava há séculos, anunciado pelos profetas. Uma figura, portanto, que vem “do futuro”, como promessa de Deus, projetando-se no porvir como esperança de Israel.
A palavra hebraica Mashiah ou Messiah, traduzida como “Cristo” em grego, significa “Ungido”. Eram ungidos (com óleo perfumado) os reis, profetas e sacerdotes no momento de sua eleição. Com o tempo, o Messias, o Cristo, o Ungido por excelência, tornou-se o libertador escatológico esperado pelo povo de Deus, por alguns considerado de estirpe sacerdotal, por outros de estirpe real.
Jesus era o Messias, o Cristo. Ele mesmo o reconhece durante o interrogatório diante do sinédrio: “És tu o Cristo, o Filho do Bendito? Jesus respondeu: Eu sou!” (Mc 14,60-61), provocando o escândalo do sumo sacerdote. Por que, então, Jesus impôs silêncio aos apóstolos, “ordenando-lhes severamente que não falassem dele a ninguém”? Porque esse título estava carregado de expectativas terrenas e ambíguas. Israel esperava um Messias terreno e glorioso, enquanto Jesus seria um Messias derrotado e humilhado. Só depois de sua paixão e morte, quando ficou claro que tipo de messianismo era o seu – o do “Servo de Javé” da primeira leitura -, o título Cristo tornou-se seu segundo nome. Encontramo-lo mais de 500 vezes no Novo Testamento, quase sempre como um nome composto: Jesus Cristo, ou Nosso Senhor Jesus Cristo.
“Depois, começou a ensinar-lhes que o Filho do homem tinha de sofrer muito… E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas”. “Começou”: trata-se de um novo começo. Cada etapa alcançada torna-se um novo ponto de partida, pois Deus está sempre mais além. A nova etapa é a da cruz, palavra que aparece agora em São Marcos pela primeira vez. E aqui Pedro, orgulhoso de ter vencido a etapa anterior, tropeça imediatamente, aliás, torna-se ele mesmo pedra de tropeço (Mt 16,23).
A este novo começo corresponde uma nova vocação ou chamada, dirigida tanto aos discípulos quanto à multidão: “Chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser seguir-me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Esta nova etapa não é para simples simpatizantes ou amadores. O caminho torna-se árduo. Trata-se de carregar a cruz (cada dia, diz São Lucas), ou seja assumir a própria realidade, sem sonhar com outra, e colocar-se na sequela de Jesus. A aposta é grande: ganhar ou perder a própria vida, a verdadeira!
Pontos de reflexão
“Mas vós, quem dizeis que eu sou?”. Esta pergunta interpela os discípulos de Jesus de todos os tempos e exige de cada um de nós uma resposta pessoal, consciente e existencial. Conhecemos bem a opinião da gente. Para muitos, Jesus de Nazaré é uma figura especial da história, um sonhador ou um revolucionário. Para a maioria, no entanto, é uma figura do passado que já teve seu tempo. “Mas para vós, para ti, quem sou eu?”. No texto a pergunta é precedida pela conjunção adversativa “mas”, que nos coloca em contraposição à opinião comum. O discípulo de Jesus se distingue da multidão anônima por uma confissão de fé em Jesus de Nazaré como o Messias ungido e enviado por Deus como Libertador da humanidade (Lucas 4,18-21).
Para o cristão, Cristo é a chave da história e o sentido da vida. “Eu sou o Alfa e o Ômega, Aquele que é, que era e que vem, o Todo-Poderoso”, “O Primeiro e o Último, e o Vivente”, “O Princípio e o Fim” (Apocalipse 1,8; 1,17-18; 21,6; 22,13). Sem o seu “Eu Sou”, eu não sou. Como rezava Hilário de Poitiers (+367): “Antes de te conhecer, eu não existia, era infeliz, o sentido da vida me era desconhecido e, na minha ignorância, meu ser profundo me escapava. Graças à tua misericórdia, comecei a existir”.
