O que é que a fé nos ensina? A que é que a fé nos leva? A onde é que ela nos conduz? A que gestos? A que atitudes? A que horizontes novos a fé nos coloca? A fé contemplada no Evangelho é, sobretudo, uma arte do risco, uma arte de arriscar. Crer é arriscar crer, como amar é arriscar amar. Arriscar crer. Lembro-me de dois comentadores dos textos bíblicos, de pontos de vista diferentes, que sublinham precisamente isso e nos podem ajudar hoje a lermos a Palavra de Deus como um desafio para as nossas vidas.
“A pobre viúva deu tudo o que tinha.”
Marcos 12,38-44
O Evangelho deste domingo situa-se no mesmo contexto do domingo passado. Estamos em Jerusalém, no Templo, onde Jesus ensina a uma “grande multidão que o ouvia com prazer” (Mc 12,37), despertando a ira das autoridades religiosas, que já haviam decidido matá-lo. Estamos ainda no terceiro dia da sua chegada a Jerusalém, um dos dias mais longos, intensos e decisivos do ministério de Jesus, no Evangelho de Marcos. Esta é a última vez que Jesus visita o Templo e fala à multidão; três dias depois, será morto.
O contexto deste ensinamento é, portanto, muito especial e confere um peso excepcional às palavras de Jesus. O que Ele diz e faz neste momento tem o sabor de um testamento espiritual.
O trecho divide-se em duas partes. Na primeira, Jesus dirige-se à multidão, alertando-a contra o comportamento dos escribas (versículos 38-40). Na segunda, dirige-se aos discípulos chamando a atenção deles para uma pobre viúva que doa ao tesouro do Templo tudo o que possui (versículos 41-44).
“Acautelai-vos de…”
“Acautelai-vos dos escribas, que gostam de exibir longas vestes, de receber cumprimentos nas praças, de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes.” Os escribas eram os especialistas da Torá, os mestres da Lei, os teólogos e juristas da época. É uma crítica muito forte dirigida a uma categoria de pessoas geralmente respeitadas.
Jesus denuncia o tipo de pessoas que vivem apenas de aparências: exteriormente parecem perfeitas, mas interiormente podem ser falsas. Se essa atitude é condenável na sociedade, é ainda mais na Igreja. Em vez de servirem a Deus, eles servem-se de Deus, “orando longamente para serem vistos”; e, em vez de servirem ao próximo, exploram-no, “devorando as casas das viúvas”. É o oposto do que Jesus nos ensinou no domingo passado: amar a Deus e amar ao próximo.
No entanto, não pensemos nos escribas de antigamente, mas nos de hoje. Não olhemos para os escribas externos, mas para os que estão dentro de nós. Porque aquilo que os escribas amavam, nós também amamos: aparecer, dar uma boa imagem de nós mesmos, ocupar os primeiros lugares, ser respeitados e honrados, estar de alguma forma sob os holofotes. Desses escribas, mestres ou modelos, há muitos, tanto na sociedade, divulgados pelos meios de comunicação, quanto na Igreja. O caminho da aparência é escorregadio e pode facilmente levar da aparência à falsidade e da falsidade à corrupção. “Pecadores sim, corruptos nunca,” diria o Papa Francisco.
“Olhai para…”
Na segunda parte do texto, o cenário muda. “Jesus sentou-se em frente da arca do tesouro, a observar como a multidão deitava o dinheiro na caixa. Muitos ricos deitavam quantias avultadas.” No Templo, havia treze caixas destinadas a recolher ofertas, cada uma para um propósito específico, exceto a última, a décima terceira. Em frente a cada caixa, um funcionário controlava e anunciava em voz alta o valor doado. Com a aproximação da Páscoa, o número de peregrinos aumentava, e um rio de moedas de ouro e prata, tilintando, fluía para as caixas do Templo, o maior banco do Oriente Médio!
“Veio uma pobre viúva e deitou duas pequenas moedas.” A viúva era uma das categorias de pessoas vulneráveis a serem protegidas, segundo as Sagradas Escrituras: o órfão, a viúva e o estrangeiro. Esta mulher, viúva e pobre, lança na décima terceira caixa tudo o que possui: dois centavos. É quase nada, mas é tudo para ela. Era pouco, mas representava tudo o que ela tinha para viver.
“Jesus chamou os discípulos e disse-lhes: Em verdade vos digo: Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros.” O Mestre “chama” os seus discípulos pela última vez e coloca essa viúva na cátedra para o seu último ensinamento: - Olhem para ela! Aqui está o que eu quis dizer quando disse: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com toda a tua força.”
