Que sentido têm o sofrimento e a dor que acompanham a caminhada do povo pela terra? Qual a “posição” de Deus face aos dramas que marcam a nossa existência? A liturgia deste V Domingo do Tempo Comum reflete sobre estas questões fundamentais. Garante-nos que o projeto de Deus para o seu povo não é um projeto de morte, mas é um projeto de vida verdadeira, de felicidade sem fim.
Lugares, tempos, actividades e proximidade: quatro desafios para o cristão!
Todos te procuram!
Marcos 1,29-39
O evangelho de hoje é a continuação do de domingo passado e completa a unidade literária de Marcos 1,21-39, conhecido como o "Dia de Cafarnaum", o "primeiro" dia de atividade de Jesus, de plena imersão na realidade da humanidade sofredora.
1. Notemos a atenção que o evangelista dá aos LUGARES: saindo da sinagoga, Jesus entra em casa de Simão e André, situada a poucos passos; depois, sai para a "praça" da cidade; de madrugada, vai para um lugar deserto e, em seguida, percorre as aldeias de toda a Galileia. Jesus é um rabino invulgar, que atravessa continuamente os limiares e transgride; está sempre em caminho e escolhe a estrada como lugar do seu ensinamento; não acaricia os sucessos, está sempre "em saídas"; "faz-se tudo para todos" (ver Paulo na segunda leitura), animado pelo desejo de estar presente em todo o lado! Jesus não é um "Messias doméstico", facilmente domesticável e que teria evitado a oposição das autoridades! (F. Armellini).
Esta presença de Jesus em "todos os lugares" é um desafio para mim! Procuro privilegiar certos lugares, onde me sinto "em casa", onde me sinto amado e estimado. Tenho dificuldade em ligar os lugares onde vivo e procurar ou levar a presença de Deus para lá: na sinagoga (igreja) e em casa (vida doméstica); na cidade e na solidão; no centro e nas periferias da minha Galileia. Talvez me faltem os "lugares desertos" para discernir para onde Deus quer que eu vá. Com demasiada facilidade faço passar por "vontade de Deus" o facto de ficar onde me sinto confortável ou onde tenho sucesso!
2. Consideremos também a atenção que o evangelista dá aos TEMPOS: o sábado, a tarde, o pôr do sol, a noite, a manhã... Notemos de novo o advérbio temporal "imediatamente". Jesus parece animado por uma "urgência" apostólica. Não tem tempo a perder. Sabe que tem apenas "três dias": "Ide e dizei a essa raposa” [Herodes]: “Eu expulso demónios e faço curas hoje e amanhã, e ao terceiro dia a minha obra está terminada. Mas é necessário que eu continue hoje, amanhã e depois de amanhã, pois não é possível que um profeta morra fora de Jerusalém" (Lucas 13,22-23).
Esta atitude de Jesus em relação aos "tempos" interpela-me. Procuro e demoro-me nos tempos agradáveis, sem olhar a prioridades, e evito ou "apresso-me" nos tempos difíceis que exigem empenhamento e sacrifício! Muitas vezes não combino os tempos de forma harmoniosa. Quantas vezes digo: "Estou ansioso por..." que este tempo difícil acabe ou para que chegue um tempo bom. Assim, os meus tempos são interrompidos por períodos que não são vividos em pleno, sofridos ou rejeitados!
3. Detenhamo-nos nas ACTIVIDADES realizadas por Jesus neste evangelho. São essencialmente três: Jesus cura, Jesus reza, Jesus evangeliza! Não são estas as "actividades" que o cristão é chamado a realizar?
a) Jesus cura os doentes e expulsa os demónios: "Trouxeram-lhe todos os doentes e os possessos.... Ele curou muitos doentes de várias doenças e expulsou muitos demónios". Notemos a ligação estabelecida pelo evangelista entre as "várias doenças" e os "muitos demónios". Jesus "saiu" para vencer o mal em todas as suas formas. E os demónios que ainda hoje afligem a nossa humanidade são muitos! Jesus já venceu o mal, mas esta vitória de Cristo ainda não é visível em todas as suas dimensões. Deus não transformará o mundo sem nós. Somos chamados a lutar com Cristo para participar na sua vitória!
