“É verdade que Deus nos torna capazes de perdoar, porque outros o testemunharam; mas, ao mesmo tempo, ele é incapaz de perdoar sem nós. Mesmo sendo divino, o perdão continua sendo humano, no sentido de que ele nunca é fácil de oferecer e de acolher. Requer muito esforço, vontade, renúncias, sacrifícios, generosidade e sobretudo muito amor”.
Quantas vezes já perdoaste a Deus?
Quantas vezes hei-de perdoar?
Mateus 18,21-35
Hoje concluímos o quarto discurso de Jesus, que reúne os ensinamentos do Senhor sobre a vida comunitária. O trecho evangélico é a continuação do de domingo passado sobre a correção fraterna. Neste contexto, Pedro pergunta a Jesus: “Se meu irmão me ofender, quantas vezes deverei perdoar-lhe? Até sete vezes?”. Pedro mostra-se generoso, propondo o número sete, o número da plenitude. Ele sabia certamente que os rabinos falavam de três ou, no máximo, quatro vezes, mas tinha bem presente a insistência de Jesus no perdão.
De facto, ao ensinar-lhes o Pai-Nosso, a única petição que tinha comentado era a do perdão: “Se não perdoardes aos outros, também o vosso Pai não perdoará os vossos pecados” (Mateus 6,15). Depois, num contexto semelhante, Jesus disse: “E se ele [o teu irmão] cometer uma falta sete vezes por dia contra ti e sete vezes voltar a ti dizendo: "Estou arrependido", tu perdoar-lhe-ás”. Então os Apóstolos disseram: “Aumenta em nós a fé!” (Lucas 17,4-5). Era de facto demasiado! Diríamos, portanto, que a questão do perdão era uma ideia fixa de Jesus!
À pergunta de Pedro, Jesus responde, mais uma vez, de forma inesperada e surpreendente: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”! Sabemos que, nestes casos, os números bíblicos não se referem à quantidade mas à “qualidade”. 7 x 10 x 7, ou seja, a “perfeição” de 7 multiplicada pela “totalidade” de 10. Trata-se, por isso, dos antípodas de Lameque, descendente de Caim, que se gabava de se ter vingado setenta e sete vezes (Génesis 4,24). Ou se é filho de Deus ou se é filho de Caim! É claro, portanto, que é preciso perdoar sempre e em qualquer situação!
O assunto parecia estar encerrado, mas Jesus acrescenta a parábola do patrão misericordioso e do servo mau. Porquê? Porque quer ligar, mais uma vez, o perdão dos irmãos ao perdão do Pai!
Conhecemos bem a parábola, que é muito eloquente. “O reino de Deus pode comparar-se a um rei que quis ajustar contas com os seus servos...” Um rei que teve compaixão de um dos seus servos e lhe perdoou uma dívida de dez mil talentos, uma soma astronómica e improvável, deliberadamente exagerada. Na linguagem atual, isso equivaleria a vários milhares de milhões de euros! Ora, este servo, que acabara de sair da presença do rei, foi implacável para com um outro servo, seu colega, que lhe devia 100 denários, o equivalente a cem dias de trabalho. O facto chegou aos ouvidos do rei que, com razão, se enfureceu: “Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque mo pediste. Não devias, também tu, compadecer-te do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti? E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos, até que pagasse tudo o que lhe devia”.
Pois bem, a conclusão de Jesus não deixa de ser surpreendente: “Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão de todo o coração”!
1. O perdão é uma decisão... a caminho!
Todos nós sabemos como é difícil perdoar. O perdão nunca é espontâneo. Espontâneos são a raiva e o desejo de se vingar. Há mesmo quem pense que o perdão é um sinal de fraqueza. “Aquele que perdoa é um fraco, é incapaz de fazer valer os seus direitos; a bondade é uma incapacidade de se revoltar, a paciência é uma cobardia, o perdão é uma incapacidade de se vingar”, dizia Nietzsche.
