O trecho do evangelho começa por dizer que “Jesus chamou os doze Apóstolos”. Há três chamadas especiais na nossa vida. Há, antes de tudo, a chamada pessoal: “Passando, Jesus viu Simão e André... Tiago e João... e chamou-os” e eles tornaram-se discípulos (Marcos 1,16-20). Essa chamada também se deu com cada um de nós! [...]

A missão com as sandálias nos pés e o bastão na mão

Jesus chamou os doze Apóstolos e começou a enviá-los dois a dois.
Marcos 6,7-13

O tema central das leituras deste XV domingo é a vocação e a missão:
- a vocação/missão do profeta: “Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse: ‘Vai profetizar ao meu povo de Israel’” (primeira leitura, Amós 7,12-15);
- a vocação/missão do cristão: “Nele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença.” (segunda leitura, Efésios 1,3-14);
- a vocação/missão do apóstolo: “Jesus chamou os doze Apóstolos e começou a enviá-los dois a dois.” (evangelho).

Algumas reflexões sobre a Vocação

Antes de passar ao trecho do evangelho, reflitamos um momento sobre este binómio vocação/missão, ou seja, chamada e envio, eleição e incumbência, seguimento e apostolado... as duas dimensões inseparáveis do ser e do fazer!

Primeiramente, removamos da mente a velha ideia de que a vocação diz respeito apenas a padres e freiras, religiosos e missionários ou, no máximo, a alguns leigos chamados a desempenhar uma tarefa particular na comunidade cristã. Na realidade, a vida cristã é vocação, seja ela vivida numa consagração especial ou na vida leiga e matrimonial. Aliás, poderíamos dizer, num sentido amplo, que a “vocação” caracteriza toda vida humana, como busca de sentido.

Em segundo lugar, seria enganoso pensar que a questão da vocação diz respeito apenas aos jovens em busca de um projeto de vida ou do plano de Deus para eles. Ela abrange todo o arco de nossa existência. A “busca vocacional” não cessa, uma vez que descobrimos o que Deus quer de nós, mas continua por toda a vida. “Cada manhã ele abre o meu ouvido para que eu escute como um discípulo” (Isaías 50,4). Viver a nossa vida em tensão vocacional dá a cada momento um sabor de novidade. Caso contrário, facilmente caímos no cansaço do cotidiano cinzento. Para sermos fiéis à vocação, não basta seguir adiante por inércia. É preciso reavivar continuamente o ardor vocacional, como Paulo recomendava a Timóteo: “Lembro-te de reavivar o dom de Deus que há em ti mediante a imposição das minhas mãos.” (2Timóteo 1,6). O nosso “Sim” deve ser renovado diariamente, caso contrário, desgasta-se e desbota.

Finalmente, ouso dizer que o nosso “Sim” não diz respeito apenas ao presente e ao futuro, mas até mesmo ao passado porque, por mais estranho que isso nos possa parecer, a fidelidade passada nunca está segura até ao “Sim” final. Hoje eu posso arrepender-me de uma escolha que, na época, fiz com alegria e generosidade. Aliás, o grande “Sim” renovado ao passado pode ser ainda mais desafiador do que o “Sim” de hoje, dado, quem sabe, por força ou inércia. Isso explica como tantas vocações, consagradas ou matrimoniais, terminam na amargura ou no fracasso. E aqui reside a suprema bem-aventurança – a da salvação – que Jesus proclama justamente neste contexto do envio dos Doze em missão: “Quem perseverar até o fim será salvo” (Mateus 10,22).

Após estas considerações, talvez não totalmente pertinentes, passemos a destacar alguns aspectos do evangelho de hoje.

As três etapas da vocação

O trecho do evangelho começa por dizer que “Jesus chamou os doze Apóstolos”. Há três chamadas especiais na nossa vida. Há, antes de tudo, a chamada pessoal: “Passando, Jesus viu Simão e André... Tiago e João... e chamou-os” e eles tornaram-se discípulos (Marcos 1,16-20). Essa chamada também se deu com cada um de nós!

Num segundo momento, dá-se a vocação comunitária: “Subiu depois ao monte, chamou os que quis, e eles foram até ele. Designou doze – a quem chamou apóstolos –, para que estivessem com ele e para enviá-los a pregar.” (Marcos 3,13-14). Assim, os discípulos tornaram-se uma comunidade. Todos somos “convocados”, ‘chamados juntos’. Não há vocações 'privadas'!

Finalmente, há a chamada apostólica, o envio em missão. É o momento apresentado no evangelho de hoje: “Jesus chamou os doze Apóstolos e começou a enviá-los dois a dois” e eles tornaram-se apóstolos. Toda a vocação desemboca na missão. Uma missão comunitária (dois a dois), eclesial, não de franco-atiradores!

