Neste último “domingo das parábolas” (15º, 16º e17º), são-nos oferecidas mais outras três. São comparações que nos impelem a apostar tudo naquela que é a única riqueza verdadeira. A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 17º Domingo do Tempo Comum, do Ciclo A. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
ONDE ESTÁ O TEU TESOURO?
Mateus 13,44-52
Neste domingo concluímos a leitura do capítulo 13 do evangelho de Mateus, o terceiro discurso de Jesus, no qual ele apresenta o Reino de Deus através de sete parábolas. Hoje apresenta-nos as três últimas, contadas aos apóstolos: o tesouro escondido, o negociante de pérolas e a rede que apanha toda a espécie de peixes. As duas primeiras são semelhantes e falam-nos da alegria daqueles que descobriram o Reino. A terceira é semelhante à do trigo e do joio de domingo passado, ou seja, fala da coexistência do bem e do mal.
1. QUEM são os buscadores de tesouros e pérolas
“O reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido num campo. O homem que o encontrou tornou a escondê-lo e ficou tão contente que foi vender tudo quanto possuía e comprou aquele campo”.
As histórias de tesouros são sempre cativantes, tanto hoje como no tempo de Jesus. Numa terra muitas vezes palco de guerras, era comum esconder as riquezas quando o inimigo chegava, enterrando-as no campo ou no chão da casa antes de fugir, na esperança de as recuperar mais tarde, o que nem sempre acontecia. Ainda hoje acontece os arqueólogos encontrarem “tesouros” de moedas durante as escavações. Ora, este pobre agricultor da parábola é um dos felizardos que, por um golpe de sorte, encontra a grande oportunidade da sua vida e não a deixa escapar: cheio de alegria, vende todos os seus bens para comprar aquele campo!
“O reino dos Céus é semelhante a um negociante que procura pérolas preciosas. Ao encontrar uma de grande valor, foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola”.
No Oriente, as pérolas eram consideradas o bem mais precioso, como os diamantes para nós. Eram o símbolo da beleza, daí que “Peniná”, “Pérola”, fosse também um nome dado às raparigas (ver 1 Samuel 1,2). O negociante da parábola andava à procura destas pérolas e, quando encontrou uma de grande valor, também ele não hesitou em vender todos os seus bens para a comprar.
Ambos, o pobre camponês e o rico comerciante, têm o mesmo comportamento: encontram, vão, vendem tudo e compram. Mas enquanto o camponês encontra o tesouro por um golpe de sorte, o comerciante encontra a pérola, talvez após uma longa busca.
Nós somos esses buscadores de tesouros e pérolas, de riqueza e beleza, de perfeição e infinito. A nossa vida é um campo semeado de tesouros escondidos debaixo dos nossos pés, mas a lama impede-nos de os ver. A nossa vida é um bazar de pérolas, mas demasiado empoeiradas para perceber o seu esplendor. E acontece também que sacrificamos tudo, a vida e a alma, deslumbrados por um falso tesouro, para nos encontrarmos com um punhado de moscas nas mãos.
2. O QUE são o tesouro e a pérola?
O que é esse tesouro ou essa pérola? Para Salomão, é a Sabedoria (primeira leitura). Para o salmista, é a Lei, a Torah (Salmo 118). Para São Paulo, é a vocação cristã (segunda leitura). Para Jesus, é o Reino. Mas poderíamos refletir sobre as duas parábolas, alargando as suas perspectivas.
O tesouro é, antes de mais, Cristo. Por ele, os apóstolos renunciaram a tudo, e muitos outros o fizeram depois deles. Paulo considerava tudo como lixo em comparação com Cristo (Filipenses 3,8). Muitos cristãos estão prontos a dar a vida para não o perderem. Mas há também aqueles que não descobriram este tesouro nele, como o jovem rico que se afastou triste. Como Judas, que o vendeu por trinta moedas. Como muitos cristãos que, de facto, talvez nunca o tenham encontrado e por isso facilmente o trocam por uma 'quinquilharia' qualquer.
Também nós somos o tesouro, a pérola que Cristo encontrou no campo ou no mercado do mundo. É por isso que Cristo nos resgatou “não a preço de coisas corruptíveis, como a prata e o ouro... mas com o seu precioso sangue” (1 Pedro 1,18-19).
Pérolas ou tesouros são também as pessoas que nos rodeiam, embora escondidos por detrás dos seus limites, defeitos e misérias.
3. ONDE encontrar o tesouro?
Onde e como encontrar o tesouro ou a pérola? Não é preciso ir longe, atravessar mares e montanhas, subir aos céus ou descer às profundezas... (Deuteronómio 30,11-14). Mas deixem-me contar-vo-lo através duma história chassídica (o chassidismo é um movimento espiritual judaico): a história do rabino Eisik, filho do rabino Jekel de Cracóvia.
