O drama da primeira geração de cristãos, que é no fundo o drama de todos os cristãos, é perceber se a cruz põe um ponto final, interrompe uma relação de conhecimento, de amor, de vida, de revelação, de esperança. Nós ouvíamos um dos discípulos de Emaús dizer ao misterioso companheiro: “Nós esperávamos que fosse Ele a conquistar a soberania de Israel, nós colocámos Nele tantas expectativas.” A questão é saber se a cruz interrompe essa relação ou se o mistério pascal na sua inteireza de morte e ressurreição, se aquele sepulcro que as mulheres acharam vazio, que João e Pedro confirmaram vazio, na manhã daquela primeira Páscoa, é o sinal de que esta história continua, de que não há propriamente uma interrupção mas há uma continuidade.
Vira a tua omelete na frigideira por amor de Deus!
João 14,15-21
Faltam duas semanas para concluir o tempo pascal. No próximo domingo celebraremos a Ascensão do Senhor e no domingo seguinte o Pentecostes. A Palavra de Deus convida-nos a dirigir o nosso olhar para estas festas.
Hoje, Jesus promete-nos o dom do Espírito: “Eu pedirei ao Pai e ele dar-vos-á outro Paráclito para que fique convosco para sempre, o Espírito da verdade”. Nos seus discursos de despedida, Jesus fala cinco vezes do envio do Espírito. Quatro vezes apresenta-o como o “Paráclito“, termo grego muito rico que designa alguém chamado para ajudar, um consolador, um advogado de defesa… Por três vezes, Jesus caracteriza-o como o “Espírito da verdade”: “Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, ele vos ensinará toda a verdade” (João 16,13).
Aqui, o dom do Espírito Santo aparece ligado ao amor (“Se me amardes…”). O amor é o “ninho” do Espírito. O apóstolo Paulo afirma que: “O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança” (Gálatas 5,22-23). Todas elas qualidades ligadas ao amor.
O amor, motor da vida
O evangelho de hoje coloca em destaque precisamente o amor (cinco vezes), mas – surpreendentemente! – aqui Jesus fala do amor para com a sua pessoa. O amor que, no Antigo Testamento, era reservado a Deus (Deuteronómio 6,4-9), Jesus reclama-o agora para si próprio. Se a vida cristã nasce da fé, ela se manifesta e floresce no amor. O Evangelho de João termina com um tríplice pedido de profissão de amor, onde Pedro representa cada um de nós e toda a Igreja: “Simão, filho de João, tu amas-me?” (João 21,17). Que honra nos dá Deus ao pedir a nossa amizade! Deus tem um coração de amante!
Jesus afirma que o amor por ele se manifesta na observância dos seus mandamentos: “Se me amardes, guardareis os meus mandamentos”. Esta afirmação é repetida duas vezes, como introdução e conclusão da passagem do Evangelho de hoje. Mas não se trata certamente de novas regras ou leis (já temos demasiadas!). Pouco antes, Jesus fala de um “mandamento novo”, o do amor fraterno, distintivo dos seus discípulos (13,34-35). Falará disso mais duas vezes. Jesus preocupa-se com os seus, para que permaneçam unidos depois da sua partida, e por isso diz-lhes: “Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros” (15,17). Mas porque é que ele fala de mandamentos, no plural? Podemos pensar que se refere em geral aos seus ensinamentos, mas sobretudo às duas dimensões inseparáveis do amor: amar a Deus e os irmãos.
No entanto, não é o fazer que leva ao amor, mas é o amor que conduz à ação, como motor da vida. Os apaixonados sabem-no bem. Santo Agostinho, ele próprio um apaixonado, dizia: “Deixai que a raiz do amor esteja em vós, pois dela só pode sair o bem. Ama e faz o que quiseres!”. E o apóstolo Paulo dirá: “O amor de Cristo impele-nos” (2 Coríntios 5,14). Atrever-me-ia a pensar, portanto, que a afirmação de Jesus não coloca a observância como condição do amor, mas o amor como condição prévia da observância. E quando Jesus diz: “Aquele que guarda os meus mandamentos e os observa, esse é o que me ama” … não se poderia aplicar também ao não crente?
