As diversas passagens do evangelho que, há alguns domingos, estamos lendo, estão situadas nos últimos tempos de Jesus: a paixão vai se aproximando. Podemos considerar estes textos como uma espécie de testamento; palavras que coroam e resumem o conjunto da mensagem. Notemos que nossa leitura de hoje guarda plena coerência com o «Discurso após a Ceia», do Evangelho de João: o convite ao amor mútuo, pelo qual passa o amor a Deus, é de qualquer forma a última palavra do nosso evangelho. É este o amor que Jesus vai agora afixar na cruz. (...)
Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?
Mateus 22,34-40
No domingo passado, assistimos a uma disputa entre Jesus e os fariseus, que se tinham aliado com os herodianos para armar-lhe uma cilada a propósito do imposto a pagar a César. O evangelho deste domingo apresenta-nos uma nova disputa com os fariseus, desta vez aliados com os saduceus, a rica elite sacerdotal e política. Entre estas duas disputas, houve uma outra entre Jesus e os saduceus (omitida na liturgia), sobre a ressurreição dos mortos, com a famosa história da mulher viúva de sete maridos.
A) Uma pergunta inocente e pertinente?
A controvérsia de hoje é sobre uma questão teológica: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”. A pergunta é feita por um doutor da Lei, por assim dizer um teólogo, a quem os fariseus tinham pedido uma ajuda para pôr à prova a ortodoxia de Jesus. Mas, desta vez, onde é que está a armadilha?
A pergunta parece inocente e pertinente. De facto, com a intenção de regular toda a vida segundo a lei de Deus, os rabinos tinham identificado 613 preceitos na Torá (ou seja, no Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia), para além dos Dez Mandamentos. Desses 613 preceitos, 365 eram negativos, proibições (coisas a não fazer), correspondentes ao número de dias do ano civil, e 248 eram positivos, prescrições (coisas a fazer), correspondentes ao número de órgãos do corpo humano, segundo a crença da época. Neste emaranhado de leis, sentia-se a necessidade de discernir o que era mais importante.
Mas se a questão era pertinente, onde estava a armadilha? Para a mentalidade comum, o grande mandamento era o terceiro do decálogo: a observância do sábado, porque o próprio Deus o tinha observado após o “trabalho” da criação. Os seus adversários esperavam, portanto, que Jesus desse esta resposta e, nessa altura, dir-lhe-iam: “Então porque é que tu e os teus discípulos não guardam o sábado?”.
Jesus, porém, confunde-os mais uma vez. Não menciona nenhum dos Dez Mandamentos. Não se coloca no terreno legalista deles, mas eleva-se ao nível do amor. Jesus cita a profissão de fé do Shema’ (Deuteronómio 6,4-5), a oração que cada israelita recita três vezes por dia (de manhã, à noite e ao deitar): “‘Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito’. Este é o maior e o primeiro mandamento”. Jesus acrescenta, porém, uma citação do Levítico 19,18: “O segundo, porém, é semelhante a este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’”. Quem é este “próximo”? A primeira leitura especifica-o: o indigente, o pobre, o estrangeiro, o órfão e a viúva (Êxodo 22,20-26).
“Nunca… em toda a Escritura, os “dois amores” são colocados tão indiscutivelmente no mesmo plano para se espelharem um no outro. O segundo é semelhante ao primeiro: isto é, não é idêntico, nem sequer mais ou menos importante. Mas é feito da mesma matéria, um espelhando o outro, um tornando verdadeiro o outro” (Gabriella Caramore).
S. Agostinho comenta: “O amor a Deus é o primeiro que se ordena, mas o amor ao próximo é o primeiro que se deve praticar”.
B) Alguns pontos de reflexão
1. O amor é a lei!
O amor torna-se a chave da existência. Deus é amor (1Jo 4,8.16) e amou-nos primeiro (1Jo 4,19) e o crente é aquele que acreditou no amor (1Jo 4,16). Não um amor sentimental, mas um amor feito de escuta de Deus e de boas obras para com os irmãos. Porque aquele que diz que ama a Deus e não ama o seu irmão é mentiroso (1 Jo 4,20-21). O amor do irmão é o espelho e a prova do amor de Deus. É por isso que Jesus sintetiza tudo no seu “mandamento novo”: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34; 15,12). O amor é o motor da vida e da história!
2. Do deus-senhor ao Deus-Esposo!
O caminho de amadurecimento para a revelação de Deus-Amor e a passagem do regime da lei para o do amor foi um longo processo efectuado pelos Profetas. Jesus leva-o à sua plenitude. “E acontecerá naquele dia – oráculo do Senhor – que me chamarás ‘meu marido’, e não me chamarás mais ‘Baal, meu senhor’” (Oséias 2,18).
3. A sinfonia do amor
O teólogo protestante alemão D. Bonhoeffer escreveu da prisão: “O amor de Deus é como o cantus firmus” da “polifonia da vida” . “Gostaria de vos pedir que fizésseis ressoar claramente o cantus firmus na vossa vida em comum, e só então haverá um som pleno e completo…. Só quando nos encontramos nesta polifonia é que a vida se torna completa” (carta de 20 de maio de 1944). Só quando existe este cantus firmus, a melodia de fundo do amor de Deus, é que podemos unir todos os amores e fazer um canto polifónico dos três amores fundamentais da nossa existência: Deus, o próximo e nós próprios!