Outra viúva, protagonista da primeira leitura, é a pobre viúva de Sarepta, uma mulher pagã, que oferece a um estrangeiro, o profeta Elias, o último punhado de farinha que guardava para si e para seu filho antes de morrer. Aqui está o que significa “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”
Pontos de reflexão
- A viúva do Evangelho antecipa profeticamente o que Jesus fará três dias depois, entregando a sua vida ao Pai por nós. Ele, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer (2Coríntios 8,9) e despojou-se completamente de si mesmo até morrer como um escravo na cruz (Filipenses 2,7-8).
- A generosidade desta viúva representa também a da Virgem Maria que, aos pés da cruz, oferecerá o seu único filho. Além disso, anuncia a condição presente da Igreja, a quem foi tirado o Esposo (Marcos 2,18-19).
- A pobre viúva, finalmente, lembra-nos da nossa pobreza radical. Viúvo/a etimologicamente significa estar privado, carente, desprovido. Nesse sentido, todos vivemos em uma condição de “viuvez”. Além da satisfação das necessidades diárias, frequentemente experimentamos que nos falta algo essencial para realizar plenamente a nossa existência. É importante tomar consciência dessa falta profunda. Santo Agostinho expressa isso com a sua famosa oração: “Tu nos fizeste para ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti”. Paradoxalmente, para preencher esse vazio, Jesus e o seu Evangelho nos propõem oferecer a nossa vida como dom: “Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, salvá-la-á” (Marcos 8,35).
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Crer é arriscar crer
Marcos 12,38-44
Queridos irmãs e irmãos,
O que é que a fé nos ensina? A que é que a fé nos leva? A onde é que ela nos conduz? A que gestos? A que atitudes? A que horizontes novos a fé nos coloca?
A fé contemplada no Evangelho é, sobretudo, uma arte do risco, uma arte de arriscar. Crer é arriscar crer, como amar é arriscar amar. Arriscar crer. Lembro-me de dois comentadores dos textos bíblicos, de pontos de vista diferentes, que sublinham precisamente isso e nos podem ajudar hoje a lermos a Palavra de Deus como um desafio para as nossas vidas.
O primeiro é uma psiquiatra e psicanalista, Françoise Dolto, que analisa uma das parábolas mais complicadas, um verdadeiro quebra-cabeças do ponto de vista moral, contada por Jesus que é aquela do administrador infiel. Aquele homem que era corrupto e sabendo que ia ser despedido começa a chamar os clientes do seu patrão a dizer “Olha, eu favoreço-te nisto: tu deves cinquenta, escreve aqui quarenta.”, para que ainda conseguisse, depois de ser despedido, uma boa aceitação junto daquela rede de fornecedores. Jesus conta esta parábola elogiando a esperteza do administrador infiel. Para nós que a ouvimos é um verdadeiro quebra-cabeças, porque como é que se pode elogiar a esperteza daquele ‘Chico esperto’?
Contudo, no comentário, na interpretação que Françoise Dolto faz, ela valoriza sobretudo a tomada de iniciativa. Aquele homem perante uma situação limite, que é o facto de ser despedido e a sua vida mudar radicalmente, ele faz alguma coisa, ele arrisca. Faz uma idiotice, continua no mesmo, mas ele arrisca. E o que ela sublinha é isto: o que Jesus nos ensina é a arriscar. Não arriscar fora da lei, ou fora da moral, fora da ética, mas valorizar o risco.
Na mesma linha, o escritor Chesterton valorizava aquela palavra de Jesus que é dizer: “Se queres seguir-Me renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz todos os dias e segue-Me, porque quem quiser salvar a vida há de perdê-la, e quem aceitar perder a vida por Mim e por causa do Reino há de salvá-la.” Ele diz: “Esta Palavra podia estar inscrita num clube de socorro a náufragos.” É assim, o nosso barco está a naufragar. Temos duas escolhas: ou permanecemos no barco, temerosos, e arriscamos também o naufrágio, ou, sem ter certezas mas obedecendo ao chamamento da vida, ao risco da vida, nós atiramo-nos, e atiramo-nos ao mar largo. Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Se permanecemos agarrados ao navio perdemos a nossa vida. Mas é aceitando o risco de poder perder a vida que a salvamos verdadeiramente.