b) Jesus reza: "Levantou-se de manhã cedo, quando ainda estava escuro, saiu e retirou-se para um lugar deserto, e ali rezou". O homem que era Jesus também precisava de rezar. Não só para cultivar a intimidade com o Pai, mas também para discernir a sua vontade e beber na Fonte da Vida. "Sem mim nada podeis fazer" (Jo 15,5) é uma experiência que Jesus fez, antes de no-la dizer a nós!
c) Jesus evangeliza: "Vamos a outro lugar, às aldeias vizinhas, para que eu pregue também lá". Jesus quer chegar a todo o lado, porque onde ele chega o fermento do Reino começa a fermentar a massa do mundo. Mas quais são as mãos que levam o fermento ou o sal do Evangelho à realidade do mundo? As nossas! "Ai de mim se eu não anunciar o evangelho!", diz hoje São Paulo na segunda leitura. E este "ai de mim!" não é só do Apóstolo, mas de cada cristão!
4. Por fim, notemos como o evangelista sublinha a atitude de PROXIMIDADE: "Aproximou-se [da sogra de Simão] e fê-la levantar-se, tomando-a pela mão"; sai ao encontro da multidão de doentes e possessos reunidos à porta; percorre a Galileia ao encontro de quem precisa de uma palavra de esperança e de um gesto de conforto.
Não será este um apelo urgente à Igreja - isto é, a cada um de nós - para se "converter"... ao mundo?! isto é, para ir ao encontro das pessoas?! para estar presente onde a humanidade sofre e luta?! Queixamo-nos de que as pessoas abandonaram as nossas igrejas e talvez ainda esperemos por um milagre: que reconsiderem e voltem, mas agora é óbvio que não será assim. Somos nós que devemos sair e estar ao lado deles numa atitude de serviço humilde. Mas para isso é preciso que o Senhor venha ao nosso encontro e nos faça levantar, tomando-nos pela mão, libertando-nos da febre do triunfalismo. Quando esperaríamos como primeiro milagre algo de sensacional, Marcos apresenta-nos a cura da sogra de Simão, o mais humilde dos milagres, mas talvez o mais significativo!
Exercício para a semana
1) Tentar concretizar na minha vida (pelo menos um pouco!) um dos quatro desafios que mencionámos.
2) Interrogar-me sobre a minha reação à afirmação de Paulo: "Ai de mim se não anunciar o Evangelho! Comboni dizia: "O missionário não pode ir sozinho para o céu. Sozinho irá para o inferno!". E o que pensar do cristão que só espera "salvar a sua própria alma"?
P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ
Verona, Fevereiro de 2024
O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas
Marcos 1, 29-39
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãos
Hoje, a primeira leitura é retirada do livro de Job. Sabemos que o livro de Job representa um momento muito importante na revelação bíblica, porque Job representa o homem, a experiência humana, a vida, também como lugar de dúvida, também como lugar de pergunta (e ardente pergunta), também como lugar de interrogação. Job é o homem inconsolável, é o homem que diz: “As respostas religiosas do meu tempo não me servem. Aquilo que a teologia diz não é suficiente. Eu quero falar face a face com Deus, eu quero colocar perguntas a Deus.” O que é fascinante é que Deus aceita este diálogo com Job, este diálogo sem rede, e Job fala com Deus. O livro de Job é quase um livro ateu, quase um livro agnóstico, porque é o homem em carne viva, no seu sofrimento, na sua angústia, que procura um sentido, que procura um significado.
No livro de Job todos nós estamos representados, crentes e não-crentes. Todos nós fazemos nossa a dor, a pergunta, o espinho na carne que Job tem. Todos nós sentimos a dificuldade das palavras de ocasião, circunstanciais, das receitas. E há um momento em que sentimos que nada nos consola se não colocarmos a nossa nudez, a nossa verdade diante de Deus, e é isso que Job faz, e é isso que Deus aceita. Repito, que o protesto de Job seja para nós também uma catequese, porque tantas vezes encontramos mulheres e homens ao nosso lado que vivem a sua existência como uma procura, como uma pergunta. Nós temos a fé, mas a fé não é um sofá, a fé não é um calar todas as questões. Nós sentimo-nos irmãos e irmãs de todas as mulheres e de todos os homens que, no fundo, colocam a grande questão do sentido. A dor maior, o sofrimento maior que cada um de nós pode passar não são as dores físicas; essas doem-nos muito, massacram-nos, torturam-nos, mas esse não é o sofrimento maior. O sofrimento maior é o de não encontrar sentido para a vida, não encontrar significado naquilo que fazemos, nos nossos ritmos; não encontrar um sentido para nos levantarmos da cama, para fazer, para amar, para sonhar. Sentir que, no fundo, a vida é uma paixão inútil – esse é o grande sofrimento humano. E é com esse sofrimento que Jesus vem dialogar e é com esse sofrimento que Jesus nos ensina a dialogar.