Confessar que Jesus é o Cristo implica estar pronto para sofrer o mesmo destino que ele. Nosso tempo será cada vez mais um tempo de mártires, de testemunhas. Não será um martírio glorioso e heróico, mas humilde e oculto. O cristão é aquele que acolhe e guarda “o testemunho de Jesus” (Apocalipse 1,2.9; 12,17; 19,10; 20,4), a “Testemunha fiel” (1,5; 3,14), para comunicar à humanidade: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu único Filho” (João 3,16).
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Quem sou Eu para ti?
Marcos 8, 27-35
Deus não quer saber do que sabemos dele, mas da nossa paixão
Jesus encontrava-se num lugar solitário a orar. Silêncio, solidão, oração: é um momento repleto da maior intimidade para este pequeno grupo de homens. Intimidade entre os discípulos e com Deus. É uma daquelas horas especiais em que o amor se torna como que tangível, sente-se sobre ti, abaixo de ti, à tua volta, como um manto luminoso; momentos em que te sentes «dócil fibra do universo» (Ungaretti).
Nessa hora importante, Jesus coloca uma pergunta decisiva, algo de que depois tudo dependerá: fé, opções, vida… E vós, quem dizeis que eu sou? Jesus usa o método das perguntas para fazer crescer os seus amigos. As suas perguntas são centelhas que acendem alguma coisa, que colocam em movimento caminhos e crescimento. Jesus quer os seus poetas e pensadores da vida. «A diferença profunda entre os homens não entre crentes e não crentes, mas entre pensantes e não pensantes» (Carlo Maria Martini).
A pergunta começa com um «e vós», quase em oposição ao que diz a generalidade das pessoas. Não vos contesteis com uma fé de “ouvir dizer”, por tradição. Mas vós, vós que os barcos abandonastes, vós que caminhastes comigo durante três anos, vós meus amigos, que eu escolhi um a um, quem sou Eu para vós? E pergunta-o ali, dentro do ventre quente da amizade, sob a cúpula dourada da oração.
A resposta àquela pergunta de Jesus deve conter, pelo menos implicitamente, o adjetivo possessivo «meu», como Tomé na Páscoa: meu Senhor e meu Deus. Um “meu” que não indica posse, mas paixão
Uma pergunta que é o coração pulsante da fé: quem sou Eu para ti?
Jesus não procura palavras, procura pessoas; não procura definições de si mas envolvimento consigo: o que é que te aconteceu quando me encontraste? Assemelha-se às perguntas que os namorados se fazem: quanto lugar tenho eu na tua vida, quanto conto para ti? E o outro responde: tu és a minha vida. És a minha mulher, o meu homem, o meu amor.
Jesus não precisa da opinião de Pedro para recolher informações, para saber se é mais corajoso do que os profetas de antigamente, mas para saber se Pedro está enamorado, se lhe abriu o coração. Cristo está vivo dentro de nós. O nosso coração pode ser o berço ou o túmulo de Deus.
O Imenso pode fazer grande ou pequeno. Porque o Infinito é grande ou pequeno na medida em que tu lhe fazes espaço em ti, lhe dás tempo e coração. Cristo não é aquilo que digo dele, mas aquilo que vivo dele. Cristo não é as minhas palavras, mas aquilo que dele arde em mim. A verdade é aquilo que arde. Mãos e palavras e coração que ardem.
Em todo o caso, a resposta àquela pergunta de Jesus deve conter, pelo menos implicitamente, o adjetivo possessivo «meu», como Tomé na Páscoa: meu Senhor e meu Deus. Um “meu” que não indica posse, mas paixão; não apropriação, mas pertença. Meu, como é a respiração, e sem ela não viverei. Meu, como é o coração, e sem ele, não serei.
Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
snpcultura.org
Nós somos cristos vivos
Se for através de nós que Cristo pode falar e agir, hoje, isso quer dizer que a sua presença não pode ficar fechada em um dogma, uma regra, uma Igreja ou um templo. A sua presença é sempre nova; ela não pode ficar fixada em uma definição. A reflexão é de Raymond Gravel(1952-2014), padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 24° Domingo do Tempo Comum – Ciclo B. A tradução é de Susana Rocca.
No evangelho de Marcos, a pergunta que Cristo coloca, e que também é retomada depois no evangelho de Marcos e de Lucas, é uma questão primordial ainda hoje: trata-se daquela que pergunta se nós queremos nos definir como crentes, como discípulos de Cristo. Quem é Jesus para nós? Certamente, existem os não crentes que sabem que Jesus de Nazaré existiu. Para eles, Jesus foi um homem excepcional que revolucionou a sociedade e a religião do seu tempo, mas só isso. Para as pessoas que acreditam, mas que não são cristãs, Jesus foi um profeta como Maomé, Buda, Moisés, Elias e tantos outros. Mas para nós, cristãos, quem é ele exatamente? À luz do evangelho de Marcos, a grandes traços podemos reconhecer o Jesus de Nazaré que se tornou Cristo e Senhor na Páscoa. Para nós, cristãos, que rostos lhe damos nas nossas vidas de fé e na nossa Igreja? O que falamos dele?
Jesus, um homem
Nunca teremos falado suficiente… Jesus de Nazaré foi um homem como nós, um verdadeiro homem que viveu numa época determinada, num contexto específico. Como homem, ele se destacou, sem dúvida, dentre os outros homens, porque nós falamos dele há 2000 anos. No entanto, ele assumiu a sua humanidade até o fim, até a morte na cruz. Todos os evangelhos são histórias de fé, isto é, narrativas construídas após a Páscoa, na fé dos primeiros cristãos, que nos falam de um Jesus já transformado pela Ressurreição. Por outro lado, todas as narrativas fazem alusão a sua humanidade que ele teve que assumir até o fim: “Em seguida, Jesus começou a ensinar os discípulos, dizendo: ‘O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto, e ressuscitar depois de três dias’” (Mc 8,31).
Mas, atenção! Não são só os docetas que não reconhecem a humanidade de Cristo. Se Marcos faz que Pedro diga três vezes que Jesus vai ser rejeitado pelos seus, que ele deve sofrer e morrer, é porque ainda há alguns discípulos que não reconheciam a humanidade daquele que se tornou o Cristo e Senhor da Páscoa: “Jesus dizia isso abertamente. Então Pedro levou Jesus para um lado e começou a repreendê-lo” (Mc 8,32). No fundo, temos tanta dificuldade para viver a nossa humanidade em toda a sua fragilidade que desumanizamos Cristo, e gostaríamos de nos desumanizar a nós mesmos, para não sofrer a rejeição, o sofrimento e a morte. Por outra parte, não é assim que funciona: “Jesus virou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: ‘Fique longe de mim, satanás! Você não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens“ (Mc 8,33). Pedro representa aqui todos os discípulos do Cristo da comunidade de Marcos…
Jesus, um messias, o Cristo
Após a morte de Jesus de Nazaré na cruz, na Sexta-feira Santa, as mulheres e os homens que o tinham seguido tomaram consciência, aos poucos, que esse homem, esse profeta, esse revolucionário, ainda estava vivo. Eles o reencontraram no caminho e o reconheceram. Para eles, Jesus não era somente a lembrança de um amigo que eles tinham encontrado e amado; ele era o Messias, o Cristo, o Senhor, presente e agindo através deles. Ainda sendo Jesus mesmo, para alguns deles era outra pessoa: “Eles responderam: ‘Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias; outros, ainda, que és um dos profetas” (Mc 8,28), mas para seus próximos, ele era mais do que isso: “’E vocês, quem dizem que eu sou?’ Pedro respondeu: ‘Tu és o Messias (Cristo)‘” (Mc 8,29).