Aqui se trata do primeiro envio dos Doze, um estágio em vista do envio final, após a ressurreição, que os caracterizará definitivamente como “apóstolos”, enviados, missionários: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura.” (Marcos 16,15). Vejamos, então, mais de perto esta terceira etapa.

A nossa missão prolonga a de Jesus

Os apóstolos prolongam a missão de Jesus (Marcos 3,14-15): anunciar o Reino de Deus, expulsar demónios e curar enfermos. Por isso, o Senhor transmite-lhes o seu poder: “Deu-lhes poder sobre os espíritos impuros”. O Evangelho de Marcos é conhecido por destacar a atividade de Jesus em expulsar os espíritos impuros. Por que o faz? Não apenas para demonstrar o poder divino de Jesus, mas para evidenciar que o Reino de Deus está avançando e derrotando o reino de Satanás.

Os apóstolos estão conscientes de ter recebido esse “poder sobre os espíritos impuros” e exercem-no com sucesso. Infelizmente, connosco muitas vezes não é assim. Não temos fé nesse dom que nos é conferido com o sacramento da crisma. Por medo ou covardia, muitas vezes não combatemos o mal e assim permitimos que se expanda nos nossos ambientes de vida.

A missão do bastão e das sandálias

Uma vez conferido esse poder, o Senhor “ordenou-lhes que não levassem para a viagem nada além de um bastão: nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura; mas calçassem sandálias e não levassem duas túnicas”. Esta ordem de Jesus põe em crise qualquer missionário. É a única vez no evangelho de Marcos que Jesus ordena algo aos discípulos. Ele o faz porque isso não é algo natural. Somos tentados a fazer missão com meios poderosos e eficazes. No fundo, não confiamos no poder da Palavra de Deus e de sua providência. Por instinto, buscamos outras seguranças humanas.

“Enquanto não fores pobre, tudo o que deres é apenas exercício de poder”, diz Silvano Fausti. A vida e a missão, porém, encarregam-se de despir o apóstolo. O insucesso, as desilusões, a oposição, a fragilidade... levam-nos à conclusão de que a missão se faz na fraqueza para que possa manifestar-se em nós o poder de Deus (2Coríntios 12,7-10).

Se olharmos os textos paralelos de Mateus (cap. 10) e Lucas (cap. 9 e 10), notaremos que Jesus diz para não levar nem mesmo o bastão e as sandálias. Nesse caso, o bastão é considerado a arma do pobre e a missão deve ser feita desarmada. Para Marcos, no entanto, o bastão é o instrumento do peregrino que o ajuda a caminhar. Além disso, é o sinal do poder que Deus dá ao seu enviado, como o bastão de Moisés. As sandálias para Mateus e Lucas são um luxo. Para Marcos, em outro contexto cultural, são sinal de liberdade. Os escravos andavam descalços. A evangelização, porém, traz uma mensagem de liberdade.

Para concluir, perguntemo-nos:

1) Sou um cristão peregrino ou um cristão sedentário, com demasiada “bagagem” para me poder deslocar?
2) Nas minhas fraquezas reconheço a ação de Deus que me despoja das falsas seguranças?
3) Qual é o “bastão” em que me apoio para caminhar?
4) Sou um cristão pascal, “com os lombos cingidos, as sandálias nos pés e o bastão na mão” (Êxodo 12,11), sempre pronto para partir?

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, Julho de 2024

Marcos 6,7-13

Chamou os doze discípulos, começou a enviá-los dois a dois e dava-lhes poder sobre os espíritos maus. Jesus recomendou que não levassem nada pelo caminho, além de um bastão; nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura. O comentário corresponde às leituras do 15° Domingo do Tempo Comum, do ciclo B, do ano litúrgico e é elaborado por Maria Cristina Giani, Missionária de Cristo Ressuscitado.

Mandou que andassem de sandálias e que não levassem duas túnicas. E Jesus disse ainda: “Quando vocês entrarem numa casa, fiquem aí até partirem. Se vocês forem mal recebidos num lugar, e o povo não escutar vocês, quando saírem, sacudam a poeira dos pés como protesto contra eles.” Então os discípulos partiram e pregaram para que as pessoas se convertessem. Expulsavam muitos demônios e curavam muitos doentes, ungindo-os com óleo.

Uma comunidade missionária

O texto do Evangelho de hoje situa-se logo após a rejeição sofrida por Jesus em Nazaré (Mc 6,1-6). Neste texto é Jesus quem toma a iniciativa e convida-nos a refletir e escutar sua mensagem e entender seu significado hoje para as diferentes culturas que vivemos.

Marcos narra que “Jesus chama os discípulos, os envia de dois a dois e lhes dá poder sobre os espíritos maus”. É um novo começo. Jesus inicia a sua comunidade de discípulos e discípulas na missão, que é a mesma que a dele! Todo o que é chamado é para uma missão. Ele os envia e dá-lhes o mesmo poder que Ele tem.