Quando preparava as leituras, fiquei muito tocado pelo Salmo 146, e sobretudo por esta estrofe, a estrofe segunda, que diz isto: “ O Senhor sarou os corações dilacerados e ligou as suas feridas. Fixou o número das estrelas e deu a cada uma o seu nome.” Sensibilizou-me muito esta coisa, um bocado espantosa, que o poeta do salmo faz aqui, que é: está a falar de feridas e de repente começa a falar de estrelas. E diz: O Senhor cura o nosso coração dilacerado, liga, ata as nossas feridas, mas também é o Senhor que cuida das estrelas. Então a prece, a oração, liga a dor, a nossa pequena dor, a dor vivida nesta escala íntima, só nossa, que nos parece (quando olhamos para o universo sentimo-nos como um grãozinho de poeira) como um nada, um quase nada. O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas, à imensidão, ao infinito, ao incontável, àquilo que nos deslumbra, àquilo que está tão alto desta terra onde às vezes nos sentimos prostrados, o Senhor faz essa ligação. E como é que Ele faz essa ligação? Tocando-nos, chamando-nos pelo nome, colocando-nos em pé. Quando o Senhor entra na casa da sogra de Simão Pedro e ouve dizer que ela está doente Ele vai, dá-lhe a mão e levanta-a, e ela fica restabelecida. E sentado na porta da casa, com a cidade toda reunida à sua beira, trazendo todos os doentes, o Senhor toca cada um deles, toca as vidas de cada um deles. E como é que Ele os cura? Cura-os também ligando a sua vida a uma dimensão maior, dizendo: “A vida não é só isto, a vida não é só o que tu vives, a vida não é só a nossa dor, a vida é um para lá, um para além, a vida é um passar, a vida é um atirar-se mais para longe, a vida é um encontrar sentido nas estrelas.”
Nós não somos a solução para a nossa vida, não somos a resposta para a nossa vida. Se calhar nós seremos sempre como Job, não encontraremos resposta. Mas este gesto de Jesus, de nos levantar, de nos atirar o olhar mais para longe, de ligar o presente ao futuro, de ligar o humano ao divino, esta passagem, que é uma passagem pascal, é verdadeiramente uma passagem que verdadeiramente nos salva. Sintamo-nos, por isso, queridos irmãs e irmãos, tocados por Jesus, sintamos que Ele toca a nossa mão e que Ele nos levanta. Sintamos que isto em nós que não tem resposta, isto que em nós é noite e sede, isto que em nós é procura e fadiga, isto que em nós é um exercício, às vezes exasperado, de espera, isto em nós que é uma capacidade de rezar ou uma incapacidade de rezar – o Senhor toca, toca nisso.
O Senhor é capaz de fazer disso uma história de esperança, uma história de sentido, uma história de vida. Jesus, quando a cidade está toda reunida à sua volta, não fica ali, os discípulos de manhã procuram e não O encontram, e Jesus diz: “Não podemos ficar só num lugar, temos de ir mais longe, temos de atirar o nosso olhar mais para longe e, no fundo, há um ensinamento tão forte nestas palavras de Jesus. Nós temos de sair da nossa zona de conforto também, e temos de experimentar criar vida, criar relação, criar encontro, noutras zonas, noutros territórios, fazendo outras experiências. Às vezes fazemos outras coisas demasiado cedo e sentimos que tudo acabou, que tudo está feito, que agora é só aqui, e o Senhor pede-nos sempre um mais além, pede-nos sempre para sair de nós.