A fé é isto. Porque a fé não é caminhar num território cheio de garantias, onde está tudo certo, está tudo assegurado e a consequência mais lógica mais racional que eu tiro é esta, e é por isso que a sigo. Não, a fé não é do território da lógica. Santo Agostinho dizia: “É absurdo, por isso eu creio.” A fé muitas vezes é tomar a iniciativa da confiança, do abandono no meio de situações que são o absurdo, que são o contrário da lógica, o contrário da razão. Mas a fé é viver o risco de acreditar. Não é somar 2+2 são 4. Não, as contas da fé são sempre tudo ao contrário, tudo ao inverso. A fé implica sempre esse salto, esse abandono confiante. Crer é o risco de crer.
A mesma coisa nós podemos dizer do amor. O amor não é um caminho feito na evidência, não é um caminho feito na certeza de que vai ser assim ou vai ser de outra forma, tudo muito assegurado. O amor é a ousadia de amar, é a ousadia de atirar-se à frente.
Temos nas leituras de hoje dois exemplos de amor. De amor diferente, mas de amor enquanto dádiva, enquanto oferta de si, que é no fundo aquilo que concretiza o amor. Aquela viúva de Sarepta a quem o profeta Elias pede hospitalidade, e pede alguma coisa de comer, ela não tem mais nada, não tem mais farinha, não tem mais óleo na almotolia. Contudo, ela amassa a última amassadura e partilha com aquele estrangeiro, com aquele estranho que lhe pede de comer. E diz: “Depois venha o que vier.” No fundo, ser capaz de dar o último pão, é o risco de amar. Depois? Depois, não sei o que vai acontecer. Depois já não é uma coisa que eu controlo, já não está dentro das minhas possibilidades. Mas é esse risco de amar, é esse risco que torna o gesto daquela mulher um gesto de amor verdadeiro, um gesto também de fé.
A mesma coisa nesta viúva pobre que está perante o tesouro do Templo. Os outros dão do que lhes sobra, aquela mulher deu uma pequenina moeda e Jesus chama a atenção dos discípulos dizendo: “Ela deu mais do que todos os outros, porque todos os outros deram do que lhes sobrava, ela deu tudo quanto tinha para viver.”
E é, no fundo, isto que nos é pedido a cada um de nós. Se calhar este não é um discurso para o dia a dia, se calhar no dia a dia nós conseguimo-nos gerir e safar com a visão habitual, não é preciso um grande risco, deixarmo-nos levar, deixarmo-nos embalar pela própria vida. Mas há momentos na vida de cada um de nós, há ocasiões, há dias, há oportunidades em que aquilo que se decide é verdadeiramente pelo risco de acreditar, pelo risco de amar. E são esses dias, essas oportunidades, essas horas da nossa vida que nos estruturam, que fazem a diferença, que marcam o caminho.
Pensemos no que Jesus nos diz. Jesus olha para o gesto da viúva e diz: “Ela deu mais do que todos porque deu uma moedinha que era tudo quanto tinha.” E a nós pensamos: “Muito bem. Muito bonito. Mas se toda a gente desse só uma moedinha não se conseguia manter o tesouro do Templo, não se conseguia fazer todas as atividades que o Templo tem para fazer, não se conseguia construir, manter a beleza do Templo.”
E é aqui que Jesus faz uma transformação do nosso olhar, é aqui que o Cristianismo aparece como um discurso diferente, que nos modifica por dentro naquilo que nós consideramos importante, naquilo a que nós damos realmente valor, naquilo que nós consideramos decisivo. Na Carta aos Hebreus (esse texto do final do primeiro século da era cristã, que já é escrito depois do Templo de Jerusalém ter sido destruído, o sacerdócio extinto, os sacrifícios apagados) este autor cristão vai rever a vida de Cristo, a Sua mensagem, o Seu gesto, a Sua poética do ponto de vista do Templo. E vai dizer: “Mais importante do que o Templo, mais importante do que a linhagem sacerdotal, mais importante do que os sacrifícios é o próprio Cristo enquanto pessoa, no que Ele é.”, “Não construíste para mim um Templo mas deste-Me um corpo, fizeste de mim Sumo-sacerdote.”
É este investimento na existência, este investimento na pessoa que faz a diferença. Quem olha para este discurso de Jesus e o aceita, tem de viver de uma maneira diferente, tem de viver de uma forma diferente.