Resulta interessante o detalhe do evangelista ao dizer que os discípulos são enviados de dois em dois. Desta maneira, sinaliza que a missão não é propriedade de uma pessoa, e sim de toda a comunidade. Os/as missionários/as são enviados em nome de uma comunidade e com a mensagem evangélica. Os cristãos e cristãs, de todos os tempos, participam da missão que Jesus confiou à sua Igreja. Não há superioridade de um/a missionário/a sobre outra pessoa ou outra comunidade.

O Concílio Vaticano II marca claramente a natureza missionária da Igreja. No concílio, passa-se de uma Igreja que tem missões a uma igreja missionária. E essa identidade missionária significa “responsabilidade para com o mundo”, e comporta um posicionamento que é o ensino de Jesus ao longo de toda sua vida: Ele passou sua vida servindo aos mais pobres, excluídos sociais e religiosos.

O Papa Francisco faz diferentes menções a esta realidade fundamental do cristianismo, como discípulos/as missionários/as. Na sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium ressalta que: “Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de anunciá-lo sem excluir ninguém, não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem compartilha uma alegria, assinala um belo horizonte, oferece um banquete desejável. A Igreja não cresce por proselitismo, mas ‘por atração’”. E a alegria do Evangelho é missionária porque “sempre tem a dinâmica do êxodo e do dom, do sair de si, do caminhar e semear sempre de novo, sempre para mais além”.

[…]A comunidade evangelizadora “mergulha na vida cotidiana dos outros, encurta distâncias, abaixa-se até a humilhação, caso for necessário” e “acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e a paciência apostólica. A evangelização patenteia muita paciência, e evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao dom do Senhor, sabe também ‘frutificar’. A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio”. No texto que hoje estamos refletindo lembremos que o primeiro milagre de Jesus, que nos relata o Evangelho de Marcos, é a expulsão de um espírito impuro (Mc 1,21-28). E no texto de hoje, Jesus confere-lhes autoridade sobre os espíritos maus.

Com este “artifício literário”, o evangelista mostra à comunidade primitiva, como a missão de Jesus se prolonga na sua e que ela tem o mesmo poder de seu Mestre para libertar os excluídos/as de cada tempo e lhes oferecer uma nova vida. Sentimo-nos comunidade enviada por Jesus para continuar sua missão? Por quem “tomamos partido”? De que “mal” precisamos ser libertos para libertar?

Para viver essa missão Jesus deixa algumas recomendações simples e concretas. A primeira: “que não levassem nada pelo caminho, além de um bastão; nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura”. Com comparações orientais, bíblicas, exorta-os a viver o espírito evangélico de pobreza. Num mundo marcado pelo materialismo, pelo egoísmo, pela desigualdade social, os enviados de Jesus são convidados a apresentar-se na liberdade que nasce do espírito de pobreza, na confiança no Deus providente (Lc 12,31).

Depois: “Mandou que andassem de sandálias e que não levassem duas túnicas”, continuando com ideia anterior agora Jesus parece desenhar a figura de um peregrino. As sandálias nos remetem aos pés cansados e empoeirados dos mensageiros da Boa Notícia, que caminham livremente!

Finalmente, as últimas recomendações: “Quando vocês entrarem numa casa, fiquem aí até partirem. Se vocês forem mal recebidos num lugar, e o povo não escutar vocês, quando saírem, sacudam a poeira dos pés como protesto contra eles”.

A proclamação da Boa Nova deve fazer-se em liberdade, não se pode obrigar ninguém a aceitá-la. Por isso, a orientação é permanecer com aqueles que a acolhem, deixar aqueles que a rejeitam. Precisamos ter cuidado com a interpretação desta recomendação. Sacudir a poeira dos pés é um gesto simbólico dos israelitas que, ao ingressarem ao próprio país, depois de terem estado em terra pagã, não queriam ter nada em comum com o modo de vida deles.

O gesto com aqueles que não aceitam a proposta do Evangelho não pode ser lido como intolerância de certos missionários que não suportam a rejeição. É sinal de ruptura sim, mas que representa respeito pela escolha feita, por mais que isso implique sofrimento para o evangelizador. Ele deve ter uma atitude tolerante e compreensiva, esperando uma nova oportunidade.

Hoje podemos perguntar-nos: Levando em conta estas recomendações missionárias, em quais deveríamos crescer mais como comunidade eclesial e pessoalmente?

Depois de escutar as palavras de Jesus, os discípulos e discípulas se puseram em marcha, “partiram e pregaram para que as pessoas se convertessem. Expulsavam muitos demônios e curavam muitos doentes”.
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