[No dia 8 de fevereiro, dia de Santa Bakhita, realiza-se a Jornada Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas], é a jornada mundial contra o tráfico humano, as várias formas de tráfico humano. Nós sabemos também em Portugal que um grande número de pessoas está sem os seus direitos, sem as suas condições: são vendidas no seu trabalho, são vendidas no seu corpo através da prostituição; sabemos que há redes terríveis ao nosso lado, que nós só não vemos porque não queremos, que nós não vemos só porque não queremos. São redes de estupro, são redes de atropelamento da dignidade, da dignidade humana. Ganhar consciência, também da dificuldade, da pobreza, da miséria, do sofrimento dos outros. E isso é também uma missão que o Senhor Jesus nos dá. (…)
Uma iniciativa desta jornada de oração contra o tráfico humano é acender uma luz (…) Vamos acender esta luz e deixar que o Senhor nos inquiete. O Senhor tem de nos inquietar, tem de nos colocar o coração a arder, a querer mais, a querer mais e em todas as idades – temos aqui pessoas seniores, temos jovens,… Jesus tem de nos colocar o coração a arder e dizer: “O que é que eu posso fazer? O que é que daqui vai sair?”
Que o Espírito Santo fecunde, fecunde o nosso coração e nos dê esta capacidade de atenção, de atenção ao outro, de atenção à vida. Porque, no fundo, a questão do sentido, isto de ligar a ferida, a nossa ferida, às estrelas, também passa pela nossa capacidade de doação, pela nossa capacidade de entrega, e sentirmos que a nossa vida encontra o seu sentido também quando ela se apaixona, se enamora por uma causa, por uma razão que é maior do que nós próprios, maior do que o nosso pequeno conforto, do que a nossa tarefa, do que o nosso quintal. Quando nos apaixonamos por uma coisa maior, então a vida também ganha outra respiração, ganha outra luz. Acendamos uma luz, esta luz que o Espírito traz aos nossos corações.
http://www.capeladorato.org
Mão na mão com o Infinito
Ermes Ronchi
Marcos apresenta o relato da jornada-tipo de Jesus, ritmada sobre as suas três ocupações preferidas: mergulhar na multidão e curar, fazer com que as pessoas fiquem bem; mergulhar na fonte secreta da força, a oração; e daí regressar envolvido em Deus e anunciá-lo.
Tudo parte da dor do mundo. E Jesus toca, fala, agarra as mãos. O milagre é, na sua beleza jovem, o início da boa nova, o anúncio de que é possível viver melhor, encontrar vida em plenitude, viver uma vida bela, boa, alegre.
A sogra de Simão estava de cama com febre, e logo lhe falam dela. Milagre tão pobre de expetativas, tão pouco vistoso, onde Jesus nem sequer fala. Contam os gestos. Não procuramos diante da dor inocente respostas que não existem, mas procuramos os gestos de Jesus.
Ele escuta, aproxima-se, toma pela mão. Mão na mão, como força transmitida a quem está exausto, como pai ou mãe a dar confiança ao filho pequeno, como um desejo de afeto. E levanta-a. É o verbo da ressurreição. Jesus levanta, eleva, faz erguer a mulher, devolve-a à sua postura direita, ao orgulho do fazer, de cuidar.
A mulher levantou-se e começou a servir. O Senhor tomou-te pela mão, faz tu também o mesmo, toma alguém pela mão. Quão cheia está uma mão. Um gesto assim pode levantar uma vida!
Quando ainda estava escuro, saiu para um lugar secreto e lá orava. Um dia e uma noite para pensar no homem, uma madrugada e uma aurora para pensar em Deus. Há na vida fontes secretas, a frequentar, porque eu vivo das minhas fontes. E a primeira entre elas é Deus.
Jesus, assediado de dor, num crescente turbilhão (à noite a porta de Cafarnaúm transborda de multidão e de dor, e depois de vida reencontrada), sabe criar espaços.
Ele ensina-nos a criar espaços secretos que dão saúde à alma, espaços de oração, onde nada é mais importante do que Deus, onde lhe digo: estou diante de ti; por um tempo que sei ser breve não quero nada antes de ti; durante estes poucos minutos nada vem antes de ti. É a nossa declaração de amor.
Por fim o terceiro momento. Mestre, que fazes aqui? Todos te procuram. E Ele: vamos para outro lugar. Subtrai-se, não procura um banho de multidão. Procura outros espaços para ser dador de vida, procura as fronteiras do mal para o deter, procura outros homens para os fazer estar bem.