“Perdoar” vem do latim “perdonare” e é o reforçativo de “dar”, dar por inteiro, mas nunca é um dom “gratuito”, porque custa por vezes sangue e lágrimas a quem o dá. Mesmo o perdão de Deus é “uma graça a caro preço” (Bonhoeffer), porque custou o sangue de Cristo. É por isso que o perdão é fruto de uma decisão corroborada pela graça. E não é uma decisão tomada de uma vez por todas. Deve ser renovada sempre que a memória traz a ofensa à mente e o sofrimento ao coração. Porque o perdão consolida-se progressivamente antes de se tornar definitivo. O perdão dá-se... caminho fazendo!
Todos nós consideramos o perdão das ofensas uma consequência natural do mandamento do amor. No entanto, muitos cristãos escutarão esta palavra com o rancor no coração contra alguém, talvez desde há anos, determinados a não perdoar um mal sofrido. E escutam-na sem se sentirem minimamente tocados. “Sim, sim”, dizem a si próprios, “uma coisa bonita, mas irreal!”
2. Mas... quantas vezes é que Deus perdoa?
A resposta parece óbvia: sempre! Mas será que estamos realmente convencidos? No tempo de Jesus, alguns rabinos diziam que Deus perdoa duas vezes, à terceira vez castiga! Embora o Antigo Testamento nos fale continuamente do amor de Deus, como no salmo responsorial de hoje: “O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade” (Salmo 102), há também passagens que parecem contradizê-lo: “O Senhor é um Deus ciumento e vingativo, o Senhor é vingativo, cheio de ira. O Senhor vinga-se dos seus adversários e guarda rancor contra os seus inimigos.” (Profeta Naum 1,2). O povo de Deus foi muito lento a abrir-se à revelação do amor de Deus. Jesus revelou-nos definitivamente que Deus é Amor e é Misericórdia. Mas também nós somos “de dura cerviz” como o povo de Israel e concebemos Deus “à nossa imagem e semelhança”: não um Deus Justo, mas justiceiro! não um Pai, mas um patrão! não para ser amado, mas para ser temido!
Mas então porque é que Jesus parece quase ameaçar-nos na conclusão da parábola: “Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão de todo o coração”? É uma forma de enfatizar o seu ensinamento, mas a verdade é que o perdão de Deus não é.... automático! Requer a nossa recetividade. E a nossa capacidade de receber o perdão de Deus corresponde à nossa vontade de o oferecer aos nossos irmãos. Não perdoar é como um manto de plástico que nos cobre e impede que a água do perdão divino nos lave!
3. E quantas vezes já perdoaste a Deus?
A pergunta pode suscitar um sorriso. Mas penso que todos nós conhecemos alguém que abandonou a fé, zangado com Deus por não ter escutado uma oração num momento de angústia, por ter “permitido” uma desgraça, por causa de um luto trágico... Para não falar das guerras, do sofrimento, das injustiças que abundam por todo o lado... Atrevo-me a dizer que todos nós temos algo a “perdoar” a Deus, só que não temos coragem de o confessar e enterrámo-lo no inconsciente profundo do nosso coração. Penso que, sempre que saímos da confissão, deveríamos fazer o sinal da cruz virado para o céu e dizer: “Senhor, tu pregaste-me uma partida ao permitires que isto me acontecesse, mas eu também te perdoo porque te amo”.
4. E quantas vezes já te perdoaste a ti próprio?
Muitas vezes temos dificuldade em perdoar porque não estamos em paz connosco próprios. Não nos perdoámos a nós próprios um fracasso, a humilhação de uma fraqueza, o remorso de um erro grave ou de um pecado que cometemos... Não basta que Deus nos perdoe, nem que sejamos perdoados por aqueles que magoámos. Temos de pedir a graça de nos perdoarmos a nós próprios. E assim, de forma semelhante, depois de cada confissão, devo virar a mão para mim e traçar o sinal da cruz sobre mim mesmo para me absolver a mim próprio: “Manuel João, eu te absolvo da asneira que fizeste. Vai em paz!”.