“Em”, a preposição do amor
Chama-me a atenção a insistência de Jesus sobre a comunhão profunda criada por este amor: uma habitação mútua! “Naquele dia, sabereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós”. Embora encontremos outras preposições, como convosco, junto de vós, a vós, a privilegiada é em vós, em mim, no Pai… Esta preposição em (έν, em grego) aparece cerca de 25 vezes, nestes dois capítulos 14 e 15, com esta conotação de intimidade profunda, de imanência, de habitação mútua. É por isso que Paulo diz que somos “templo de Deus” (1 Coríntios 3,16). O nosso coração é feito para ser habitado. Mas quem é que o habita?
Aprendamos dos místicos enamorados
Talvez não tenhamos interiorizado suficientemente esta realidade surpreendente e maravilhosa: somos morada de Deus, habitados por Deus, imersos em Deus! Os místicos, pelo contrário, compreenderam-no bem. Tomo o exemplo de um místico francês do século XVII que me fascina há vários anos: Lourenço da Ressurreição (Laurent de la Résurrection), irmão leigo num mosteiro carmelita de Paris. A espiritualidade que viveu e ensinou era muito simples: cultivar o sentido da presença de Deus, através do “exercício contínuo desta presença divina”, em todos os momentos e em todas as circunstâncias, sendo primeiro cozinheiro e depois sapateiro num grande convento:
“Na azáfama da minha cozinha, onde por vezes várias pessoas me falam ao mesmo tempo de coisas diferentes, possuo Deus tão tranquilamente como se estivesse ajoelhada diante do Santíssimo Sacramento. Não é necessário fazer grandes coisas. Viro a minha omelete na frigideira por amor de Deus e, depois de a ter feito, se não me resta mais nada, inclino-me e adoro o meu Deus que me concedeu a graça de a fazer, após o que me levanto mais feliz do que um rei“.
Apesar de ser coxo, devido a uma ferida de guerra, e desajeitado (“grosseiro por natureza e delicado por graça”, segundo o filósofo e teólogo Fénelon, seu admirador), o Irmão Lourenço, sem nunca dar sinais de impaciência ou de pressa, era pontual e preciso nas suas tarefas. Mas…
“Se por vezes me ausento um pouco desta presença divina, Deus faz-se logo sentir na minha alma… com movimentos interiores tão fascinantes e tão deliciosos que me envergonho de falar deles.”
Também eu procuro preparar a omelete da minha reflexão dominical, esperando que seja saborosa ou pelo menos não indigesta, mas em todo o caso feita por amor!
P. Manuel João Pereira Correia mccj
Castel d’Azzano (Verona), Maio de 2023
Queridos irmãs e irmãos,
O drama da primeira geração de cristãos, que é no fundo o drama de todos os cristãos, é perceber se a cruz põe um ponto final, interrompe uma relação de conhecimento, de amor, de vida, de revelação, de esperança. Nós ouvíamos um dos discípulos de Emaús dizer ao misterioso companheiro: “Nós esperávamos que fosse Ele a conquistar a soberania de Israel, nós colocámos Nele tantas expectativas.” A questão é saber se a cruz interrompe essa relação ou se o mistério pascal na sua inteireza de morte e ressurreição, se aquele sepulcro que as mulheres acharam vazio, que João e Pedro confirmaram vazio, na manhã daquela primeira Páscoa, é o sinal de que esta história continua, de que não há propriamente uma interrupção mas há uma continuidade. Há uma transformação na relação, mas ela, na sua verdade, na sua autenticidade persiste e até se torna mais forte, torna-se mais radical.
Os discípulos aproximaram-se deste mistério como nós nos aproximamos, isto é, a tatear, sem ver claro, sem perceber muito bem. Mas como é que é verdadeiramente? Como é que acontece? Como é que vai ser agora? Como é que isto se torna uma verdade em mim? É a tatear, é entre dúvidas – nós estamos da mesma maneira que os discípulos, pois assim nos é narrado pelos primeiros relatos cristãos.
Contudo, do ponto de vista de Jesus, Ele explica como é este mistério que acontece em nós. Ele explica assim, nas palavras do Evangelho de S. João que dedica muito do seu evangelho precisamente a este ponto: Como é que nós vivemos a fé pascal? Como é que nós vivemos a nossa relação com Jesus, hoje, depois da Sua cruz? Não como uma relação interrompida e fracassada mas como uma relação que nos renova, que nos potencia, que nos dá vida, que nos vivifica por dentro. E no Evangelho de S. João, Jesus diz-nos: “Permanecei no meu amor, continuai a amar, continuai a amar. Porque eu não vos deixarei órfãos, não haverá um vazio. Continuai a amar-Me e eu enviarei o Espírito. Esse Espírito é o defensor, esse Espírito é o Espírito da Verdade, esse Espírito é o Consolador, esse Espírito é o Recriador, esse Espírito é Aquele que dentro de vós defenderá a fé. Porque às vezes o dilema da fé e da descrença, da noite e do dia, da esperança e do desalento é sobretudo vivido no palco do nosso coração, no interior da nossa alma. Ora, Eu vou mandar o Espírito e Ele há de ser o defensor da fé, da esperança e do amor dentro de cada um de vós.”