Vamos nós também a outros lugares para erguer outras vidas, apertar outras mãos. Porque Ele precisa de apertar firmemente a minha mão, não de receber honras. Homem e Deus, o Infinito e o meu quase nada: mão na mão. E segurar-mas com força: é este o ícone terno e poderoso da boa nova.
Ermes Ronchi In “Avvenire”
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
http://www.snpcultura.org
Como Jesus cuida e cura
Enzo Bianchi
No domingo passado, começamos a ler o relato da “jornada de Cafarnaum” (cf. Mc 1, 21-34), exemplo concreto de como Jesus vivia, falando do reino de Deus e fazendo sinais que o anunciavam. E hoje o relato continua…
Jesus e os quatro primeiros discípulos, tendo saído da sinagoga, vão para a casa de dois deles, Pedro e André. Assim como havia uma dimensão pública da vida de Jesus, assim também havia uma dimensão privada: a vida vivida com seus discípulos, ou com seus amigos, a vida em casa, onde falavam, ouviam, comiam juntos e descansavam. Estas também são dimensões humanas da vida de Jesus, às quais, infelizmente de modo muito fácil, não prestamos atenção, mas fazem parte da realidade, do ofício do viver cotidiano…
Assim como esquecemos que Pedro, tendo uma sogra, não era célibe, mas casado, mesmo que não tenhamos notícias mais precisas: tinha filhos? Era viúvo? Certamente, o encontro com Jesus mudou a vida do pescador Simão, que significativamente dirá mais tarde a Jesus: “Nós deixamos tudo e te seguimos” (Mc 10, 28).
Agora, tendo entrado na casa de Pedro e André, percebem que ninguém os acolhe: deveria ser a tarefa da sogra de Pedro, mas uma febre a mantém na cama. A febre é uma indisposição que acontece muitas vezes e certamente não é grave ou preocupante. Jesus, informado sobre o assunto, aproxima-se dessa mulher acamada, toma-a pela mão e faz com que se levante. Ele quer encontrá-la e, assim que está perto dela, sem dizer uma palavra, faz gestos simples, muito humanos, afetuosos: toma na sua mão aquela mão febril, estabelece uma relação cheia de afeto e, em seguida, com força, ajuda-a a se levantar.
Esses são os gestos de Jesus que curam: não gestos de um curandeiro profissional, não gestos médicos, muito menos gestos mágicos. Se estivermos atentos, compreendemos que, a exemplo de Jesus, a um doente, devemos sobretudo nos aproximar, fazer-nos próximos, tirá-lo do seu isolamento, pegando a sua mão na nossa, em um contato físico que lhe diga a nossa presença real e, por fim, fazer algo para que o outro se levante do seu estado de prostração.
Essa ação com que Jesus liberta a mulher da febre pode parecer pouca coisa (“um milagre desperdiçado”, escreveu um exegeta!), mas a febre é o sinal mais comum que nos mostra a nossa fragilidade e nos preanuncia a morte, da qual toda doença é indício.
Sim, Jesus está sempre agindo em relação aos nossos corpos e às nossas vidas, e sempre discerne, mesmo quando há apenas febre, que o ser humano adoece para morrer, que qualquer doença é uma contradição à vida plena desejada pela Senhor para cada um de nós. Portanto, não nos detenhamos na crônica da ação de Jesus, mas compreendemos como ele, Aquele que vem com seu Reino, está em luta contra o mal, fá-lo recuar, até vencer a morte, cujo rei é o demônio, aquele que dá a morte e não a vida.
Jesus aparece, assim, como aquele que faz levantar, ressuscita – verbo egheíro, usado para a ressurreição da filha de Jairo (cf. Mc 5, 41) e para a própria ressurreição de Jesus (cf. Mc 14, 28; 16, 6) – cada homem, cada mulher da situação de mal em que jaz. Ele dá “os sinais” do reino de Deus que vem, onde “não haverá mais morte, nem luto, nem lamentação, nem dor, quando Deus enxugará as lágrimas dos nossos olhos” (cf. Ap 21, 4; Is 25, 8). Quando Jesus cura concretamente, ele narra Deus como Rapha’el, “aquele que cura” (cf. Ex 15, 26) e aparece como o médico dos corpos e das almas (cf. Mc 2, 17).