Por outro lado, o messias que Pedro achava que reconhecia era simplesmente o messias dos homens, o chefe político e religioso de quem viria a libertação de Israel da opressão romana. O teólogo francês Gérard Bessière escreve: “Jesus não queria nem o poder nem o prestígio. Ele se dirigia ao coração e à liberdade dos homens, ele oferecia amor e perdão. Sabia que os poderosos não o suportavam mais e queriam eliminá-lo. Ele era o messias pobre e perseguido, aquele que afrontava a morte até todas as ressurreições. Todos os que querem conduzir a humanidade até o alto passam, alguma vez, pela um caminho da cruz”. E é por isso que, se quisermos nos tornar seus discípulos, não temos outra opção senão assumir a nossa própria humanidade como ele assumiu a sua: “Então Jesus chamou a multidão e os discípulos. E disse: ‘Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga’” (Mc 8,34). Ser discípulo é, então, caminhar atrás de Cristo, e não na frente.
Jesus, nós
Para nós, hoje, esta parábola do evangelho deve nos interpelar. Em uma reflexão de Marthe Lamothe podemos ler: “Para vocês, quem sou eu? A pergunta de Jesus é feita a nós hoje. Segundo a nossa resposta, que relação com ele podemos perceber? Nós caminhamos na frente, indicando-lhe o que deveria fazer por nós, para mudar o mundo? Ou nós caminhamos atrás, deixando-o ser Deus à sua maneira, e entrando com ele nesse caminho onde a cruz se perfila como uma renúncia a todo poder sobre o outro, a toda vingança, a toda violência?”. Quando ouvimos alguns discursos da Igreja atual, temos a impressão que não se deixa que Cristo seja Cristo, nem que Deus seja Deus. Somos nós que lhe dizemos o que deve dizer e como deve agir…
E crer em Jesus – homem, profeta, Filho de Deus, Salvador, Messias, Cristo e Senhor – é primeiramente crer em nós, na nossa humanidade já transformada por ele, porque habitada pelo seu Espírito. No final do evangelho de hoje, Marcos escreve: “Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perde a sua vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la” (Mc 8,35). Isso quer dizer que vivendo a nossa humanidade até o fim, adotando os seus valores, deixando-o agir através de nós, é que podemos esperar torná-lo vivo e agindo na nossa Igreja. Também não basta dizer que temos fé; é preciso que se veja, e para fazê-lo, precisamos passar da palavra à ação. Na segunda leitura de hoje, Tiago diz isso explicitamente: “Assim também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta. Alguém poderia dizer ainda: ‘Você tem a fé, e eu tenho as obras. Pois bem! Mostre-me a sua fé sem as obras, e eu, com as minhas obras, lhe mostrarei a minha fé’” (Tg 2,17-18).
Para terminar, se é através de nós que Cristo pode falar e agir, hoje, isso quer dizer que a sua presença não pode ficar fechada em um dogma, uma regra, uma Igreja ou um templo. A sua presença é sempre nova; ela não pode ficar fixada em uma definição. O exegeta francês Jean Debruynneescreve: “Jesus é o caminho. Jesus caminha e é no caminho que Jesus pergunta pela sua identidade: Quem sou eu? A identidade de Jesus não é, então, uma definição, um atestado de nascimento ou um visto de residência. A identidade de Jesus é um caminho. É uma revelação e, justamente para as pessoas, as respostas dadas pelos discípulos à pergunta de Jesus são respostas que ficam fechadas: Eles identificam Jesus com modelos conhecidos: João Batista, Elias ou outro profeta… Para Pedro, Jesus é o Messias, mas o que quer dizer a palavra messias?”.
Hoje, somos nós que temos que responder à pergunta: a nossa resposta dirá a qualidade da nossa fé e da esperança que nos habita… Será possível que Cristo, hoje, sejamos nós?
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