Após a festa da Trindade de Deus, celebramos na quinta-feira outra festa “dogmática”, em defesa da doutrina, para recordar a verdade da Eucaristia desejada por Deus como memorial na vida da Igreja até à sua vinda gloriosa. Todos os domingos celebramos a Eucaristia, mas a Igreja pede-nos também para confessar e adorar este mistério inesgotável num dia particular, a quinta-feira da segunda semana após o Pentecostes, ou no segundo domingo a seguir à solenidade do Espírito Santo. [...]

Corpo de Deus:
A mesa do Senhor é sempre mesa para o faminto
Enzo Bianchi

Após a festa da Trindade de Deus, celebramos na quinta-feira outra festa “dogmática”, em defesa da doutrina, para recordar a verdade da Eucaristia desejada por Deus como memorial na vida da Igreja até à sua vinda gloriosa. Todos os domingos celebramos a Eucaristia, mas a Igreja pede-nos também para confessar e adorar este mistério inesgotável num dia particular, a quinta-feira da segunda semana após o Pentecostes, ou no segundo domingo a seguir à solenidade do Espírito Santo.

A denominada narração da “multiplicação dos pães” é atestada por seis vezes nos Evangelhos (duas em Marcos e em Mateus, uma em Lucas e em João), o que nos diz como esse acontecimento foi considerado de particular importância na vida de Jesus. O Evangelho segundo Lucas, proclamado na solenidade (9, 11b-17), é antecedido, no versículo 2, pelo envio dos discípulos, por parte de Jesus, a anunciar a vinda do reino de Deus e a curar os doentes, mostrando que a missão a Ele confiada por Deus com a descida do Espírito Santo, revelada na sinagoga de Nazaré, era por Ele estendida também à sua comunidade. Cumprida essa missão, os discípulos regressam a Jesus e descrevem-lhe a sua experiência, ou seja, o quanto fizeram e disseram em obediência à sua ordem.

Jesus toma-os então consigo, conduzindo-os à parte para um retiro, num lugar próximo da cidade de Betsaida. Mas as multidões, sabendo para onde Jesus se tinha retirado, seguem-no obstinadamente. E eis que Jesus as acolhe: tinha procurado um lugar de silêncio, solidão e repouso para os discípulos regressados da missão e para si, mas perante àquela gente que o procura, que vai até Ele e o segue, Jesus, com grande capacidade de misericórdia, acolhe-a. É o estilo de Jesus, estilo hospitaleiro, estilo que não afasta nem declara ninguém como estranho. Estas pessoas querem escutá-lo, sentem que Ele pode dar-lhes confiança e libertá-las, curá-las dos seus males e dos pesos que sobrecarregam as suas vidas, e Jesus, sem se poupar, anuncia-lhes o reino de Deus, e cura-as. Esta é a sua vida, a vida de um servo de Deus, de um anunciador de uma palavra confiada por Deus.

Na Igreja perdeu-se esta inteligência eucarística própria dos primeiros cristãos e dos padres da Igreja, houve um divórcio entre a missa como rito e a partilha do pão com os pobres

Chega, no entanto, a noite, o sol põe-se, a luz declina, e os doze discípulos entram em ansiedade. Dizem por isso a Jesus: «Despede a multidão para que vá para as povoações e campos em redor, para se alojarem e encontrarem alimento: aqui estamos numa região deserta!». O seu pedido é conduzido pela sabedoria humana, nasce de um olhar realístico, todavia Jesus não aprova essa possibilidade racional, mas pede-lhes: «Vós próprios dai-lhes de comer». Com esta ordem, exorta-os a entrar na dinâmica da fé, que é ter confiança, colocar em movimento aquela confiança que está presente em cada coração e que Jesus sabe reavivar. Mas os discípulos não compreendem, e insistem em pôr diante de Jesus a sua pobreza: só têm cinco pães e dois peixes, alimento suficiente só para eles.