O que é destacada como fruto desse “fazer levantar” por parte de Jesus é o serviço imediato, a pronta diakonía por parte da sogra de Pedro. Levantada do mal, cabe a nós o serviço aos outros, porque servir o outro, cuidar do outro é viver o amor para com ele: o amor ao outro é querer e realizar o seu bem. No caso presente, essa mulher, já de pé, oferece comida a Jesus e aos seus discípulos, servindo aqueles que a serviram até libertá-la da sua doença.
Chega a noite, o dia descrito por Marcos como o primeiro em que Jesus atua está quase acabado, mas eis que, de toda a cidade, são trazidos doentes e endemoninhados para a frente da porta da casa onde ele está. Enfaticamente, o evangelista escreve “todos os doentes… a cidade inteira”, porque o fluxo era considerável.
O que toda essa gente buscava? Em primeiro lugar, cura, mas certamente também desejava ver milagres: a medicina era cara demais, muitas vezes sem eficácia, e, além disso, naquele tempo, havia muitos exorcistas, curandeiros, magos, aos quais as pessoas se dirigiam. Os que vão ao encontro de Jesus, porém, não encontram nem um mago nem um operador de milagres. Encontram alguém que cura aqueles que encontra, falando, entrando em relação, mas sobretudo suscitando nos doentes fé-confiança: e, quando Jesus encontra essa confiança, então pode se manifestar a vida mais forte do que a morte.
Jesus não curava a todos, mas – dizem-nos os Evangelhos – curava todos aqueles com quem se encontrava, e as suas libertações da doença, do pecado ou do demônio queriam ser sinais, indicações a respeito do reino de Deus que ele anunciava e pedia para acolher. Como Mateus interpreta às margens desse trecho, ele se manifesta como Servo do Senhor que “tomou as nossas fraquezas e carregou as nossas doenças” (Mt 8, 17; Is 53, 4).
Jesus combate as doenças para fazer recuar o poder do mal e do demônio, mas isso ocorre ao preço de carregar, ele mesmo, os sofrimentos que tenta derrotar! Pedro sintetizará em uma pregação relatada pelos Atos dos Apóstolos: “Jesus de Nazaré passou fazendo o bem e curando todos os que estavam sob o poder do diabo” (At 10, 38), porque toda situação de afastamento de Deus e de domínio da morte se deve à ação do demônio.
Chega a noite, mas esta também é feita para agir: antes do amanhecer, Jesus sai da casa, vai para um lugar solitário e lá reza. É sua oração da manhã, oração que espera o surgir do sol invocando o Senhor e louvando-o pela luz que vence a noite. Essa ação noturna de Jesus não é secundária, não é um simples apêndice ao dia. É a fonte do seu falar e do seu agir, é o início do seu “ritmo” diário, é o que lhe dá a postura para viver toda a jornada na companhia das pessoas: porque ele é sempre o enviado de Deus, aquele que sempre deve “contá-lo” (cf. Jo 1, 18) às pessoas, e, por isso, está sempre em comunhão com ele.
A oração de Jesus na noite, em lugares desertos, na solidão, é testemunhada várias vezes pelos Evangelhos, até aquela oração com a qual ele prepara espiritualmente sua paixão e morte. Oração cheia de confiança, em que Deus sempre é invocado como “Abba, Papai querido e amado”; oração em que Jesus discerne a vontade desse Pai que é amor e encontra maneiras de realizá-la; oração em que o Espírito Santo, companheiro inseparável de Jesus, é para ele força e consolação.
A vigília, a oração noturna que é operação de todo o corpo e não só das faculdades mentais, é decisiva na vida do cristão, que nunca deve se esquecer dessa “atividade”, verdadeira ação de Jesus.
