Segunda-feira, 8 de outubro de 2018
Único, surpreendente, desconcertante. E acrescentemos de uma vez: ele não agüenta roupas pré-confeccionadas. Não adianta ficar cortando e costurando... ele sufocaria dentro delas. Ele é assim. É o seu jeito. Qualquer medida é estreita para ele. E não dá para fazer nada, se com ele todos os esquemas furam.
“A onipotência da oração é a nossa força”
São palavras de Daniel Comboni, o apóstolo da África. Do seu epistolário emerge a figura de um homem surpreendentemente livre e ilimitadamente fiel à Igreja
“Fui combatido pelos santos e pelos velhacos. Mas as obras de Deus devem ser combatidas. Estou mais alegre do que nunca, e forte como a morte.” “Deus remedeia meus despropósitos com a sua graça.”
Único, surpreendente, desconcertante. E acrescentemos de uma vez: ele não agüenta roupas pré-confeccionadas. Não adianta ficar cortando e costurando… ele sufocaria dentro delas. Ele é assim. É o seu jeito. Qualquer medida é estreita para ele. E não dá para fazer nada, se com ele todos os esquemas furam. O próprio Pio IX entendeu isso de cara, mas mesmo assim não hesitou em lhe conceder sua total confiança, entregando-lhe a missão do vicariato de Cartum, na África Central. Seus biógrafos também sabem muito bem disso: por mais que tenham tentado defini-lo, tiveram sempre de lidar com uma roupagem de papel incapaz de cobrir a sua figura sem medidas. “Ilimitadamente fiel à Igreja”, disseram; “mas também capaz de viver sua fidelidade ilimitada com uma liberdade igualmente ilimitada”. “Homens como ele são contemporâneos do futuro”, escrevia Jean Guitton. É verdade. Pois Daniel Comboni, ou melhor, São Daniel Comboni, o apóstolo da África, realmente pertence às fileiras das grandes almas que nunca cessarão de desconcertar e envolver, de desarmar e fascinar.
Basta abrir suas cartas para ter uma idéia de tudo isso e encontrá-lo, sem filtros, vis-à-vis. Pois, bem ali, no seu epistolário, está o Comboni inteiro. Ao vivo. Autêntico. Com seu temperamento sangüíneo, forte e extremamente humano, sua personalidade desconcertante e ao mesmo tempo muito distante de qualquer culto à personalidade, suas grandes intuições e sua coragem audaciosa, sua determinação e seu abandono, sua diplomacia experimentada e sua simplicidade desarmante.
O livro que reúne Os escritos de Comboni tem mais de 2.200 páginas. Lá estão amontoadas 900 cartas. E é preciso explicar que são poucas, em relação às que escreveu. É só pensar que ele mesmo, quando escreve ao bispo de Verona, o cardeal Luigi di Canossa, em 21 de maio de 1871, assegura que do início do ano até aquele momento havia escrito 1.347 cartas, e dois anos depois confessa: “Tenho mais de 900 cartas para escrever. São tantos os relacionamentos com benfeitores insignes, que é preciso que eu os cultive…”. Esse epistolário monumental, escrito quase sempre roubando o tempo do sono, com os meios providenciados pela sorte, sob o sol escaldante do deserto ou em cabanas encharcadas de chuva, é o documento precioso de uma paixão inesgotável, de uma vida inteiramente consumida na missão pelo resgate “da nigrícia infeliz”, obra da qual ele foi um pioneiro, à frente de seu tempo. “Só tenho no coração o único e puro bem da Igreja, e pela saúde destas almas daria cem vidas se as tivesse”, escreve; “e certamente, a passos lentos e seguros, caminhando sobre espinhos, chegarei a começar estavelmente e a plantar a obra idealizada da regeneração da nigrícia, que todos abandonaram, e que é a obra mais difícil e escabrosa do apostolado católico”.
“Entre mim e meu senhor Domine Deus somos tudo”
Ele escreveu o “Plano para regenerar a África com a África” num lampejo, depois de rezar no túmulo de Pedro. Era 15 de setembro de 1864. Com o espírito decidido, cinco anos mais tarde o submeteu aos padres do Concílio Vaticano I. Para alguns, era uma loucura. Mas ele conseguiu ser o primeiro a fundar pontos estáveis de missão nessas terras, abrindo caminho para a evangelização do continente; foi o primeiro também que, com uma visão e uma audácia impensáveis para a época, conseguiu não apenas fazer mulheres consagradas entrarem na África, com a clara intuição de que sem elas era “impossível inserir-se entre aquelas populações”, mas também encorajou a segui-lo fiéis comuns, convicto de que a missão não podia ser apenas “negócio de padres e monjas”.
