Jesus faz nesta página do Evangelho de Mateus como faz sempre connosco e com o evangelho da nossa própria vida. Jesus ajuda-nos a ler em profundidade e a perceber isto: a perceber que se eu não estou disposto a perder, a perder-me, em última análise a perder a vida, eu nunca vou descobrir o sabor profundo da vida.

O EVANGELHO INTEIRO NUM COPO DE ÁGUA
Mateus 10,37-42

O evangelho deste domingo é a conclusão do chamado discurso apostólico ou missionário (Mateus 10). É um discurso que diz respeito a todo o cristão que, pelo batismo, se torna discípulo de Jesus, seu apóstolo e missionário.

IDENTIDADE: Quem sou eu?

A primeira palavra que gostaria de sublinhar é o pronome relativo indefinido QUEM que aparece nove vezes neste breve texto. Lembra-nos que a vida é feita de escolhas. Em qual das alternativas apresentadas por Jesus é que me encontro? Entre os que são dignos dele? Entre os que arriscam a vida por ele? Entre os que o acolhem?

RADICALIDADE: Sou digno dele?

As condições para ser discípulo de Jesus são de facto muito exigentes. Jesus diz-o claramente, por três vezes: “… não é digno de mim!” Ele quer, exige mesmo, o primeiro lugar nos afectos e nos projectos. Só uma grande paixão por ele e uma dedicação total ao Reino de Deus podem sustentar uma vida de empenhamento radical na criação da nova humanidade. Nunca um rabino tinha feito tais exigências. É impresionante notar que em meia duzia de versículos aparece o pronome pessoal e o possessivo de primeira pessoa (mim, me, meu) onze vezes. Seria espontâneo dizer-lhe, como os judeus: “Quem pensas que és?” (Jo 8,53). Ele responderia: “Exatamente o que eu vos digo” (8,25). Para quem o não conheça seria megalomania, mas para quem o ama é como ver por todo o lado o nome da pessoa amada. Ele reivindica para si o amor reservado só a Deus: “Ouve, ó Israel: o Senhor é o nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Deuteronómio 6,4-5). Jesus não põe em causa o amor filial e materno/paterno, mas interroga-nos sobre as nossas prioridades: quem é o maior amor da tua vida?

ACOLHIMENTO: O meu coração é acolhedor?

Encontramos o verbo acolher oito vezes no nosso texto: acolher o apóstolo, o profeta, o justo e o pequenino. Em todos eles, acolhemos Cristo e, nele, o Pai.
Ter um coração acolhedor é hoje mais urgente e necessário do que nunca, numa sociedade que fecha portas e ergue barreiras, por egoísmo ou por medo do diferente. Acolher é uma obra de misericórdia, mas perdemos a ideia bíblica do acolhimento, que não era apenas um acto de temor a Deus, mas uma bênção trazida pelo visitante. Recordamos o exemplo de Abraão perante os três viandantes desconhecidos: “Meu senhor, se encontrei graça aos teus olhos, não passes sem te deteres junto do teu servo” (Génesis 18,3).
Na primeira leitura, encontramos um belo exemplo de acolhimento. Uma mulher acolhe o profeta Eliseu: “Mandemos-lhe fazer no terraço um pequeno quarto com paredes de tijolo, com uma cama, uma mesa, uma cadeira e uma lâmpada. Quando ele vier a nossa casa, poderá lá ficar” (2 Reis 4).

Gosto de ver aqui – como num ícone – uma alusão simbólica às condições essenciais para acolher Deus na nossa vida. Cada um de nós precisa desse “pequeno quarto no terraço”, “em tijolo”, isto é, sólido e estável, onde cultivar a interioridade e encontrar o Senhor. Aí predominam a sobriedade e a essencialidade: uma cama, uma mesa, uma cadeira e um candeeiro. A cama lembra-nos a necessidade de um equilíbrio saudável entre o fazer e o repousar; a mesa e a cadeira, a reflexão; a lâmpada, a meditação da Palavra, “lâmpada para os nossos passos” (Salmo 119,105).

RECOMPENSA: Qual será a minha recompensa?

Jesus fala três vezes de recompensa. A Sagrada Escritura fala muitas vezes da recompensa de Deus, e Jesus também fala muitas vezes dela. Toda a caminhada de fé começa com a promessa: “A tua recompensa será muito grande” (Génesis 15,1). Os apóstolos não hesitam em perguntar a Jesus: “Deixámos tudo e seguimos-te; que teremos, pois?” (Mateus 19,27). Hoje, porém, quase nos envergonhamos de falar de recompensa na esfera da fé, como se fosse uma traição à gratuidade do amor. A nossa dimensão corporal, porém, quer a sua parte e, se for ignorada, vai procurá-la no gozo imediato dos sentidos.
Como é útil recordar esta promessa do Senhor de que cada pequeno gesto que fazemos por amor terá a sua recompensa! “Todo o Evangelho está na Cruz, mas todo o Evangelho está também num copo de água” (Ermes Ronchi).

