Cinquenta anos de vida missionária e sacerdotal do Padre Alfredo Neres

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Sexta-feira, 30 de Abril de 2021
O Padre Alfredo Ribeiro Neres, 82 anos, celebrou as Bodas de Ouro do seu sacerdócio e da sua vida missionária, na pequena cidade de Isiro, no Norte da República Democrática do Congo. “Depois de 50 anos de sacerdócio e vida missionária – disse o Padre Neres, missionário comboniano português, na homilia da celebração, que aqui publicamos –, sinto-me inundado de alegria pelo que tem sido a minha vida. Mesmo os momentos mais difíceis e dolorosos dão-me paz e alegria. Sou chamado a transmitir, a dar, a partilhar, a levar esta alegria à vida com as pessoas que o Senhor me dá para encontrar. Sinto que amo as pessoas, e que é o próprio Amor que recebo de Cristo que transmito. Exorto as pessoas a amarem o Senhor e a Virgem Maria. Devemos continuar com o mesmo entusiasmo, sem medo do futuro.”

50º. ANVERSÁRIO DA ORDENAÇÃO SACERDOTAL
Do Padre Alfredo Ribeiro Neres

Homilia da Missa das Bodas de Ouro

A Minha vocação tem raízes “pré-históricas”, mais antigas que eu mesmo. Meu pai, Luís Neres e minha mãe, Maria do Carmo, no dia do casamento, em 1930, concordaram em rezar todos os dias para que o Senhor escolhesse um dos filhos para que O seguisse como sacerdote. Ninguém sabia. Foi um segredo que eles mantiveram até ao dia da minha ordenação sacerdotal. Quarenta e um anos de oração e doação. Nasci em 1939, nove anos após o casamento deles. Eles continuaram a rezar até ao dia da minha ordenação em 1971. Eu tinha então trinta e dois anos. Segundo a declaração do meu pai, aquele foi o dia mais feliz das suas vidas.

Eles tiveram quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Eram cristãos de fé sólida, vivida e bem enraizado na vida diária. Deixaram-nos aquela fé que permeou as nossas vidas. Na minha aldeia, Montes da Senhora, dedicada à Virgem Maria, tínhamos uma vida cristã muito intensa; íamos à missa e à confissão todos juntos, da mesma forma em casa rezávamos o terço juntamente. A nossa fé é um dom que Deus nos deu por meio dos nossos pais e que nos acompanhou por toda a vida.

Quando eu tinha 18 anos, soube que dezassete jovens belgas que iam para o Congo como missionários leigos morreram num acidente de aviação. Ofereci-me então ao Senhor para substituir um deles e vir para o Congo. Com o tempo, esqueci esse compromisso, mas o Senhor não o esqueceu.

Quando tinha 7 anos os meus pais mudaram-se para o sul de Portugal, para Campo Maior. Após o ensino primário, comecei a trabalhar no comércio. Aos 15 anos, deixei os pais para ir para Lisboa, a 245 km da minha aldeia, onde trabalhei no comércio durante três anos. Durante esse tempo, fiz um curso de dactilografia e frequentei a escola comercial.

Empreguei-me na Couraça, fábrica de cosméticos, com uns 450 trabalhadores e 25 empregados de escritório, eu era responsável pelo sector de exportação para a África. Tinha um salário muito bom. Foi entre os perfumes, os cremes e sabonetes e produtos de beleza que o Senhor me chamou. Meus colegas de trabalho ficaram surpreendidos por eu ter deixado um emprego com um salário tão alto para me tornar padre.

Vivia na Paróquia de Paço de Arcos, Patriarcado de Lisboa, que foi confiada aos Missionários Combonianos, onde era acolito, leitor e presidente do grupo JOC.

No dia da Ascensão do Senhor em maio de 1959, fiquei impressionado com a leitura do Evangelho de Marcos 16, 15-20 onde Jesus disse "Ide pelo mundo inteiro e anuncie a boa nova a toda a criatura, quem acreditar e for batizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado... “Essas palavras impressionaram-me muito. Durante a missa tomei a decisão de ser missionário. Depois da missa, falei disso imediatamente com o P. Severino Peano, vindo de Moçambique, que presidiu à missa e que me impressionou com as palavras da sua homilia. Falei também com o pároco, p. Ângelo de Lassalandra. Eu disse-lhes que queria ser um missionário para ir proclamar o Evangelho, perdoa os pecados e celebra a Eucaristia. Ele respondeu-me que, para fazer tudo isso, tinha que ser padre. Eu respondi: se é assim quero ser padre.