Tendo o Espírito nós permanecemos numa relação firme, amamos e sentimo-nos amados, sentimos que Jesus está presente, sentimos o mundo não como o lugar que é o vazio de Deus mas como um lugar onde esse encontro se celebra de tantas maneiras, numa multiplicidade de sinais. Porque amando nós sentimos Jesus presente e o Espírito ativa em nós essa capacidade de querer, essa capacidade de esperar, essa capacidade de continuar fiel ao próprio Amor. Este é o tempo em que nós dizemos “Maranathá”, dizemos “Senhor, vem. Vem no Teu Espírito.” Cada cristão é uma consequência do Espírito Santo. Nós acreditamos, nós dizemos o Credo (vamos dizer daqui a pouco de novo), o símbolo da nossa fé, porque o Espírito Santo está em nós. Nós dizemos o nome de Jesus, e esse Nome faz diferença na nossa vida, porque o Espírito nos move nesse sentido. Nós rezamos o Pai-nosso porque é o Espírito que grita “Abbá, ó Pai!” dentro de nós e Se junta à nossa fragilidade, dando força para que essas palavras nos arquitetem, essas palavras nos estruturem. O Espírito é a presença do Ressuscitado em nós. O Espírito é a continuação desta história, e uma continuação que é eloquente, uma continuação que não é repetida, não é a mesma; uma continuação que é a fantasia do Espírito, a criatividade do Espírito que faz derramar em nós dons diferentes, carismas diferentes, competências diferentes para construirmos o Reino de Deus, para fazermos essa experiência do Reino de Deus onde quer que estejamos, onde quer que seja o nosso campo de atuação. É o Espírito que nos move, por isso, o Espírito Santo é o grande protagonista.
É interessante nós olharmos para o livro dos Atos dos Apóstolos que estamos a ler nestes domingos de Páscoa. Aparecem-nos atores principais da história do Cristianismo, apareceu-nos Pedro, hoje aparece-nos Filipe que vai converter a Samaria, daqui a pouco vai-nos aparecer Paulo. Mas serão eles os verdadeiros protagonistas do crescimento do Cristianismo? Não, o verdadeiro protagonista dos Atos dos Apóstolos e da Igreja, o verdadeiro protagonista das nossas vidas é o Espírito Santo. Às vezes achamos que somos nós que fazemos, não, é o Espírito Santo que está em nós, é o Espírito Santo que atua através de nós, é o Espírito Santo que nos empurra, é o Espírito Santo que nos move, Ele é a força motriz da vida da Igreja e da vida de cada cristão. Por isso, nós precisamos tanto do Espírito Santo e precisamos redescobrir a fé no Espírito Santo.
O século XX, em termos da teologia e da eclesiologia, é um marco muito importante quando ele descobre a pneumatologia. Isto é, o Espírito Santo tem sido o grande esquecido da história do Cristianismo. Porque nós pensamos em Deus, e somos uma religião monoteísta, e falamos de Deus do Deus único. Nós somos cristãos porque acreditamos no Deus que nos é revelado por Cristo, na vida de Cristo, na Sua palavra e no acontecimento da Sua existência. E o Espírito Santo onde é que fica? O Espírito Santo muitas vezes fica completamente esquecido. E pode acontecer que nós, cristãos, até rezemos a Deus, rezemos a Jesus mas nunca tenhamos rezado ao Espírito Santo. Até pode acontecer que nós, cristãos e cristãs, não sintamos de uma forma consciente como o Espírito Santo está em nós, como nós somos um fruto do Espírito Santo, como precisamos entregar a nossa vida ao Espírito Santo, declararmo-nos seus instrumentos, pedirmos a sua ajuda, a sua iluminação, a sua força para poder ser, para poder ser mais, para poder ser melhor.
