A Palavra de Deus também funciona como um espelho. Como um espelho onde nós encontramos histórias com as quais nos podemos identificar, histórias que trazem uma profundidade de sentido até à nossa vida, nos colocam perguntas, colocam-se a conversar com aquilo que somos, aquilo que vivemos, aquilo que trazemos dentro de nós. [...]

Espaço para a profecia
Lucas 9,51-62
José Tolentino Mendonça

Queridos irmãs e irmãos,
A Palavra de Deus também funciona como um espelho. Como um espelho onde nós encontramos histórias com as quais nos podemos identificar, histórias que trazem uma profundidade de sentido até à nossa vida, nos colocam perguntas, colocam-se a conversar com aquilo que somos, aquilo que vivemos, aquilo que trazemos dentro de nós. É uma espécie de mosaico. É sempre uma narrativa muito ampla, muito aberta mas capaz de tocar pontos concretos do itinerário que cada um de nós, cada um de nós sem exceção, está a fazer. Este conjunto de histórias, à maneira de um repositório, acaba por traduzir de forma muito concreta aquela que é a vontade de Deus inspirar a nossa vida, transformar, transfigurar, iluminar, reconciliar profundamente a nossa vida.

A primeira história é aquela do profeta Elias e do profeta Eliseu. É muito belo porque o profetismo não tem a ver com a família, o profetismo acontece de surpresa, Deus manifesta-se na vida de forma surpreendente. E é importante estarmos abertos para as surpresas de Deus. O modo como Deus vai entrar na vida de cada um de nós é um modo único, é um modo diferente. É importante cada um de nós estar aberto para essa surpresa.

Eliseu estava com os seus bois e o seu arado a trabalhar na terra, as expetativas dele seriam continuar ali, e passa o profeta Elias e tira-lhe a capa. Isto é, desafia-o a começar um destino novo com o qual ele não contou. E então, Eliseu faz um gesto de grande beleza: mata as juntas de bois e com a madeira do próprio arado faz um banquete para os seus e despede-se, e começa um tempo novo de vida.

Mas, ele quer começar esse tempo novo de vida com um momento de dádiva, transformando aquilo que tem numa dádiva, numa oferta aos outros. Isto para nós é um desafio muito grande, porque nem sempre aquilo que temos nós conseguimos transforma-lo em dádiva, conseguimos transforma-lo em oferta, em lugar de encontro, em potenciador da relação. Mas, o que temos são apenas coisas, são apenas bois e são apenas arados. Ser capaz de transformar os bois e arados numa festa é alguma coisa para a qual Deus desafia cada um de nós. No fundo, o que é que fazemos com aquilo que possuímos? E como é que sentimos que estamos a ser chamados?

Nós somos um povo de profetas. Então, na vida de cada um de nós tem de haver espaço para a profecia. Não são apenas: ah, a madre Teresa de Calcutá é uma grande profeta, Jean Vanier é um grande profeta. Sim, sem dúvida são vozes proféticas mas o que Deus quer é um povo de profetas. Isto é, cada um de nós, no seu espaço, no seu território existencial possa fazer acender a profecia. Como é que nós fazemos acender a profecia? A profecia é sempre um gesto disruptivo, é sempre um gesto novo, é sempre um gesto capaz de trazer a força do Espírito Santo.

Outra imagem muito forte, e ao mesmo tempo de grande realismo, é aquela que nos é oferecida por S. Paulo na Carta aos Gálatas. S. Paulo explora aqui uma coisa que ele vai trabalhar muito também noutras epístolas, que é esta: cada um de nós experimenta princípios contraditórios dentro de si. Que ele resume em dois: o princípio da carne e o princípio do Espírito. O princípio da carne leva-nos para um lado, aquilo que é o Espírito em nós leva-nos para outro, e cada um de nós experimenta o conflito, experimenta a dificuldade de ser. Tanto assim que S. Paulo noutra carta vai dizer isto: “Quem me libertará deste corpo de morte? Porque eu não faço aquilo que acredito, mas acabo por fazer aquilo que odeio, aquilo que não quero.” E nós sabemos que é assim. Tantas vezes não fazemos aquilo que achamos que é o bem, aquilo que acreditamos que é o bem e acabamos por ficar escravos apenas da nossa carne e da nossa vontade e vivemos esta contradição interna. S. Paulo dá-nos este retrato. Quer dizer, Deus sabe aquilo que nós vivemos, Deus sabe o que está em cada um de nós, Deus conhece-nos a fundo. E, nesse sentido, esta contradição humana, esta dificuldade de viver, de ser, que cada um de nós experimenta é mesmo assim. Contudo, a palavra de Paulo é esta: “Não podemos desistir de dar na nossa vida prioridade ao Espírito. Não podemos desistir de fazer experiência de liberdade.” E às vezes para nós a liberdade mais difícil é a liberdade face ao nosso “eu”, face ao nosso ego. Porque o nosso “eu”, às vezes, tem exigências tirânicas; o nosso “eu”, às vezes, é uma prisão que nos prende. Nós temos de ouvir a voz do nosso eu, mas ao mesmo tempo não podemos ficar submissos a essa voz. Temos de ter uma liberdade, temos de experimentar um desapego face às exigências do nosso eu, na nossa vontade, nas nossas necessidades. Experimentar uma liberdade, um espaço de liberdade. E é essa liberdade, esse desapego, essa relativização de nós mesmos que também cria espaço para a liberdade do Espírito, para a criatividade do Espírito na nossa vida.