Mas os primeiros discípulos, a pequena comunidade recém-formada, por iniciativa de Simão, busca Jesus e, nesse “buscar Jesus”, há muito mais do que uma busca para saber onde ele está. Na realidade, o quaerere Deum no Evangelho segundo Marcos torna-se quaerere Jesus, buscar Jesus. E, quando o encontram, significativamente voltado a rezar, dizem-lhe: “Todos estão te procurando!”. Quase o perseguem, mas para quê? Aqui está testemunhado o desejo de ver, escutar, encontrar, pedir curas, invocar a libertação do demônio. “Todos te buscam!”, dizem os discípulos; segundo o quarto Evangelho, até os pagãos dirão: “Queremos ver Jesus!” (Jo 12, 21)
Mas Jesus responde: “Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim”. É hora de ir, de continuar a missão juntos em outros vilarejos ainda não alcançados pela boa notícia, pelo Evangelho do Reino. Mas o fundamento de toda essa missão – “para isso que eu vim”, “para isso que eu saí” – continua sendo uma expressão ambígua: saiu da cidade na noite, ou saiu de Deus, do Pai, como entenderíamos se essa expressão fosse atestada pelo quarto Evangelho?
Eis a missão de Jesus: ele é enviado pelo Pai e saiu ao mundo para fazer o bem e dar a salvação. E, assim, de vilarejo em vilarejo, no sábado de sinagoga em sinagoga, Jesus pregava e tirava espaço dos demônios. De Cafarnaum a toda a Galileia…
http://www.ihu.unisinos.br
Anúncio do Evangelho: resposta de Deus ao sofrimento do homem
Romeo Ballan, mccj
A vida é «uma realidade árdua nesta terra», afirma Job (I leitura). O personagem e o livro pertencem, desde sempre, à literatura mundial. A história de Job, de facto, é um desafio permanente para todos, porque induz necessariamente a reflectir sobre o problema do sofrimento e do mal no mundo, sobre a relação entre mal físico e mal moral, sobre a fé em Deus e a sua aparente distância ou mesmo impotência perante o mal, sobretudo perante o sofrimento das pessoas inocentes. A vida humana na terra é, para Job, um duro trabalho de escravos (v. 1-2), entre «desilusão e noites de amargura» (v. 3), sem esperança, porque «a minha vida não passa de um sopro» (v. 7).
As três leituras deste domingo são uma resposta de Deus ao sofrimento do homem. A inegável dureza da vida humana – descrita na aventura de Job – só encontra vislumbres de alívio e de esperança na fé em Deus, o qual é sempre Pai da vida. No Evangelho deste domingo, Jesus mostra com gestos concretos qual é a resposta de Deus perante o sofrimento humano: resposta de proximidade, solidariedade, partilha, missão. Vemos isso nos quatro momentos desta jornada de Jesus.
1. Cura a sogra de Pedro. Observemos os pormenores da cena: os discípulos falam dela a Jesus, suplicam-lhe; Ele aproxima-se (faz-se próximo), toma-a pela mão, alivia-a (Marcos usa o verbo grego ‘egeiro’, próprio da ressurreição), cura-a no corpo e no espírito, «e ela pôs-se a servi-los» (v. 31). A saúde recuperada é em vista do serviço a assumir. Toda a cena desemboca no serviço aos outros, porque o serviço é a expressão mais elevada da vida!
2. Jesus cura «muitos que eram afectados por várias doenças», expulsa demónios, etc., mas não quer publicidade (v. 34). Estas cenas, que se repetem frequentemente nos Evangelhos, convidam a reflectir sobre o modo como Deus reage perante o sofrimento: ouve os lamentos, faz-se próximo, sofre, comove-se, chora, intervém, resolve alguns casos… Mas não elimina todo o mal do mundo, aliás o próprio Jesus será dele vítima inocente. Porquê? Porque é que existe o mal no mundo? Enquanto estivermos na terra, as respostas, mesmo as da fé, serão apenas parciais. Não nos resta senão fitar o Crucificado, confiar em Deus Pai. Ele sabe porquê!
3. Depois da jornada cansativa, Jesus concede-se apenas algumas horas de descanso, levanta-se cedo e retira-se para um lugar deserto para rezar (v. 35). Na manhã de sábado Jesus já tinha rezado na sinagoga (v. 29) com a comunidade; agora reza sozinho. Sente necessidade íntima de falar com o seu Pai, de compreender a sua vontade, para lhe ser fiel. Por amor! Na oração, Jesus, o missionário do Pai, compreende sempre melhor qual é a sua missão e como levá-la a cumprimento.
