Dois milagres compõem a longa história evangélica deste domingo, narrada por Marcos (5, 21-43): a cura da mulher que tinha sofrido de hemorragia durante doze anos e a ressurreição da filha de Jairo.

Os pontos de contacto entre estes dois milagres são significativos: são duas mulheres; há o número “doze” que se repete em ambos os casos (a mulher estava doente há doze anos quando a rapariga de doze anos veio ao mundo); o duplo milagre acontece através do contacto físico. Enfim, a multidão é alheia aos dois prodígios e a intervenção de Jesus está sob a bandeira da sua sensibilidade à debilidade humana, sem distinção de pessoas.

Não é magia! É a extraordinária capacidade de Jesus de se aproximar, de amar e de entrar em comunhão com as pessoas na sua situação concreta de vida, mesmo que condenadas pela tradição. É a profunda harmonia afectiva que, levando a realidade das pessoas muito a sério, Jesus conseguiu transmitir a sua experiência da proximidade radical do amor do Pai. Como diz Bento XVI, só o amor salva. Quando alguém se sabe amado, recupera a sua dignidade, torna-se capaz de se levantar e de viver uma vida plena.

Nesta história, vemos como a fé de pessoas humildes, que, ameaçadas pela doença e pela morte, abrem os seus corações e a sua esperança a Deus como a única rocha de refúgio. Na minha vida missionária encontrei muitas pessoas que são como o pai da criança moribunda ou a mulher em desespero de uma doença que a humilha e destrói como mulher e como pessoa.

Perante tal situação, estas pessoas procuram uma saída: na medicina, na oração, nos bons conselhos..., onde quer que haja uma oportunidade de recuperar a sua vida ameaçada ou perdida. Muitos dizem-lhes que não há nada que possam fazer, que devem aceitar a realidade; zombam deles e da sua fé... Mas esta procura deve ser respeitada e levada a sério. E é isto que Jesus faz: a partir da sua extraordinária experiência de comunhão com o Pai da Vida, ele é capaz de entrar em comunhão com os seus filhos e filhas que atravessam momentos de especial dificuldade, ao ponto de arriscar duvidar da sua própria dignidade e de ser amado.

A partir destes encontros com Jesus, ambos os dois geradores de vida, podemos sublinhar três palavras, segundo a reflexão, publicada na Newsletter da Paróquia de Freamunde, comentando este mesmo Evangelho: “A primeira palavra é a de que Deus nos criou para a vida eterna. A segunda palavra é a de que Cristo Se fez pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza. A terceira palavra é a de que Jesus nos manda dar de comer a quem precisa de pão para viver. Peçamos então ao Senhor que nos dê fome e sede de Deus, para O procurarmos como alimento de vida eterna! Peçamos ainda ao Senhor que nos dê um coração pobre, para O reconhecermos num bocado de Pão! Peçamos também ao Senhor que a partilha do Pão da Eucaristia faça de nós pão repartido pela vida dos irmãos.”

Deus é o Senhor amante da vida!

Pegou na mão da menina e disse-lhe: «Talitá kum»
Marcos 5,21-43

As leituras deste domingo giram em torno de um tema crucial da existência: o binómio vida e morte! A primeira leitura (Sabedoria 1-2) tranquiliza-nos de que o plano de Deus é que o homem viva: “Deus não criou a morte… Ele criou todas as coisas para que existam… e criou o homem para a incorruptibilidade”. O Salmo 29 é um hino de ação de graças pela vida resgatada da morte. A segunda leitura (2Coríntios 8) é um convite a partilhar a vida através da partilha de bens. O Evangelho leva-nos a fixar o nosso olhar em Jesus, que leva a vida por onde passa, testemunhando assim o que Ele diz em João 10,10: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”. A única condição para a acolher é a fé: “Filha, a tua fé te salvou”, diz Jesus à mulher que tinha tocado no seu manto; “Não temas, basta teres fé!”, diz Jesus a Jairo quando recebe a notícia da morte da sua filha.

A palavra de Deus sugere alguns pontos que nos convidam a refletir sobre o nosso relacionamento com a vida. Pegamos um por leitura, incluindo o Salmo.

1. A vida é GRAÇA!

É graça no sentido de dádiva, mas também no sentido de graciosidade. A primeira leitura, do livro da Sabedoria, exalta a bondade da vida: “As criaturas do mundo são portadoras de salvação”. O autor do livro transmite um sentido de otimismo em relação à existência, que vem sem dúvida da fé no “Senhor, amante da vida” (Sabedoria 11,26), mas também de uma relação saudável com o mundo.

Hoje este “são otimismo” parece estar a desaparecer. Mesmo entre os mais jovens, que deveriam ser uma manifestação perene da exuberância da própria vida. Preocupa e causa espanto ver o crescente número de casais que se fecham à fecundidade, convencidos de que esta sociedade não tem futuro. Uma visão positiva da vida falta frequentemente também nas nossas comunidades, que não são jovens, mas que deveriam ser animadas pela juventude perene do Espírito do Ressuscitado. E o que diz sobre nós cristãos a mentalidade comum que pensa que Deus mortifica a vida com leis e proibições? Que imagem de Deus temos transmitido?