Esta semana, o Papa Francisco teve duas palavras consecutivas, uma numa entrevista a um jornal holandês a dizer que quem é discípulo de Cristo não pode viver à grande e à francesa. Isto é, tem de levar uma vida frugal – tenha o dinheiro que tiver, as condições que tiver, mas tem de levar uma vida frugal, uma vida exigente. Não pode viver uma vida como se não existisse à volta de si pobreza, necessidade, carência. Não pode viver uma vida só em função do seu narcisismo, da sua vontade e do seu prazer. Tem de viver uma vida frugal.
Este desafio a uma vida essencial é um desafio que é feito a todos, a todos os cristãos que, no fundo, percebem que o importante não é construirmos, não é fazermos, embora tudo tenha o seu lugar. Mas o fundamental é sempre a pessoa.
E ainda ontem, na Praça de S. Pedro, o Papa Francisco fez um discurso muito importante à Associação de Providência, à Caixa de Providência Italiana, onde falava do trabalho, do valor do trabalho, do valor do repouso, de garantir as condições não só do trabalho mas depois também da reforma como direitos humanos fundamentais. Dizia: “Não podemos perder de vista o imperativo fundamental que é a pessoa humana, que é a pessoa humana.”
É claro, se nós privilegiamos a pessoa humana diz-se: “Ah! Mas como é que vai ser os mercados! Como é que vai ser isto? Como é que vai ser aquilo?” Temos de encontrara um equilíbrio, temos de encontrar novos caminhos, temos de encontrar novas possibilidades na nossa sociedade. A Doutrina Social da Igreja nasceu precisamente num contexto de fatalismo, em que com a Revolução Industrial o valor do trabalho e o valor da pessoa humana eram absolutamente relativizados. A Doutrina Social da Igreja nasceu como a tentativa de encontrar um outro caminho, uma outra possibilidade em que o fundamental não era perdido de vista.
Hoje nós vivemos numa grande mudança da história, nós sentimos isso. Somos determinados por entidades que não sabemos quem são, tudo parece que tem de ser de uma maneira só. Se calhar também aqui precisamos de voltar à Doutrina Social da Igreja e perceber isto: o valor da pessoa humana.
É o modo de olharmos e de acolhermos no nosso coração a Palavra de hoje de Jesus que nos faz ver uma mulher pobre e dizer: “Ela deu mais do que todos.” A tradição da Igreja tem sido esta desde o princípio. Por exemplo, quando o imperador prendia os primeiros cristãos e lhes dizia: “Ide buscar o tesouro da Igreja.“, S. Lourenço, que era o administrador da comunidade de Roma, foi preso e mandaram-no: “Olha, vai buscar o tesouro da comunidade para resgatar os cristãos.” E S. Lourenço foi buscar os pobres e disse: “O tesouro da igreja são os pobres.”
Então, isto para nós, cristãos, é um desafio constante. O que é o nosso tesouro? O que é o nosso tesouro? O que é que nós consideramos que é dar mais? Que é dar mais? Há de facto uma visão, uma visão que o próprio Jesus nos ensina a construir. Uma visão onde a pessoa humana está no centro, a pessoa humana com a sua fragilidade, a sua dificuldade.
Às vezes penso em como podemos ser super exigentes para uma pessoa mais frágil, mais fraca, mais vulnerável. E achamos: “Ah! Mas ela não faz nenhum esforço.” Às vezes o pequenino passo que ela faz, e que para nós nos parece insignificante, é mais do que todos os esforços e todos os passos que nós podemos dar ou pensar que damos. Por isso, há aqui uma conversão do olhar, uma conversão do olhar. Crer é o risco de crer, amar é o risco de amar.
Hoje, as leituras da Palavra de Deus colocam-nos perante o risco de amar. É um risco que, aos diversos níveis, implica uma conversão para cada um de nós. Porque preferimos muito mais um amor assegurado, um amor garantido, um amor consolidado, um amor isto, um amor aquilo, um amor que nos compense. E este risco de amar por amar, que está no cerne do Evangelho, é alguma coisa que constitui de facto um chamamento para cada um de nós. Um chamamento, um desafio exigente, mas também uma oportunidade.
Porque às vezes penso na maravilha do olhar de Jesus, nas coisas que Ele reparava. É como se Ele escrevesse a história do mundo de outra forma, de outra maneira. E no fundo, bem-aventurados os que têm o olhar puro, porque são capazes de identificar a presença do Reino, a chegada do Reino nas coisas mais pequenas e que para os outros são invisíveis.
Dom José Tolentino Mendonça,
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