Desde 1858, quando fez sua primeira viagem à África, até a morte, em 1881, com cinqüenta anos, fez outras sete viagens ao coração do continente negro. Dar conta de todas as suas histórias, lutas, perigos, sem contar as privações e as febres insuportáveis, é empreitada tão árdua quanto a sua obra. As cartas atestam a infinita variedade de contatos e relacionamentos que conseguiu estabelecer para seus fins missionários. Iniciou intercâmbios e relacionamentos com os maiores africanistas e exploradores de seu tempo, avançando ele mesmo, entre mil perigos e adversidades, até onde ninguém nunca ousara penetrar, desenhando mapas com precisão meticulosa e preparando relatórios sobre os usos e costumes de populações então desconhecidas. Tornou conhecidas as condições de vida, a miséria e a pestilência daqueles lugares. Teve encontros com homens de governo e potentados de meia Europa: do imperador Napoleão III ao rei da Bélgica, Leopoldo II, e ao imperador Francisco José, movendo atenções, energias e financiamentos.
Entrou em contato com todas as maiores ordens missionárias. Relacionou-se com as associações missionárias de toda a Europa e com os eclesiásticos mais respeitados do continente. Percorrendo as rotas do escravismo, denunciou duramente junto aos poderosos da Europa o tráfico ignóbil de escravos, trabalhando por sua libertação e formação, e não hesitou, com realismo político e visão ampla, em estreitar laços de amizade com os chefes turcos, egípcios, os grandes paxás e muftis desses lugares arabizados, e em ter contato até mesmo com os mais sanguinários escravistas. “As qualidades de um bom batedor e mendicante são três: prudência, paciência, impudor”, escreve. “A primeira me falta: mas eu a supro maravilhosamente com as outras duas, sobretudo com a terceira”.
Numa carta ao conde Guido de Carpegna, a quem não faltavam recursos econômicos, com palavras que desconcertam o interlocutor, afirma: “Estou em Paris há 17 dias. Aqui, consulto e estudo as grandes instituições para equilibrar a obra…; mas se Deus puser suas mãos, conseguirei; se Deus não puser as mãos, nem Napoleão III, nem os mais poderosos monarcas, nem os mais sábios filósofos da terra jamais poderão fazer nada. Portanto, que Deus faça; e depois eu, o último dos filhinhos dos homens, conseguirei. Entre mim e o senhor somos ricos, entre mim e São Francisco Xavier somos santos, entre mim e Napoleão III somos poderosos, entre mim e meu senhor Domine Deus somos tudo”. Como se dissesse: o que falta a um, o outro tem em abundância, e o balanço fecha…
“Se rezarmos, tudo será feito, pois Jesus é um perfeito cavalheiro”
O humorismo sutil e a “evangélica ‘falta de escrúpulos’” que lhe permitem falar claramente e, quando preciso, “incitar”, às vezes com tenacidade, mesmo quando suas palavras são dirigidas a eclesiásticos eminentes, não lhe pouparam certas incompreensões, campanhas difamatórias, obstáculos e ferozes calúnias. “Acusaram-me em Propaganda Fide de ser réu de todos os sete pecados capitais e de ter pecado contra todos os dez mandamentos do Decálogo e dos Preceitos da Igreja, até mais… Eu, quantidade negativa, mereço mais do que isso, pois sou pecador e tenho dívidas a pagar a Deus…”, escreve ao padre Sembianti. Mas ao cardeal prefeito de Propaganda Fide, Alessandro Barnabò, ao qual jamais deixa de manifestar sua obediência incondicional, mesmo nas provas mais difíceis, escreve em 1876: “Verá Vossa Eminência que também nesta nova borrasca o inimigo da saúde humana procurou fazer-me mal e pôr obstáculos à Obra que pertence a Deus; e compreenderá que são muitas as tempestades que me oprimem, que é um milagre que eu possa resistir ao peso de tantas cruzes. Mas eu me sinto tão cheio de força e de coragem e de confiança em Deus e na Bem-aventurada Virgem Maria, que estou seguro de superar tudo, e de preparar-me para cruzes ainda maiores que virão. […] E com a Cruz por ‘esposa’ dileta e mestra sapientíssima de prudência e sagacidade, com Maria minha ‘Mãe’ caríssima, e com Jesus, meu ‘tudo’, não temo, ó Príncipe Eminentíssimo, nem as procelas de Roma, nem as tempestades do Egito, nem os tornados de Verona, nem as nuvens de Lyon e Paris”.