Um saudável otimismo em relação à vida hoje não é espontâneo, deve ser cultivado e protegido de discursos carregados de catastrofismo. Esta atitude positiva é uma escolha, uma opção de vida que vem da convicção de fé que o Espírito é a alma da Igreja e está permanentemente a trabalhar no mundo e na história. Hoje, o cristão é chamado a testemunhar a bondade e a beleza da vida.

2. A vida é FRÁGIL.

O Salmo destaca a fragilidade da vida, ameaçada pela morte: “Senhor, fizeste a minha vida subir do inferno, fizeste-me reviver para que não descesse à cova”. Tudo o que é belo é também frágil. Talvez para melhor apreciar a sua gratuidade e não a dar simplesmente por garantida. Estimar, cultivar e cuidar da saúde e da qualidade de vida é algo bom. O problema é quando esse cuidado se torna insistência e obsessão. Então, pode acontecer-nos como à mulherde que se fala hoje no Evangelho que “sofreu muito às mãos de muitos médicos, gastando todos os seus bens sem nenhum proveito, antes piorando”. Em geral, tentamos remover da mente o pensamento da morte. O problema é quando a morte se torna um tabu. Isso torna-se uma inconsciência deliberada e, a longo prazo, inconsciência.

A sabedoria humana e cristã convida-nos a reconciliar-nos com os limites da vida e a perspetiva da morte. A fragilidade faz parte da nossa condição de criaturas. Qual é o sinal da nossa reconciliação com a morte? Quando somos capazes de doar a vida! Isso exige, porém, um exercício contínuo de “morrer” todos os dias para nós mesmos, colocando a nossa vida ao serviço dos outros, à semelhança do Mestre.

3. A vida deve ser PARTILHADA.

Na segunda leitura, encontramos a exortação de São Paulo à comunidade de Corinto para encorajá-la a participar generosamente na coleta em favor da comunidade-mãe de Jerusalém, que se encontrava em sérias dificuldades: “Por agora, a vossa abundância supra a sua indigência, para que também a sua abundância supra a vossa indigência, e haja igualdade”. A partilha de bens é partilha de vida. Todos estamos conscientes do quanto isso é urgente no nosso mundo, onde crescem desmesuradamente as desigualdades. Não haverá paz sem justiça. O egoísmo, a acumulação e a apropriação dos bens semeiam a morte. O cristão é chamado a testemunhar a bem-aventurança proclamada por Jesus, segundo São Paulo: “É mais bem-aventurado dar do que receber!” (Atos dos Apóstolos 20,35). A generosidade, no entanto, não é uma atitude espontânea, especialmente se implica a renúncia a certas comodidades. Ela implica a fé no “cêntuplo” prometido pelo Senhor e o exercício contínuo da largueza de coração.

4. A vida é-nos CONFIADA.

O Evangelho oferece-nos vários pontos de reflexão. Concentremo-nos num, na intercessão de Jairo a favor da vida da sua filha: “A minha filhinha está a morrer: vem impor-lhe as mãos, para que seja salva e viva”. Comove-nos a súplica deste pai, ajoelhado diante de Jesus. O Senhor, partilhando a sua dor, “foi com ele”. Todos somos chamados a ser sensíveis à dor alheia, a ir ao encontro de quem sofre e a aliviar a sua pena, tanto quanto possível. A vida dos outros é-nos confiada. Há uma miríade de maneiras práticas de viver a “compaixão”, a solidariedade e a fraternidade humana. Graças a Deus, esta sensibilidade está a crescer, unindo crentes e não crentes. Mas há uma modalidade típica do crente que está a enfraquecer: a oração de intercessão. A secularização ajudou-nos a tomar consciência da autonomia do mundo e do dever intransferível de cuidar de toda a criação, através do exercício responsável da técnica e da ciência. Deus não é um “tapa-buracos”, como se costuma dizer. Sem dúvida, esta nova consciência e sensibilidade é uma graça porque purifica a fé, tornando-a mais genuína. Mas se é assim, para que “serve” a oração? É a pergunta de muitos e talvez também a nossa. Alguns teólogos chegam a afirmar que a única verdadeira oração é a de louvor ou, até mesmo, a simples atitude de abandono filial à “vontade” de Deus.

Toda a tradição bíblica, a revelação de Deus na sua encarnação em Jesus de Nazaré, a tradição eclesial e litúrgica chocam com esse reducionismo que arriscaria conceber a prática cristã como simples ação e, no limite, ativismo. A oração autêntica, que não é subterfúgio ou alienação, é uma modalidade privilegiada de ação da fé. Nós e o mundo precisamos de oração, seja ela de súplica, de intercessão, de ação de graças, de louvor ou de abandono. A oração é um “património mundial”, um depósito ao qual todos recorrem, crentes e não crentes, mesmo sem o sabermos, de uma forma que nos é misteriosa. A ação e a luta por uma sociedade mais justa e fraterna são eficazes porque são fecundadas pela graça. Deus confia-nos a vida e o cuidado dos irmãos. A oração de intercessão é um cuidar dos irmãos, é “carregar os pesos uns dos outros” (Gálatas 6,2).

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, Junho de 2024