No dia 8 de Setembro do mesmo ano fui acolhido no seminário de Viseu, onda terminei o liceu. Dali passei para a Maia para estudar a filosofia. Completados esses primeiros passos, fui enviado para a Itália, onde fiz o noviciado em Gozzano e a teologia em Venegono Superior.

No segundo ano de Teologia, com outros quatro escolásticos, fomos enviados para Brescia como assistentes dos pequenos seminaristas Combonianos e continuamos a teologia no seminário diocesano. No final do ano, o superior P. Luciano Franceschini, de acordo com o P. Provincial, P. Giuseppe Gusmini, não queria admitir-me à renovação dos votos, pelo que teria que deixar os Combonianos. Ora, eu tinha vindo de uma experiência de vida de trabalho e livre das prescrições religiosas dos seminários e, além disso, era o momento da revolução da Juventude dos anos ‘60. Para nós, escolásticos, era proibido tirar a batina para jogar com os seminaristas e, pior ainda, tomar banho no Lago de Garda. Eu era muito crítico perante essas formas caducas e os superiores ficavam escandalizados. A conclusão deles foi categórica e disseram-me "Tu não és feito para ser formador, nem tão pouco para seres Comboniano". Foi um choque tão forte para mim que me deixou profundamente perturbado, tirando-me o sono dante muitas noites. O meu formador do Escolasticado, Pe. Francesco Perli, estava convencido de minha vocação e apoiou-me muito.

Mas embora os superiores sejam delegados para interpretar a Vontade de Deus, isso não significa que o próprio Senhor concorde com suas escolhas, e Ele tem os seus meios, para realizar os seus projetos. De facto, fui escolhido para participar ao Capítulo Geral de 1969 como representante dos escolásticos. Em Roma, sem nada dizer da opinião do conselho provincial, pedi ao Pe. Ottorino Sina, Vigário Geral, que fosse admitido à renovação dos votos, e ele, sem conhecer os precedentes, deu-me o seu consentimento.

Ao fim do terceiro ano de teologia, quando fiz o pedido de admissão à profissão perpétua, de novo, os P. Gusmini e Franceschini decidiram de não me admitir aos votos perpétuos. Desta vez, os 77 escolásticos apoiaram-me e exigiram que eu fizesse os votos perpétuos com eles em 9 de setembro de 1970 e fosse ordenado diácono em 10 de outubro.

Escolhi para ser ordenado sacerdote na Quinta-feira Santa, 8 de abril de 1971, dia da Instituição da Eucaristia e do sacerdócio, por um Bispo Auxiliar de Lisboa. Celebrei a Missa Nova na noite do Sábado Santo, em Campo Maior, na Paróquia onde os meus pais habitavam.

Quais são as funções sacerdotais que o Senhor me deu para realizar durante estes cinquenta anos de vida missionária e sacerdotal?

De 1971/1976: Imediatamente após a Ordenação, fui destinado à Maia, como animador missionário e promotor vocacional.

De 1976/1981: exerci meu ministério sacerdotal na paróquia de Ngilima, diocese de Dungu, Congo, como pároco.

De 1981 a 1989: Trabalhei em Santarém como mestre de noviços.

De 1990/2003: Terminado o meu serviço em Portugal, voltei para a R.D. Congo (então Zaire). Estou aqui há 34 anos. Ngilima, Ango e Bondo, são as minhas primeiras missões. Em Bondo, o Bispo nomeou-me Vigário Episcopal. Durante esses anos, fui enviado por ele, para erigir três novas paróquias: Digba, sucursal de Ango; Duranga, sucursal de Monga e Boeli, sucursal de Dakwa.

De 2003/2006: Em 2003, tendo ficado gravemente doente por uma forte bronquite, deixei Bondo e voltei para Portugal. Depois de restabelecido, continuei o meu trabalho de animação missionária e promoção das vocações em Santarém, até 2005. Nesse ano foi fazer o curso de «atualização» em Roma.

De 2006/2021: Em Seguida, o Padre Geral nomeou-me formador do Escolasticado de Kinshasa 2006/2016), e, ultimamente, como "socius" do Padre Mestre dos Noviços em Magambe – Isiro (2020-). A "profecia" dos superiores de 1969: "Não foste feito para ser formador, nem sequer comboniano", realiza-se com 20 anos de formador e de cinquenta como padre comboniano. Quem conhece os desígnios do Senhor? Tenho agora 82 anos e continuo servindo como formador.