P. Manuel João Pereira, comboniano
O perdão
regenera a pessoa e as sociedades
Sirácide 27,30 – 28,9; Salmo 102; Romanos 14,7-9; Mateus 18,21-35
Reflexões
O tema central dos cinco textos bíblicos de hoje, incluso o Pai Nosso, é o perdão: a necessidade cristã de perdoar até “setenta vezes sete”, isto è sempre, como Jesus ensina no texto do Evangelho, que continua e conclui o discurso eclesial (Mt 18) sobre o relacionamento entre as pessoas. Trata-se de um ensinamento insistente de Jesus, começando com “felizes os misericordiosos…” no sermão da montanha, até ao Calvário: Mt 5,7; 6,14-15; 9,2-6; 12,31-32; 18,21-35; 26,28; e depois da palavra vem o exemplo de Jesus na cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). È o máximo.
Na Bíblia nota-se um progresso na compreensão e na prática da lei do perdão. Nos tempos primitivos, o brutal Lamec, filho de Caím, conhece somente a represália cruel, a vingança sem limites, até ‘setenta vezes sete’ (cf Gen 4,23-24). Uma reacção mais equilibrada vem mais tarde, com a lei antiga do talião: “olho por olho, dente por dente, mão por mão…” (Ex 21,24). O que não deve ser interpretado como um incitamento pagar o mal com o mal, mas como um limite que se coloca para não exagerar na resposta a quem ofende. Chega-se enfim ao ponto mais alto do Antigo Testamento com o convite a recusar a vingança e o rancor, e a amar o próximo como a nós mesmos (cf Lev 19,18); o texto de hoje, do livro de Sirácide (I leitura) refere-se a esta posição. No tempo de Jesus, os Rabinos limitavam o perdão até três vezes. Pedro estende-se até às sete vezes (Mt 18,21), mas Jesus não aceita limites: até setenta vezes sete; o perdão há-de ser sem medida, como infinita è a misericórdia do Pai (Lc 6,36).
As leituras apresentam vários fundamentos do perdão. A parábola de Jesus (Evangelho) evidencia a distância imensa que existe entre o coração de Deus, que perdoa sempre tudo (Salmo responsorial), e o coração do homem que frequentemente é áspero e mesquinho (Mt 18,33). Sirácide (I leitura) lembra com severidade: “Recorda-te do teu fim… recorda-te da morte” (v. 6.7). A agressividade dilui-se então na reflexão sobre os limites da vida humana. “Pode parecer um chavão banal, mas tem a sua profundidade psicológica: recusar a morte é a raiz da violência… não aceitar o nosso próprio limite significa colocar na raiz da nossa vida as premissas de todos os desvios” (E. Balducci).
Paulo (II leitura) convida à tolerância e à compreensão colocando ao centro da vida, não o eu egoísta, mas Cristo que morreu e ressuscitou por todos, o único que dá valor e sentido à nossa vida e à nossa morte. Vivendo para o Senhor (v. 7), descobrimos a universalidade e a missão que se abe a todos.
O perdão regenera interiormente a pessoa e as comunidades, a todos os níveis; torna-as semelhantes a Deus, à sua imagem e semelhança; liberta-nos das tensões e da agressividade que por vezes inquinam o relacionamento interpessoal e social; interrompe a cadeia de vinganças; revela a grandeza de animo da pessoa e das instituições. Para além do espaço interpessoal e doméstico, o perdão cristão aplica-se sobretudo ao nível dos grupos, sociedades e nações. O papa João Paulo II referiu-se com frequência a este tema particularmente nas suas mensagens para o Dia Mundial da Paz e apresenta-o como critério para resolver as tensões entre os povos. (*) Uma das pessoas que mais tem reflectido sobre a dimensão mundial do perdão e da paz è certamente o card. Carlo M. Martini: “O perdão também tem um valor civil e político. Até que não se consiga renunciar a alguma coisa a que teoricamente se teria direito, até que se queira a todo o custo aquilo que nos compete, aquilo que è de direito, e se continue simplesmente a fazer a lista das próprias razões, nunca se chegará à paz, porque não estamos dispostos a pagar o seu preço. Sim, porque a paz tem um preço… A paz, neste mundo marcado pelo pecado, exige uma vontade constante de perdoar: nas famílias, dentro das comunidades, entre as Igrejas, e ainda mais no contexto civil”. A paz e o perdão são uma mensagem prioritária na missão.