Por isso, precisamos redescobrir o Espírito Santo. Porque sem o Espírito a Igreja é só memória, o que nós estamos aqui a fazer é só uma lembrança daquilo que foi. O Espírito Santo é que diz: o Cristianismo não é só memória, é presente e é futuro. Porque, não é só lembrar o passado, nós não estamos aqui a ler palavras com dois mil anos, ou dez mil anos, nós estamos aqui a repetir um gesto que aconteceu há dois mil anos, estamos a fazer uma memória de Jesus, mas o Espírito está hoje em nós. Hoje é o primeiro dia, hoje é o dia da Ressurreição, hoje é o dia em que Jesus nos levanta, hoje somos nós os discípulos que andam a anunciar. Hoje somos nós aqueles, como diz a Carta de Pedro, que estão sempre prontos para declarar as razões da sua esperança. Hoje nós somos aqueles que são chamados a viver com alegria, com alegria mesmo o sofrimento, a perseguição, a doença, o luto, a morte. Somos chamados a viver com esperança todas as situações da vida. E porquê? Porque o Espírito Santo, a energia, a força, o vento, o sopro, o hálito, o alento do Espírito Santo está em nós. Por isso, nós precisamos redescobrir o Espírito Santo e o tempo pascal é um tempo de uma grande catequese pneumatológica. Nós temos o pneuma, o Espírito, o animus em nós.
Até em português, é interessante, temos a palavra “desanimado”. O que é um desanimado? É alguém que não tem o animus, perdeu o animus. E às vezes nós somos uma Igreja, somos uma comunidade, somos cristãos desanimados porque nos falta a vivacidade do Espírito, a juventude do Espírito, a alegria deste Espírito que é sempre uma sementeira. O Espírito que está em nós não nos deixa, Ele é o defensor do Evangelho na nossa vida e, através de nós, Ele explicita de uma maneira pacífica a própria Verdade.
Queridos irmãs e irmãos, que cada um de nós se comprometa, neste tempo pascal, a descobrir melhor o Espírito Santo. A descobrir melhor a ler, a pensar, a conversar sobre o Espírito Santo. Porque pode acontecer connosco o que aconteceu com os samaritanos. Eles primeiro receberam só o batismo, mas quando lhes perguntaram “Que batismo é que vocês receberam? Foi o do Espírito Santo?”, eles responderam “ Mas nós nem sabíamos que existe um Espírito Santo.” Ora, pode ser que nos aconteça isto, nós não sabíamos que existe um Espírito Santo. O Espírito Santo é que faz do barro um ser vivo. O Espírito Santo é que faz de uma fé que não é quente nem é fria, é que faz do nosso estado morno, é que faz do nosso tradicionalismo, é que faz da nossa fé que anda ali ‘quer, não quer’, da nossa fé a 50%, a 40%, uma fé viva. O Espírito Santo é que nos dá o sentido da plenitude, o sentido da missão, é que nos torna discípulos e discípulas de Jesus.
Por isso, descubramos o Espírito Santo e cada um de nós reze ao Espírito Santo. Maranathá! Vem Espírito Santo, enche o meu coração, conduz a minha vida! Vem Espírito Santo, ensina-me! Vem Espírito Santo, guia-me! Vem Espírito Santo e faz-me ser! Entrego-me a Ti, Espírito Santo! E veremos que a nossa vida ganhará outra liberdade, ganhará outra força, porque o Cristianismo não é uma invenção nossa.
O Cristianismo é vivido por nós, não por sermos melhores do que os outros, ou mais fortes do que os outros, ou menos cobardes do que os outros, ou menos impuros que os outros. Não, às vezes nós somos os piores do grupo – os piores, os mais fracos, aqueles que jamais seriam escolhidos para entrar num guião da virtude. E, contudo, não é isso que conta, o que conta é que numa massa frágil, vulnerável como a nossa Deus insufla o Seu Espírito. E então, nós somos uma invenção do Espírito e se nos transcendemos é na força do Espírito, e se nos renovamos é na força transformadora do Espírito, e se a nossa fé débil se fortalece é porque o Espírito acende a Sua luz dentro de nós. E se somos capazes de dizer um “sim” com uma força que nós não sabíamos existir dentro de nós é porque é o Espírito Santo que está a dizer esse “sim”, nesta hora precisa das nossas vidas. É o Espírito em nós. Por isso, precisamos abrir o nosso coração ao Espírito, pedir mais a ajuda do Espírito Santo, conhecê-Lo melhor, amá-Lo melhor. Porque é este Espírito que não nos deixa órfãos, que não nos deixa sós. E é este Espírito que é o vento de Deus, o sopro de Deus que empurra a nossa vida e a cada momento nos torna novos.
José Tolentino Mendonça
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