No trabalho missionário sempre dei prioridade à evangelização, a começar pela formação dos agentes pastorais, para estar na linha Comboniana de "Salvar a África com a África". O segundo ponto forte é a Eucaristia. Conduzir as pessoas à vivência da Eucaristia em profundidade nas cidades e nas aldeias. Quanto ao terceiro ponto, considero fundamental o Sacramento da Reconciliação, para manifestar o Amor de Deus através do seu perdão e da sua proximidade.

No início, não havia muitos padres em nossas dioceses do Congo e o nosso trabalho era focalizado sobre os catecúmenos a fim de os preparar para a receção dos sacramentos de iniciação cristã: o batismo, a confirmação, a Eucaristia e a confissão. Muitos batismos e confirmações foram administrados para levar as pessoas à maturidade cristã.

As memórias mais comoventes são as memórias de sete anos passados na guerra (de 1996 a 2003), nas paróquias de Ango e Bondo. Enquanto os soldados de Mobutu de um lado e os de Bemba e Kabila lutavam entre si, tiros e roquetes atingiram a aldeia e as nossas casas. Os soldados saquearam as casas e as Igrejas. Pensavam que tínhamos escondendo o dinheiro no tabernáculo. Para evitar profanações, deixava o tabernáculo vazio, com a porta aberta e levava a Eucaristia para o meu quarto, onde preparei um pequeno altar bem arranjadinho. Um dia, das 18h às 5h da manhã, houve um confronto entre os militares de Kabila e Bemba, milhares de balas voaram pelos ares. Lançavam granadas com os carros armados que passavam por cima da nossa casa e explodiam mais longe. Durante toda a noite fiquei deitado no chão numa esteira, segurando a píxide com a Eucaristia, que estava ali diante dos meus olhos. Naquele momento, disse ao Senhor: se uma destas granadas arrebenta em cima da nossa casa, vamos os dois juntos para o Céu. A Sua presença garantir-me-ia a entrada no Seu Reino. Nesses momentos tive uma experiência muito forte da presença de Cristo; outra vez, quando tivemos que nos refugiar no mato, levei a Eucaristia na minha mochila e foi uma alegria imensa para mim. A Sua presença no meio de nós deu-me uma força e coragem surpreendentes.

Depois de 50 anos de sacerdócio e vida missionária, sinto-me inundado de alegria pelo que tem sido a minha vida. Mesmo os momentos mais difíceis e dolorosos dão-me paz e alegria. Sou chamado a transmitir, a dar, a partilhar, a levar esta alegria à vida com as pessoas que o Senhor me dá para encontrar. Sinto que amo as pessoas, e que é o próprio Amor que recebo de Cristo que transmito. Exorto as pessoas a amarem o Senhor e a Virgem Maria. Devemos continuar com o mesmo entusiasmo, sem medo do futuro.

A minha irmã mais nova, Alzira, seguiu-me e tornou-se também Comboniana. Fez os votos treze anos depois de mim, trabalhou nos Estados Unidos, Portugal e Uganda. Eu não a influenciei, foi ela que escolheu livremente depois de conhecer diferentes congregações de irmãs. Foi Madre Provincial em Portugal e depois em Uganda. Foi professora de Teologia Bíblica. Agora é superiora da casa das irmãs idosas e enfermas de Buccinigo d´Erba (Itália). Nesta casa havia mais de setenta irmãs que contraíram o coronavírus e entre elas até minha irmã; dezoito dentre elas morreram. Ela está curada depois de compartilhar o sofrimento de todas as irmãs.

PS:
Aos 82 anos, a presença entre nós do P. Alfredo é um presente e um exemplo. As suas memórias não são a chave do passado, mas sim a chave do presente e sobretudo do futuro. Somos testemunhas da sua forte carga espiritual, do seu serviço aos mais pobres e doentes, do seu amor e disponibilidade para qualquer serviço que lhe seja pedido. Nem o cansaço, nem a doença, nem a chuva impedem a sua disponibilidade. Mesmo que custe sacrifício, ele sempre parte para visitar as capelas do mato e Celebrar da Eucaristia nas aldeias, transportado de moto por veredas árduas. As pessoas adoram a sua presença e procuram-no, porque sabem que Alfredo nunca diz "não" ou "não posso" ou "estou cansado".
Fr. Duilio Plazzotta, mccj