O Evangelho de hoje também é uma sucessão de imagens com as quais nos temos de confrontar. A primeira é esta: Jesus ia a passar na peregrinação de Jerusalém, os discípulos vão preparar-lhe um lugar na Samaria, mas como os samaritanos odeiam os judeus quando sabem que Jesus vai para Jerusalém fecham-lhes a porta. E os discípulos dizem: “Senhor, queres que mandemos cair fogo do céu para queimar esta gente dura de coração?” E Jesus diz: “Não, vamos para outro lugar.” Reparem a forma como Jesus ultrapassa o conflito. Às vezes nós ficamos presos a lutas que não vão a lado nenhum, às vezes nós ficamos a combater por causas que só aumentam a violência, que já não dão possibilidade de encontro e o que é belo é esta sabedoria do Evangelho que diz: “Não, vai para outro lugar. Vai-te embora, desiste disso. Tu não vais mudar a rixa, o conflito entre os samaritanos e os judeus. Começa uma outra coisa, vai para outro sítio.” E este ir embora é, no fundo, também uma possibilidade de começar uma coisa nova.

Aquele discípulo que vem dizer: “Senhor, seguir-te-ei para onde quer que fores.” E Jesus diz-lhe: “As raposas têm as suas tocas, as aves os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” Isto é, nós seguimos Jesus, cada um de nós segue Jesus mas não é para chegar a um lugar, não é para ter um prémio, não é para entrar num parque de estacionamento, não é para ficar parado, não é para ficar seguro. A religião não é uma seguradora, não é a ‘Fidelidade’, não é a ‘Tranquilidade’, não é uma seguradora. A religião é um clube de risco, é para quem, de facto, quer arriscar. E, muitas vezes, precisamente os crentes, precisamente aqueles que se abandonam, aqueles que aceitam Deus têm de viver no nada, no Deus dará, no Deus dará. Têm de fazer a experiência da Providência, têm de sentir que Deus não está a por a mão por baixo, têm de sentir o silêncio de Deus. Têm de sentir que a vida é um risco, é um acreditar. E o acreditar não é: eu somo dois mais dois e então percebo que é assim. Não, eu não consigo somar nada, mas acredito que é assim. Este atirar a vida para diante é a confiança daqueles que seguem Jesus.

Aquela palavra daquela pequena história é uma palavra que para nós nos desassossega porque aquele homem veio dizer a Jesus: “Senhor, eu sigo-Te mas deixa-me primeiro ir despedir-me dos meus pais.” É um pedido honesto, é um pedido certo, até o profeta Elias permitiu que Eliseu se fosse despedir da sua família. Mas porque é que Jesus diz: “Não, não deixa lá isso. Quem coloca as mãos na charrua não pode olhar para trás senão deixa de ser digno de Mim.” Há aqui um paradoxo claramente, Jesus usa também metáforas paradoxais. Mas o que é que Jesus nos quer dizer? Nós temos de ser capazes de experimentar na nossa vida a prioridade de Deus, a prioridade do Reino de Deus. Porque é muito difícil amar a Deus sobre todas as coisas, é muito difícil. É muito difícil colocar Deus em primeiro lugar na nossa vida. Porque é que é difícil? Porque há tantas coisas que são importantes, há tantas coisas igualmente necessárias. E às tantas nós vivemos a adorar tantos deuses, nós vivemos presos a tantas coisas sem a capacidade de perceber qual é a coisa mais importante, qual é o passo que nós temos de dar. Por isso, Jesus diz: “Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás não serve para o Reino de Deus.” Isto é, temos que nos projetar para diante, temos de acreditar que aquilo que o Senhor pede a cada um de nós é, de facto, aquele lugar de encontro e de reencontro. Mesmo que nós não estejamos a ver como é que as coisas se vão passar, como é que vão ocorrer. Maria também não sabia quando o anjo veio ter com ela. Mas, Deus pode, Deus faz, Deus é capaz, a Deus nada é impossível. E é nesta Palavra, é nesta experiência que nós temos de ancorar a nossa vida.

Vamos assim aceitar receber esta Palavra, expor-nos a ela e que este conjunto de histórias correspondam a outros tantos desafios concretos capazes de dialogar com aquilo que nesta hora nós estamos a viver.

Pe. José Tolentino Mendonça,
Domingo XIII do Tempo Comum