Após anos e anos de dificuldades, que não tinham abalado a sua confiança em Deus, recebeu em sonho a ordem de ir a Praga procurar um tesouro debaixo da ponte que conduzia ao palácio real. Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik pôs-se a caminho e chegou a Praga a pé. Mas a ponte era vigiada dia e noite por sentinelas e ele não teve coragem de escavar no local indicado. No entanto, regressou à ponte todas as manhãs, percorrendo-a até ao fim da tarde. Por fim, o capitão dos guardas, que tinha reparado nas suas idas e vindas, aproximou-se dele e perguntou-lhe amigavelmente se tinha perdido alguma coisa ou se estava à espera de alguém. Eisik contou-lhe o sonho que o tinha trazido do seu país distante. O capitão desatou a rir: “E tu, pobre coitado, vieste até aqui a pé por causa de um sonho? Ha, ha, ha! Estás bem arranjado se confias em sonhos! Então eu também para seguir um sonho que tive devia ter ido até Cracóvia, à casa de um judeu, um tal Eisik, filho de Jekel, para procurar um tesouro debaixo da sua lareira! Eisik, filho de Jekel, estás a brincar? Estou a ver-me a entrar e a vasculhar todas as casas de uma cidade onde metade dos judeus se chama Eisik e a outra metade Jekel!” E voltou a rir-se. Eisik despediu-se dele, voltou para a sua casa e desenterrou o tesouro escondido debaixo da sua lareira!
Há algo que não se pode encontrar em parte alguma do mundo e, no entanto, há um lugar onde se pode encontrar: lá onde nós nos encontramos !
(de Martin Buber, “O caminho do homem”)
P. Manuel João Pereira, comboniano
Castel d'Azzano (Verona) Julho de 2023
Entre a primeira leitura e o evangelho, temos ao menos um ponto comum: a escolha. De fato, podemos ver, na leitura, como Salomão escolhe a Sabedoria, ou seja, a arte do discernimento, de preferência a uma vida longa, à riqueza ou à morte dos seus inimigos.
No evangelho, igualmente, o homem que descobre o tesouro ou a pérola preciosa prefere-os a todo o resto. Salomão escolheu a Sabedoria, não por interesse próprio, mas por seu povo; povo, aliás, que não era propriedade sua, posto tratar-se do povo escolhido por Deus.
A oração do rei supõe, portanto, um desapossamento total. Não é proprietário sequer da Sabedoria, já que esta lhe vem de Deus, de quem, de alguma forma, será apenas um «oficial». E isto nos faz pensar no que, de diversas formas, Jesus nos fala no evangelho de João: «As obras que faço não são minhas, mas daquele que me enviou.»
O mesmo valendo para as suas palavras. De tal forma que, sendo totalmente transparente, exatamente por isto, através dele podemos ver e ouvir o Pai. Com uma diferença: Salomão recebeu a Sabedoria, já o Cristo é ele mesmo a Sabedoria. Aliás, escolher a Sabedoria já é Sabedoria.
Por isso Salomão é imagem do Cristo, tanto assim que este herdará os títulos de Salomão: Rei de Sabedoria, Príncipe da Paz, Rei da glória. Mas Salomão não é somente imagem do Cristo, daí suas derrapagens como sabemos: será por isso a origem da separação das tribos, enquanto que Cristo será a origem da sua unidade.
O povo sobre o qual Salomão deve reinar é numeroso; o povo de Cristo é a humanidade inteira.
A escolha do homem e a escolha de Deus
Passemos ao tesouro e à pérola. Grande, portanto, é a Sabedoria do homem que os escolheu e que por eles sacrifica todo o resto. O evangelho diz que, através das imagens do tesouro e da pérola, trata-se do Reino de Deus.
Reino este que vale preferir a tudo o que a existência nos possa dar, posto ser ele vida indestrutível e amor sem mancha alguma. Se, contudo, podemos escolher o Reino, é porque Deus nos escolheu antes: nossa escolha é, portanto, uma resposta a um amor anterior, se é que podemos falar de anterioridade, em se tratando de eternidade.
A 2ª leitura nos fala desta escolha primeira de Deus, com as palavras «os que de antemão ele conheceu», «predestinados a serem conformes à imagem de seu Filho». Nesta escolha recíproca, vamos encontrar o tema do matrimônio, que é bem mais que uma metáfora: os esposos passam a limpo o que se dá entre Deus e a humanidade, significando-o, como se pode ler em Efésios 5,26-32.
Se a Sabedoria consiste em amar (escolher) a Deus sobre todas as coisas, por isso mesmo, em sua mesma Sabedoria, Deus ama o homem sobre todas as coisas. Não por outro motivo, este de quem as palavras e o comportamento revelam Deus, Cristo, amou os seus «até o fim» (João 13,1), preferindo-os à sua própria vida.
Para Cristo, o homem é o tesouro escondido no campo, por quem sacrifica a sua vida, a sua honra, o seu poder e a sua glória; resumindo, a sua «forma divina», conforme diz Paulo em Filipenses 2,6-8.
Em seus comentários sobre São João, Santo Agostinho insiste em que cada um é atraído pelo seu prazer. E, com o prazer em perspectiva, daí nasce o desejo. A escolha do tesouro e da pérola é, portanto, fonte de alegria: «Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens», diz Jesus.