A palavra do Papa (*)
“Oferece o perdão, recebe a paz” (1997).
“Não há paz sem justiça; não há justiça sem perdão” (2002).
“Não te deixes vencer pelo mal, vence antes o mal com o bem” (2005).
João Paulo II - Mensagens para o Dia Mundial da Paz
P. Romeo Ballan, MCCJ
Perdão a todo o custo
Mateus 18,21-35
Referências bíblicas:
Eclo 27,33-28,9; Sl 103 (102); Rm 14,7-9; Mt 18,21-35
No discurso sobre a Igreja do evangelho de Mateus e sobre as relações entre discípulos, na semana passada tínhamos um convite à misericórdia para com aquele ou aquela que rompe a unidade da comunidade, e hoje temos um convite ao perdão ilimitado e incondicional para com aquele ou aquela que nos fere.
Pedro pergunta: “Senhor, quantas vezes devo perdoar o meu irmão que peca contra mim? Sete vezes?” (Mt 18, 21). No primeiro século, rabinos judeus tinham legislado em matéria de perdão; haviam chegado à conclusão de que se podia perdoar a mesma pessoa por três vezes, mas, na quarta ofensa, era preciso se tornar mais severo.
Pedro, querendo mostrar a sua boa vontade, sugere sete vezes, o número perfeito… Mas a resposta do Cristo do Evangelho vai muito além: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18, 22). Portanto, o perdão cristão deve ser ilimitado e incondicional. Não há mais lugar para a vingança, o rancor, a cólera.
Ben Sirac, o Sábio, ainda no Antigo Testamento, reconhecia que o rancor e a cólera eram uma abominação que não resolvia nada, mas cuja obstinação criava situações ainda piores do que a ofensa que havia sido feita: “Cólera e furor são ambos execráveis; o homem pecador os alimenta em si mesmo” (Eclo 27, 33). O exemplo mais evidente que temos hoje é a situação entre Israel e Palestina. Mas, atenção! Isso não significa que não devemos buscar a justiça. É preciso fazer de tudo para restaurar a justiça. Mas não se deve fazer isso com rancor, cólera e vingança.
Mas por que Ben Sirac acrescenta: “Aquele que quer vingar sofrerá a vingança do Senhor” (Eclo 28, 1)? Deus seria rancoroso e vingativo? Não, eu não acredito nisso. As afirmações do Sábio reconhecem simplesmente a nossa responsabilidade diante do perdão. Se somos incapazes de perdoar, como podemos implorar o perdão de Deus para nós? “Um homem guarda rancor contra outro homem, e pede a Deus a sua cura!?” (Eclo 28, 3). Não é Deus que recusa o perdão; somos nós os incapazes de acolhê-lo. Porque, para acolhê-lo, é preciso ser capaz de oferecê-lo.
Essa é a nossa responsabilidade diante do perdão. É um pouco como dizia o evangelista Mateus na semana passada: “Tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes sobre a terra será também desligado no céu” (Mt 18, 18). A nossa missão consiste em libertar as pessoas, desligá-las, mas, como nós não temos a capacidade de fazê-lo, Deus não pode fazê-lo em nosso lugar.
O perdão não pode ser acolhido se não for sobretudo oferecido. Esse é o sentido da parábola de hoje, no Evangelho de Mateus, que quer ilustrar o sentido do perdão e a grandeza do perdão cristão. O montante de dinheiro devido pelo servo ao qual o patrão pede as contas, 10 mil talentos ou 60 milhões de moedas de prata (Mt 18, 24) é tão enorme e desproporcional que é impensável reembolsar uma tal quantia. Está além de toda compreensão; seriam necessárias centenas de anos de trabalho para consegui-la.
Porém, o rei da parábola, Deus, se deixa enternecer pelo homem que chega até a fazer com que ele acredite que poderá ser reembolsado: “Dá-me um prazo, e eu te pagarei tudo!” (Mt 18, 26). “Cheio de compaixão [comovido até as entranhas], o senhor o deixou ir embora e perdoou-lhe a dívida” (Mt 18, 27).