4. Todos procuram Jesus, querem apoderar-se dele. Ele não cede aos pedidos interesseiros e responde mostrando a universalidade da sua missão: «Vamos a outros lugares… para pregar aí também» (v. 38). A missão de Jesus, e a da Igreja, é sempre um ir além, um ir adiante, passar fronteiras, sem limitar-se aos pedidos de alguns poucos, sem instalar-se nas posições adquiridas, nem contentar-se com os resultados. Porque a missão tem como campo natural o mundo inteiro. No Evangelho de hoje aparecem pelo menos seis vezes os adjectivos: todos, muitos. É verdade que o sofrimento é herança para toda a família humana, mas ainda mais certa e universal é a salvação de Deus para todos!
O apóstolo Paulo (II leitura) tinha-o compreendido bem e fez do anúncio do Evangelho aos gentios a razão da sua vida. Sentia a urgência e o dever: «Ai de mim se não anunciar o Evangelho!» (16). Ele anuncia-o na mais completa gratuidade, faz-se «servo de todos», «tudo para todos» (v.19.22). Recordando o episódio da conversão de Paulo (celebrada recentemente), constata-se que no caminho de Damasco não nasceu apenas o cristão Paulo, mas também o Paulo missionário, melhor, o maior apóstolo das gentes.
Após séculos, o testemunho de Paulo toca-nos e estimula-nos. O Baptismo faz de cada cristão um missionário. Para toda a vida! Cada um, segundo a sua condição, torna-se homem/mulher da caridade, da missão. O anúncio do Evangelho aos povos é um serviço refinado de caridade; é a resposta mais completa ao sofrimento e às necessidades do homem. Aliás é o melhor serviço integral que, como cristãos, podemos oferecer ao mundo.
Que sentido têm o sofrimento e a dor que acompanham a caminhada do povo pela terra?
Qual a “posição” de Deus face aos dramas que marcam a nossa existência? A liturgia deste V Domingo do Tempo Comum reflete sobre estas questões fundamentais. Garante-nos que o projeto de Deus para o seu povo não é um projeto de morte, mas é um projeto de vida verdadeira, de felicidade sem fim.
As ações que Jesus nos apresenta mostram a eterna preocupação de Deus com a vida e a felicidade dos seus filhos. O projeto de Deus para os homens e para o mundo não é um projeto de morte, mas de vida; o objetivo de Deus é conduzir os homens e mulheres ao encontro desse mundo novo, o “Reino de Deus”, de onde estão ausentes o sofrimento, a maldição e a exclusão, e onde cada pessoa tem acesso à vida verdadeira, à felicidade definitiva, à salvação. Talvez nem sempre entendamos o sentido do sofrimento que nos espera em cada esquina da vida; talvez nem sempre sejam claros, para nós, os caminhos por onde se desenrolam os projetos de Deus… Mas Jesus veio garantir-nos absolutamente o empenho de Deus na felicidade e na libertação dos seus filhos. Resta-nos confiar em Deus e entregarmo-nos ao seu amor.
ORAÇÃO
Deus de luz, nós Te bendizemos:
Quando te chamamos, Tu responde “Eis-me aqui”, nos encontros e na presença dos nossos irmãos e irmãs.
Nós Te pedimos pelos famintos e pelos infelizes sem abrigo, mas sobretudo pelas missões que nos confias.
Enche-nos do teu Espírito de generosidade. Que Ele nos abra as mãos para a partilha e nos inspire palavras de esperança e de coragem.
Nós Te damos graças, Pai todo-poderoso, pelo teu Filho Jesus Cristo, o Messias crucificado, que transformou a cruz em passagem para a vida.
Nós Te pedimos: purifica-nos das sabedorias ilusórias e das doutrinas contrárias ao Evangelho; pelo teu Espírito, fortifica a nossa fé, faz-nos aderir ao teu Filho, porque só a Ele queremos conhecer.
Pai Nosso que estais nos céus, nós Te damos glória pela luz que entrou no nosso mundo, manifestada no teu Filho Jesus, e pela multidão dos fiéis que caminharam no seguimento da luz, fazendo o bem.
Nós Te pedimos por todas as nossas assembleias cristãs: que elas dêem sabor à nossa humanidade e sejam a luz que brilha para o nosso mundo.