O nosso coração não é “puro”, isto é, “inteiro”, mas “impuro”, composto. Só Deus é “puro”, puro amor. A Palavra de Deus dirige-se à nossa pessoa na sua diversidade.
– Em nós há o “escravo” que teme o “castigo”. O de cá e o eterno: o inferno! (E não me digam que o inferno não existe, que é uma invenção do obscurantismo da Idade Média. O inferno é o afastamento absoluto e definitivo de Deus, fonte do Calor do amor e da Luz da vida. O inferno é a escuridão absoluta ou o “zero absoluto” a -273 graus). Pois bem, a Palavra educa o nosso escravo para que ele passe do medo ao temor reverencial de Deus.
– Em nós há o “servo” que trabalha por “salário”, por interesse. A Palavra educa-o a passar da mentalidade de adquirir “méritos” perante Deus (uma ideia pagã, dado que tudo é dom!) para a da “promessa” de Deus; da condição de “servo” para a de “amigo” (João 15,15).
– Em nós, finalmente, há o “filho”. A Palavra educa-o para ser cada vez mais consciente desta palavra do Pai: “tudo o que é meu é teu”, e para se tornar um filho adulto e responsável dos seus irmãos e irmãs.

Exercício espiritual e oração para a semana

– Empenhar-se na construção de “um pequeno quarto no terraço, em tijolo”;
– Senhor, eu creio, mas aumenta a minha fé! (Marcos 9,24)

P. Manuel João Pereira, comboniano
Castel d’Azzano (Verona), Junho de 2023

Mt 10, 37-42
Ampliar a vida

Queridos irmãs e irmãos,
Lembro-me de uma provocação feita pelo Manoel de Oliveira numa entrevista na televisão. A dada altura ele diz que imaginava uma sociedade sem dinheiro, onde nos relacionávamos uns com os outros, não a partir do que ganhávamos e deste instrumento monetário que supostamente assegura a nossa vida e assegura a sustentabilidade das nossas sociedades, mas da descoberta de outras formas de organizar o mundo e organizar a vida entre nós.

Na tradição bíblica certamente nós encontramos outras formas. Quando refletimos a fundo sobre o significado da nossa vida e sobre aquilo que é decisivo para a fecundidade da nossa existência, sem dúvida que o dinheiro não pode aparecer em primeiro lugar, e se aparece é um equívoco. Hoje nós temos, quer na primeira leitura do Livro dos Reis, quer no Evangelho, a descrição de uma vida baseada no dom. O que é que é uma vida baseada na dádiva? Há esta mulher que percebe que há este profeta que vai passando todos os anos. E ela diz: “A minha casa tem de se modificar.” E faz subir a casa e constrói um quarto para a hospitalidade, para o acolhimento. Então o que é que esta mulher sente? Ela sente que a sua vida se modifica a partir daí e, quando isto acontece, ela também vence um limite que ela própria trazia. O profeta anuncia a esta mulher estéril que ela vai dar à luz um filho.

É uma linguagem que nós podemos ler de muitas formas. De uma forma aberta na nossa vida, porque quando somos capazes de hospitalidade quando a vida se modifica em nome do dom, em nome do acolhimento, sem dúvida que há uma esterilidade que se vence e há uma fecundidade que se experimenta, que se prova. E a esterilidade não é apenas biológica, de não poder gerar filhos. A esterilidade marca-nos a todos. Muitas vezes o ruído de fundo da nossa vida é uma esterilidade, enchemo-nos de coisas e sentimos o vazio, o peso insustentável do vazio. Sentimos que temos coisas mas elas não falam, sentimos que não somos capazes de multiplicar a vida. Não somos transmissores de vida, mas vivemos bloqueados, vivemos como que manietados na nossa capacidade do dom.

Ora, a primeira leitura é um desafio verdadeiro a ampliarmos a nossa vida. Quem se coloca numa lógica do dom não pense que a sua vida não vai sofrer modificações, não temos de estar disponíveis para modificar, fazer ampliar ou fazer diminuir ou fazer crescer. É uma lógica diferente. Mas nessa lógica do dom a nossa vida também chega a lugares novos, chega a lugares necessários, acolhe reivindicações profundas do nosso coração – que porventura neste momento nós não estamos a satisfazer, porque pensamos unicamente que o pilar da vida é o dinheiro ou é a produtividade ou é a gestão do meu património ou é aquilo que eu tenho, sem esta capacidade de arriscar e perceber a vida em profundidade, de ler a vida em profundidade.