E se ele deixa estas definições de si mesmo nas cartas: “Arlequim fingindo de príncipe”, “lavador de pratos da obra de Deus”, “soldado inútil”, “pecador trapalhão”, “padreco inepto”, confidencia também ao padre Sembianti: “É preciso padecer grandes coisas por amor de Jesus Cristo […], lutar contra os potentados, contra os turcos, os ateus, os maçons, os bárbaros, os elementos, os frades, os padres […], mas nós, com a Graça, triunfaremos contra os paxás, contra os maçons, contra os governos ateus, contra os pensamentos distorcidos dos bons, contra a astúcia dos maus, contra as insídias do mundo e contra o inferno… toda a nossa confiança está nAquele que morreu e ressuscitou por nós e escolhe os meios mais frágeis para fazer suas obras”.
“Confiança”, repete centenas de vezes. E é uma palavra-chave evidente, que salta aos olhos no epistolário dessa vida desmedida. Uma confiança indestrutível, ilimitada. Um abandono confiante e total que lhe permite esperar contra toda esperança, com firmeza invencível, diante dos acontecimentos mais terríveis e catastróficos, tão graves sobretudo nos últimos anos de sua vida. Ele consagrou a África ao Sagrado Coração de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria Rainha da Nigrícia, e nunca parou de bater à porta dos conventos de metade da Europa para pedir a ajuda das orações, “para assaltar o céu com as nossas orações incessantes”.
“A onipotência da oração é a nossa força”, escreve, do Cairo, a dom Luigi di Canossa. “A oração é o meio mais seguro e infalível. Se rezarmos, tudo será feito, pois Cristo é um perfeito cavalheiro. É o que me dizia desde que eu era menino o meu superior, já falecido; o que eu sempre interpretei pensando que ao petite, quaerite, pulsate, pronunciados e repetidos com as devidas condições, correspondem sempre os verbos accipietis, invenietis e aperietur”. Ele escreve ao reitor do Instituto de Verona, num momento crítico, em razão das dificuldades materiais, com o tom de seu estilo inconfundível: “Veja que, se as pessoas conhecessem e amassem de verdade a Jesus Cristo, moveriam montanhas: mas a pouca confiança em Deus (é o que me diz uma longa experiência) é comum a quase todas as almas boas e de muita oração, as quais têm muita confiança em Deus nos lábios e em palavras, mas pouca ou nenhuma quando Deus as põe à prova, e lhes faz faltar às vezes o que querem […]. E se há alguém aqui que tem verdadeira fé e confiança no alto, mais do que o senhor, mais do que eu, e mais do que os santos na Europa (ao menos do que muitos), é irmã Teresa Grigolini, irmã Vitória. […] Portanto, rezar e ter fé, rezar não com palavras, mas com o fogo da caridade… […]. Digo-lhe isso para adverti-lo de que tenha confiança firme e resoluta em Deus, em Nossa Senhora e em São José”. Sobre a sua devoção particular a São José se encontram nas cartas aspectos e expressões realmente singulares.
São José e as graças temporais
Pio IX, em 1870, durante o Concílio Vaticano I, proclamara São José patrono da Igreja Universal. Comboni lhe atribui uma tarefa especial, confiando-lhe a proteção da Nigrícia e assinalando-lhe oficialmente o papel de administrador e despenseiro de confiança da missão. Escreve: “O tempo e as calamidades passam, nós envelhecemos; mas São José está sempre jovem, tem sempre um coração bom e a cabeça no lugar, e ama sempre o seu Jesus, e os interesses da sua glória, e a conversão da África Central interessa vivamente e sempre à glória de Jesus”.