Jesus toma então a iniciativa: manda que se faça sentar toda aquela gente no prado, em grupos de cinquenta, porque não se trata só de matar a fome, mas de viver um banquete, uma verdadeira ceia, na hora em que o sol se põe. Depois, diante de todos, toma os pães e os peixes, ergue os olhos ao céu, como ação de oração ao Pai, bendiz Deus e parte os pães, apresentando-os aos discípulos para que os sirvam, como à mesa, àquela gente. É um banquete, o alimento é abundante e é partilhado por todos. Aqueles que conheciam a profecia de Israel, recordam-se que ocorreu um prodígio que já o profeta Eliseu tinha realizado em tempo de carestia, nutrindo o povo esfomeado a partir da partilha de poucos pães (cf. 2 Reis 4, 42-44). O mesmo faz Jesus, e depois do seu gesto permanece uma quantidade de alimento ainda maior: doze cestas. No coração dos discípulos e de alguns dos presentes surge assim a convicção de que Jesus é profeta maior do que Elias e Eliseu, é mesmo maior do que Moisés, que no deserto tinha dado de comer maná ao povo saído do Egito.

Mas aqui surge espontaneamente a pergunta: o que significa este acontecimento? Normalmente fala-se da “multiplicação” dos pães, mas na narrativa o termo não existe. Devemos dizer que aconteceu a partilha do pão, aconteceu a fração do pão, e este gesto é fonte de alimento abundante para todos. Deste modo compreendemos como está aqui uma prefiguração daquilo que Jesus fará em Jerusalém na noite da última ceia: «Tomou o pão, deu graças, partiu-o e deu-lhes, dizendo: “Este é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim”». O mesmo gesto é repetido por Jesus ressuscitado no caminho para Emaús, diante dos dois discípulos. Também nesse caso, ao declinar do dia, convidado pelos dois a ficar com eles, «quando estava à mesa, tomou o pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu-lhes». Três episódios que trazem a mesma mensagem: as multidões, as gentes, o mundo tem fome do reino de Deus, e Jesus, que dele é o mensageiro e o incarna, sacia esta forme com a partilha do aluimento, com o partir o seu corpo, a sua vida, oferecida a todos.

Se no mundo há fome, se os pobres estão junto de nós e a Eucaristia não tem para eles consequências concretas, então a nossa eucaristia é só cena religiosa e – como diria Paulo – «o nosso há não é um comer a ceia do Senhor»

Eis o mistério eucarístico na sua essência: não nos deixemos encandear por muitas e diferentes doutrinas eucarísticas, mas acolhamos o mistério na sua simplicidade. Cristo dá-se a nós e é alimento abundante para todos; uma vez partido (na cruz), dá-se à Igreja, a nós, a todos aqueles que o procuram e tentam segui-lo, a todos aqueles que têm fome e sede da sua palavra e desejam partilhar a sua vida. Se é verdade que a dinâmica da fração do pão e do partilhá-lo encontra na celebração da ceia eucarística, na liturgia santíssima, um cumprimento, ela é, todavia, também paradigma de partilha do nosso alimento material, o pão de cada dia. A Eucaristia não é só banquete do céu, mesa do corpo e do sangue do Senhor, mas quer ser ensinamento para as nossas mesas do dia a dia, onde o alimento é abundante mas não é partilhado com quantos têm fome e de estão privados. Por isso, se na nossa eucaristia não participam os pobres, se não há partilha do alimento com quem não o tem, então também a celebração eucarística fica vazia, porque lhe falta o essencial. Já não é a ceia do Senhor, mas uma cena ritual que satisfaz as almas dos devotos, mas em profundidade é uma grave diminuição do sinal querido por Jesus para a sua Igreja. A mesa do corpo do Senhor deve ser sempre mesa da palavra do Senhor e, conjuntamente, mesa da partilha com os necessitados.

Com a partilha dos pães e dos peixes com a multidão, Jesus inaugura um novo espaço relacional entre os humanos: o da comunhão na diferença, porque as diferenças não são abolidas mas afirmadas sem que sofra a relação marcada pela fraternidade, solidariedade, partilha. Sim, devemos confessá-lo: na Igreja perdeu-se esta inteligência eucarística própria dos primeiros cristãos e dos padres da Igreja, houve um divórcio entre a missa como rito e a partilha do pão com os pobres. E se no mundo há fome, se os pobres estão junto de nós e a Eucaristia não tem para eles consequências concretas, então a nossa eucaristia é só cena religiosa e – como diria Paulo – «o nosso há não é um comer a ceia do Senhor».

Precisamente diante da Eucaristia, cantamos o hino que afirma “et antiquum documentum novo cedat ritui” («o hino antigo dê lugar à nova liturgia», mas na realidade permanecemos enclausurados nos ritos e não conseguimos celebrar o “rito cristão”, “o culto segundo a Palavra”, que é oferecido em sacrifício pelos nossos corpos a Deus através do serviço dos pobres e do amor fraterno vivido «até ao fim».

Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 18.06.2019
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