Não somos, então, convidados ao masoquismo, à tristeza etc., como poderiam nos fazer pensar a necessidade de sacrificar tudo ao Reino e ao espetáculo da morte de Cristo. Trata-se de deixarmo-nos atrair por nosso desejo mais profundo, o desejo de viver, e viver para sempre no amor.
É verdade que este desejo fundamental é com frequência inconsciente, extraviando-se numa multidão de desejos ilusórios, porque o seu objeto não nos faz sair da perspectiva da morte. Concretamente, onde está o tesouro, onde está a alegria, onde se encontra o amor de Deus sobre todas as coisas?
Não tem mistério: está no amor, simplesmente; ou seja, no serviço ao próximo, uma vez que através dos outros é que amamos a Deus, este Deus a quem não se pode amar, isto é, servir, diretamente (1 João 4,20).
O que importa, portanto, é que nos interroguemos sobre o que desejamos verdadeiramente, o que procuramos em nossa existência, ou seja, qual o sentido da nossa vida. Sem esquecer que não se trata de nenhum esforço ascético, mas de deixarmo-nos atrair por este amor que nos precede: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrair» (João 6,43). Lemos em Mateus 6,21: “Onde está teu tesouro, aí estará também teu coração”.
Tudo o que existe, tudo o que acontece é “comparável ao reino dos céus” porque tudo, salvo o pecado e o mal que ele acarreta, é à imagem de Deus. E até mesmo este mal (comentário precedente) é recuperado por Cristo em sua crucifixão, para gerar uma vida nova.
Eis aí o campo no qual está escondido o tesouro do Reino. O mistério da criação, que faz com que existam tantas coisas ao invés de nada e que faz com que eu mesmo esteja aqui, revela e também esconde a “mão” de Deus.
De tão habituados a habitar este universo, não mais nos admiramos com o fato de que ele esteja aí. Numerosos são, no entanto, os insatisfeitos, que procuram o tesouro que nele está escondido. Não é este o caso, na parábola, de quem o encontra.
E isto é importante, porque somos tentados a imaginar que somente os que buscam a Deus podem encontrá-lo. Mas Ele muitas vezes vem nos encontrar de improviso, tal como ocorreu com o escritor P. Claudel, por acaso, na catedral de Paris.
Os evangelhos estão cheios destes encontros, a exemplo do episódio da viúva de Naím, em Lucas 7-11, ou do chamamento de Mateus (Mt 9,9). O Reino, portanto, está aqui, na superfície e nas profundezas das nossas existências; e em toda a criação.
Por certo, nesta parábola, quem encontra o tesouro dá prova de certa desonestidade. Nas parábolas, os exegetas dizem que nem todos os detalhes são para serem explorados.
O que está posto em evidência, na descoberta do tesouro, é a alegria e o fato de que, bruscamente, tudo o que este homem possuía deixa de contar para ele. O que supõe que o tesouro do Reino é mais importante que tudo o que possamos ter além dele. Uma nova vida começa. Cabe a nós descobrir em que isto nos interessa.
A pérola rara
À primeira vista, poderíamos acreditar que a parábola da pérola só faz repetir a do tesouro. Reparemos, no entanto, diferenças importantes. Enquanto o homem que encontra o tesouro não buscava nada absolutamente, o negociante “procura pérolas preciosas“.
Temos aí uma preocupação que parece um tanto estranha, no que diz respeito ao “Reino dos céus“. Entretanto, o Reino esconde-se também nesta procura que vai agora ser preenchida e superada.
O negociante encontra o que procura, e tudo o que possui já perde imediatamente toda importância aos seus olhos. Somente a pérola excepcional ganha valor. Ele também vai vender tudo o que possui para adquiri-la.
Traduzindo: a vida que se leva nos domínios de Deus ultrapassa – e quanto! – tudo o que inicialmente contava para nós. A riqueza, em que colocávamos nossa segurança; a consideração, confundida com o valor; o poder, sob qualquer forma que fosse…
Estas três pequenas parábolas devem ser lidas em paralelo com a história do “jovem rico“, em Mateus 19,20-21, por exemplo. Encontramos nelas, se queremos chegar até o fim e tomar posse do que há de melhor, a necessidade de “vender” tudo o que possuímos e em que depositamos uma confiança ilusória.
O que equivale, aliás, a nos libertarmos, colocando-nos no caminho para o Reino, em seguimento do Cristo. Este é o tesouro, esta é a pérola. A parábola do tesouro sinaliza a alegria de quem o encontra, enquanto que o jovem atracado aos seus “muitos bens” vai embora entristecido.
Estes textos nos ensinam notadamente que a nossa situação inicial não conta em nada para o negócio: quer sejamos alguém que passeia por um campo, um negociante à procura de pérolas, um observador da Lei em busca de boa consciência etc., um dia ou outro Deus virá nos encontrar, para nos abrir um futuro inesperado.
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