Para Comboni, essa não era apenas uma consideração pia, mas uma realidade de fato: “Como é possível duvidar da Providência divina e da do diligente despenseiro São José, que nunca deixou de me ajudar e que, em apenas oito anos e meio, e em tempos tão calamitosos e difíceis, mandou-me mais de um milhão de francos para fundar e encaminhar a obra em Verona, no Egito e na África interna? Os meios pecuniários e materiais para sustentar a Missão são a última coisa em que eu penso. Basta rezar…”. Ele escreve essas coisas ao cardeal Alessandro Franchi, em junho de 1876. Seu relacionamento com São José é marcado pela mais surpreendente familiaridade, feita de invocações insistentes e confiança, mas também de solicitações, lamentos, reprovações e até chantagens. Ele o define “Cavalheiro”, ou melhor, “Rei dos cavalheiros”, “mestre da casa”, “despenseiro de muito juízo e também de bom coração”, “árbitro dos tesouros do céu”, “coluna da Igreja”; “mesmo se tudo estiver de pernas para o ar, ele sempre estará aí: triunfante sobre todos os cataclismos do universo”. Com intimidade desembaraçada, chama-o Beppe, Beppo, Beppino, Beppetto (todos apelidos relativos ao nome de São José em italiano: Giuseppe). “Se tudo sai das barbas do Pai Eterno por meio de Beppetto, como podemos ignorar o Beppetto…”.
A terrível escassez de 1878 põe à prova duramente a economia da missão, mas não diminui de modo algum a confiança no despenseiro celeste: “Esgotei todos os meus recursos para sustentar as missões e acabei com mais de mil francos de dívida. Por muito tempo, as despesas triplicaram, ainda que os muçulmanos e o Paxá ajudem na missão. Esteja certo, Vossa Eminência”, escreve de Cartum ao cardeal Giovanni Simeoni, “de que São José, despenseiro da África Central, dentro de um ano reparará tudo, e sustentará a missão. Se ele nunca me permitiu chegar à bancarrota e já me fez escapar tantas vezes, quer que me deixe atrapalhado agora? Dentro de um ano, equilibrará as nossas contas. É claro que não será o equilíbrio retórico prometido cem vezes pelos Minghetti, pelos Lanza, pelos Sella, pelos De Pretis e por outros tantos da riqueza fácil italiana. […] Meus melhores missionários compartilham minhas esperanças, minha segurança, minha fé. Vou lhe mandar relatórios regulares… Se tiver vida”. Mas algumas vezes São José se mostra surdo e preguiçoso. E Comboni não hesita em chamá-lo ao seu dever, pois, assegura, “é preciso não ter pudores com esse santo bendito”, o qual, porém, “nunca decepciona, mesmo tendo uma escala precisa dos valores: primeiro, pensa no espírito e nas nossas almas, depois no dinheiro”.
Numa carta redigida a menos de um ano de sua morte, deixa entender que está passando por dificuldades financeiras: “Nunca mais quero saber dos banqueiros deste mundo, mesmo que sejam santos do paraíso. O único banqueiro (e seu banco é mais seguro do que todos os bancos de Rothschild) em que continuo a confiar é o meu caro despenseiro celeste, ao qual recomendei a tarefa de obter um bom subsídio de Propaganda Fide; ou melhor, eu encostei na parede esse bom e santo despenseiro São José, para que Propaganda Fide me socorra. Se Beppino não me escutar, eu ameacei dirigir-me a sua mulher; e depois de ter feito uma boa novena à Imaculada (que ordenei a minhas freiras), e um tríduo à Vigília do Parto, quer que ele me diga não? Estou certo de que me responderá; meu despenseiro Beppino deve ter um pouco de amor próprio para não permitir que recorramos às mulheres para as questões financeiras, que cabem aos homens…”.
Nos últimos anos de sua vida, cruzes, perseguições, abandonos, mortes constantes de seus amados colaboradores, “pílulas amargas” e ainda obstáculos e calúnias que vinham de ambientes da Igreja não lhe dão trégua: “Vejo-me aqui no campo de batalha exposto a perder cada instante da vida por Jesus e por essas pobres almas, e sou oprimido e mergulhado num oceano de tribulações e calamidades que me rasgam a alma. Minha saúde está arrombada: a febre não quer me deixar…”. “Tenham coragem. Não temam”, escreve ainda na última carta. “Que aconteça tudo o que Deus quiser. Deus nunca abandona quem nEle confia. Eu estou feliz…”. Na noite daquele 10 de outubro de 1881, consumido pela febre, sobre um colchão encharcado, Comboni entrava em agonia. O padre Bouchard, inclinando-se para ele, lhe disse: “Monsenhor, o momento supremo chegou…”. “Fixou o olhar no crucifixo e beijou a cruz com ternura…”.
Escrevia Péguy: “Todas as submissões como escravo no mundo me repugnam, diz Deus, e eu daria tudo/ por um olhar de homem livre,/ por uma bela obediência e ternura e devoção de um homem livre”.
[Stefania Falasca – in Combonianum]