Essa primeira parte da parábola quer mostrar a grande generosidade de Deus, a grandeza e a gratuidade do seu perdão para todos nós, seus servos. Se Cristo nos mostra a grandeza e a gratuidade do perdão de Deus é oferecido e acolhido, é para nos convidar a fazer o mesmo com os outros. Mas eis que o próprio servo se dirige ao irmão, a um companheiro que lhe deve apenas 100 moedas de prata, uma soma ridícula com relação à sua dívida. E se recusa a oferecer o perdão que lhe foi oferecido tão generosamente: “Mas, sem nada querer ouvir, este homem o fez lançar na prisão, até que tivesse pago sua dívida” (Mt 18,30).
Nesse ponto, se assiste a uma inversão da situação, uma mudança na atitude do rei: “Servo mau, eu te perdoei toda a dívida porque me suplicaste. Não devias também tu compadecer-te de teu companheiro de serviço, como eu tive piedade de ti?” (Mt 18, 32-33). Pode-se ver uma vingança da parte de Deus, ofendido pela atitude do servo, ou se pode ver um ensinamento sobre a justiça retributiva, que uma certa teologia continua promovendo na Igreja.
Não acredito que se possa fazer uma tal leitura da parábola. Acredito, ao contrário, que a parábola nos convida a revelar o rosto misericordioso de Deus, como Jesus de Nazaré soube fazer na sua vida até a morte na cruz: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Porque, se Deus se revela na história humana, mediante as mulheres e os homens da história, ele só pode ser o que se diz sobre ele. Por isso, ele assume o rosto que lhe damos, a partir do que nós somos.
Em outras palavras, é verdade que Deus nos torna capazes de perdoar, porque outros o testemunharam; mas, ao mesmo tempo, ele é incapaz de perdoar sem nós. Não é isso, talvez, o que dizemos no Pai Nosso: “Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6, 12)? Não nos esqueçamos, sobretudo, que a misericórdia não dispensa o restabelecimento da justiça, mas não se trata de uma justiça retributiva com relação a Deus. A justiça se aplica entre nós: “Com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos” (Mt 7, 2), ou também “Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles” (Mt 7, 12).
Pode-se até dizer que o perdão humano também é divino, no sentido de que nos permite superar o reflexo humano da vingança, do rancor, da violência, do mal pelo mal. O perdão anula a lei do talião, a justiça retributiva. O perdão nos faz superar a nós mesmos: “Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos?” (Mt 5, 46).
Mas, ao mesmo tempo, mesmo sendo divino, o perdão continua sendo humano, no sentido de que ele nunca é fácil de oferecer e de acolher. Requer muito esforço, vontade, renúncias, sacrifícios, generosidade e sobretudo muito amor. Além disso, quando se sabe até que ponto o perdão liberta e dá novamente a vida, tanto àquele que o acolher, quanto àquele que o oferece, é lá que o humano toca o divino e torna todos os perdões possíveis.
Para terminar, o perdão não é esquecer a ofensa que foi feita, como se se pudesse fazer com que o passado não tivesse acontecido; o perdão é um compromisso para o futuro. A esse respeito, gostaria de lhes propor a reflexão do padre Jacques Sommet, ex-deportado a Dachau, que escreve:
“Um perdão verdadeiro é algo muito difícil, porque somos habitados pelo nosso próprio passado, fixados pelas cicatrizes recebidas ou pelas feridas que foram causadas; é como uma espécie de morte. A inimizade e o ódio não continuam sendo, talvez, realidades entre as mais duradouras da história pessoal e coletiva? Cristo, com a sua paixão, oferece a graça de uma fraternidade renovada… Ele mesmo está em atitude de perdão… A sua paixão é, de certo modo, um perdão realizado antes de ser uma palavra… Perdoar é fazer com que, lá onde haja ferida e injustiça, haja abertura de si e do outro à descoberta da grandeza do dom de Deus, uma abertura que passa justamente pela consciência das feridas que um faz ao outro. E quando isso é possível, vemos então uma promessa e uma esperança, lá, onde, caso contrário, estaríamos encurralados no desespero”.
A reflexão é de Raymond Gravel. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
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