No fundo, é isso que Jesus faz nesta página do Evangelho de Mateus como faz sempre connosco e com o evangelho da nossa própria vida. Jesus ajuda-nos a ler em profundidade e a perceber isto: a perceber que se eu não estou disposto a perder, a perder-me, em última análise a perder a vida, eu nunca vou descobrir o sabor profundo da vida. É como aquele poema do Tagore sobre os dois pássaros que estão enamorados, só que um está dentro da gaiola e o outro anda em liberdade. O que anda em liberdade vem voar à volta da gaiola e vem dizer: “Meu amor, vamos, vem comigo, vem conhecer os campos, vem comigo conhecer o ar livre.” E o outro diz: “Não posso, estou aqui preso, vem tu aqui para dentro.” E ele diz: “Não, tem coragem, tem força, nós podemos voar.” Ele diz: “Não, eu não consigo, eu estou aqui dentro, vem tu para o pé de mim e assim vamos estar juntos.” E andavam nisto, e da última vez que o pássaro livre fala ao pássaro enamorado mas que está preso na gaiola, diz: “Vem, anda, vamos voar.” Ele diz: “Não posso, as minhas asas morreram.”

À custa de nós estarmos aprisionados àquilo que nos prende as nossas asas morrem. E depois perdemos a capacidade de viver uma vida na sua amplidão, com a respiração, com a fantasia, com o idealismo, com a verdade, com a autenticidade, com a essencialidade que uma vida pode ser. De repente, damos por nós em gaiolas douradas e, de facto, as nossas asas morreram. E morreram porquê? Porque nós tivemos medo a dada altura, ou tivemos medo em muitas alturas de pegar na cruz e seguir e sentir que a vida se perde, sentir que a vida é um salto, que a vida não é sustentada por um cálculo de somar. A vida tem de ser uma trajetória de confiança. Ou apanhamos isto, sustentados no exemplo da vida de Jesus, ou então andamos atrás Dele mas não percebemos o que Ele nos diz – e quando Ele faz esta proposta: “Quem quiser seguir-Me pegue na sua cruz e siga-Me.”, Ele fica sozinho a levar a sua porque cada um de nós parte o mais depressa possível.

Jesus faz o elogio da hospitalidade. Esta última palavra do trecho que nós lemos, tudo aquilo que fazemos de bom, de amor, tudo tem um eco e nós temos de acreditar. Eu acho que às vezes nós acreditamos pouco nos gestos de amor, na confiança que vamos tecendo na dádiva. Acreditamos pouco nisso, acreditamos mais nas coisas materiais, acreditamos mais nos números que vemos, acreditamos mais numa visão quantitativa e restrita da realidade do que acreditamos na força potenciadora do amor. Esta imagem de Jesus é um desafio tremendo para nós. Nem um copo de água fresca que tenham dado a alguém ficará sem recompensa. Isto é, nem os gestos mínimos, aquilo que ninguém viu, aquilo que é verdadeiramente insignificante. Isso terá um efeito, isso mudará alguma coisa, isso servirá para alguma coisa e esta palavra de Jesus é uma palavra que nos reforça na confiança, na capacidade de dom.

Volto à imagem inicial daquela entrevista, daquele ancião sábio chamado Manoel de Oliveira: e se pensássemos uma sociedade sem dinheiro? E se pensássemos uma sociedade baseada no dom? O Cristianismo é uma sociedade baseada no dom.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIII do Tempo Comum

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org

Espiritualidade cristã em tempo de isolamento,
pelo cardeal Tolentino

«Este é um tempo “kénosis”, de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo em que, talvez, sintamos uma incerteza muito grande, um tempo de crise, um tempo em que parece que a vida vem menos. Um tempo precário. Mas eu lembraria que a mesma raiz etimológica aproxima as duas palavras: “precare”, rezar, em latim, e “precarium”, o destino daquilo que é frágil. A espiritualidade não se constrói com a força. Jesus ensinou-nos isso com o mistério da sua Páscoa. Porque tudo tem de passar pelo mistério da cruz. E, por isso, este tempo, que parece só de calamidade, temos de o interpretar de um ponto de vista teológico e espiritual como um tempo de graça.»