4. Amarás!
Os deuses pagãos queriam adoradores submissos, escravos, sob o regime do medo. O Deus de Jesus Cristo quer filhos livres, capazes de amar. O verbo amar – ahav em hebraico – aparece 248 vezes no Antigo Testamento (Fernando Armellini). Um número que me chama a atenção por ser o número de preceitos positivos (coisas a fazer) que coincide com o número de membros do corpo humano, segundo a tradição rabínica. As palavras do Shemà (em hebraico) são 245. Repetindo a última expressão, tornam-se 248. Eu diria, como que para sublinhar simbolicamente, que a única coisa a fazer é amar e devemos fazê-lo com todas as fibras do nosso ser: “com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito”!
P. Manuel Joao Pereira Correia, comboniano
Verona, Outubro de 2023
Qual é o maior mandamento?
Êxodo 22,20-26; 1 Tessalonicenses 1,5-10; Mateus 22,34-40
Os dois mandamentos
As diversas passagens do evangelho que, há alguns domingos, estamos lendo, estão situadas nos últimos tempos de Jesus: a paixão vai se aproximando. Podemos considerar estes textos como uma espécie de testamento; palavras que coroam e resumem o conjunto da mensagem. Notemos que nossa leitura de hoje guarda plena coerência com o «Discurso após a Ceia», do Evangelho de João: o convite ao amor mútuo, pelo qual passa o amor a Deus, é de qualquer forma a última palavra do nosso evangelho. É este o amor que Jesus vai agora afixar na cruz.
Lembremos que os dois mandamentos citados por Jesus não fazem parte do Decálogo. O primeiro encontra-se em Deuteronômio 6,5, no famoso «Escuta Israel», que é frequentemente recitado pelos judeus. O segundo vem do Levítico 19,18, capítulo no qual encontramos uma grande variedade de fórmulas a respeito do amor ao próximo. A novidade trazida pelo evangelho de hoje consiste em declarar «semelhantes» estes dois «mandamentos» tirados de dois livros diferentes. Para mim, aqui, este «semelhante» não significa somente «comparável», mas «idêntico». Em outras palavras, o nosso amor para com Deus só pode ganhar forma através do nosso amor para com os outros. Lembremos o que diz João, em sua primeira carta (4,20): «Quem não ama seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê.»
A única relação ao Deus desconhecido
Uma questão se põe: pode alguém amar a Deus a quem não vê e em quem às vezes nem mesmo crê, simplesmente amando os outros e colocando-se a seu serviço? Pode-se amar a Deus sem saber? A resposta é sim. E é exatamente o que está dito em Mateus 25,21-45. O texto é célebre: «Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, era forasteiro e me acolhestes, estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me.» Quando fizemos tudo isto? Perguntam estupefatos os destinatários desta declaração, ou melhor, desta revelação. Conhecemos a resposta: «Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.» Os interlocutores ficaram surpresos! Este é um convite para que olhemos com outros olhos a quantos, solitariamente ou no quadro de organismos diversos, consagram parte de suas vidas aos necessitados do Terceiro Mundo ou aos rejeitados e excluídos das nossas sociedades de consumo. O Cristo encontra-se, escondido, nos homens que a vida crucifica e, também, nos que lhes prestam socorro. O «Reino» já está aí. Jesus, no evangelho, diz que tudo o que está nas Escrituras, toda a Lei e os Profetas dependem destes dois mandamentos do amor, que são apenas um. Esta é uma das chaves que deve orientar a nossa leitura da Bíblia, submetendo-a à busca do amor.
O Amor acima de tudo
Na versão paralela de Marcos (12,28-34), lemos que o duplo mandamento do amor não apenas recapitula o conjunto das Escrituras, mas também que vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios. O que equivale a dizer que o culto, o rito não serve para nada se não for a expressão e celebração de um amor que, além disso, no quotidiano, seja o motor da vida. Somos, no entanto, muito hábeis, até mesmo sutis, em nos esquivarmos, em encontrar sucedâneos a um amor que ama como o Cristo nos ama, ou seja, dando a nossa vida (ver João 15,13). Confundimos com facilidade o amor a que se refere o Evangelho com um simples sentimento de afeto que frequentemente não sobrevive à prova, ou com uma atração física, psicológica ou mesmo sexual que com o tempo pode revelar-se o inverso do amor: a decisão do dom de si mesmo confunde-se então com o seu contrário, a vontade de possuir, de usufruir o outro e, até mesmo, de dominá-lo. Por isso devemos desconfiar quando vamos repetindo «amor, amor», o que faço aliás neste momento, seguindo Jesus em seu discurso após a última Ceia, segundo João 13-17. Para Paulo, o amor, a que chama preferentemente de «caridade» e que é o cumprimento da Lei (ler Romanos 13,6-10), está acima da fé, que um dia cederá lugar à visão; acima da esperança, que terá fim quando entrarmos na posse da vida que ela espera e que é o lugar de acesso ao amor integral (1 Coríntios 13). Não esqueçamos que Amor é o outro nome de Deus.
Marcel Domergue
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