Uma espiritualidade em tempos de pandemia, o que é, ou melhor, o que pode ser? Porque, no fundo, estamos no improviso. É interessante que, muitas vezes, na coreografia, na dança, se usa o improviso; não gostamos muito, porque preferimos uma vida conduzida por um guião; um improviso faz-nos viver o aberto; e para começar a falar do que é a espiritualidade em tempos de isolamento provocado pela pandemia, tenho de dizer isto: o futuro chegou de supetão, o futuro chegou achando-nos impreparados. Nenhum de nós sabe como lidar com esta situação. Sentimo-nos, todos, mais vulneráveis, mais precários.

À primeira vista, dizemos: aquilo que nos aconteceu é uma distopia; é uma calamidade; é o contrário da graça. E, contudo, em termos de fé, temos de olhar para este cronos, que parece devorar a nossa força e a nossa esperança, como a possibilidade de um káiros, a possibilidade de uma graça.

Este é um tempo de kénosis, de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo em que, talvez, sintamos uma incerteza muito grande, um tempo de crise, um tempo em que parece que a vida vem menos. Um tempo precário.

Mas eu lembraria que a mesma raiz etimológica aproxima as duas palavras: precare, rezar, em latim, e precarium, o destino daquilo que é frágil. A espiritualidade não se constrói com a força. Jesus ensinou-nos isso com o mistério da sua Páscoa. Porque tudo tem de passar pelo mistério da cruz. E, por isso, este tempo, que parece só de calamidade, temos de o interpretar de um ponto de vista teológico e espiritual como um tempo de graça.

A pandemia descobriu, revelou, uma doença, que são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde já não há alugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para o transcendente, não há lugar para uma vida interior rica, digna desse nome, não há lugar para uma oração

Como é que este pode ser um tempo de graça? Na oração que o papa organizou, na praça de S. Pedro, sexta-feira [27 de março de 2020], que muito nos impactou, ele escolheu ler o texto do Evangelho da tempestade acalmada. E no meio da tempestade, os discípulos perguntam a Jesus: Senhor, não te importas que morramos? É uma pergunta. E este é o tempo das perguntas, e das perguntas fundamentais. Se eu tivesse de sublinhar um ponto muito positivo desta experiência exigente que estamos a viver, é a qualidade das perguntas que escutamos.
É como se vencêssemos a banalidade, e as perguntas que ouvimos fazer uns aos outros são muito mais intensas, muito mais carregadas de sentido.

É curioso que aqui, em Itália, no início da pandemia, abriram-se gabinetes de apoio psicológico. E muitos idosos telefonavam, dizendo isto: eu não consigo rezar. E, de facto, este começou por ser um tempo em que parece que não era possível uma vida espiritual. Depois, descobrimos o contrário: que este tempo é de uma grande intensidade espiritual. E qual é o termómetro para perceber isso? São as perguntas, a radicalidade, a força das perguntas fundamentais que estamos a fazer.

Pegando no discurso do papa, há que dizer a verdade: não é a pandemia que nos adoeceu; nós já estávamos doentes. A pandemia descobriu, revelou, uma doença, que são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde já não há alugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para o transcendente, não há lugar para uma vida interior rica, digna desse nome, não há lugar para uma oração. Tudo é cronometrado, tudo passa pelo taxímetro.

Tenho um casal amigo – e é muito belo ouvir as histórias que se passaram nas famílias, porque, de certa forma, uma das coisas que este isolamento trouxe, é a redescoberta da família. Pelas primeira vez muitos casais, muitas famílias, passaram juntas um tempo de qualidade como não passavam há muitos anos, ou como nunca tinham passado – no qual um menino de cinco anos, à mesa, disse isto: eu acho que percebo o que estamos aqui a fazer; estamos aqui a criar memórias. Por vezes as crianças são antenas que nos ajudam a perceber o que estamos a fazer.

Não podemos olhar para este momento apenas como um parêntesis, como uma suspensão, e depois vamos voltar a viver tudo o que vivíamos – isso não é ajustado à realidade. Temos de encontrar novas linguagens; este tempo é um laboratório. E temos de ouvir o futuro, que já está aqui, porque, como diz Santo Agostinho, há um presente do futuro

Este é um tempo de graça, é um tempo para a graça, é um tempo de maior gratuidade, e é um tempo para criar. Não é só um tempo para “descriar”; não é só a passividade, não é só o não fazer; é um tempo propício, oportuno. Por isso, há aqui um chamamento a modelar o tempo do ponto de vista da fé.

Um dos princípios que o papa Francisco repete muitas vezes é: o tempo é superior ao espaço. Parece uma sentença muito filosófica, e que não tem uma leitura fácil, imediata. Contudo, neste tempo de isolamento social, percebemos isso: o tempo é superior ao espaço. Aconteceu uma espécie de recuo.

A mística judaica fala numa espécie de “tzimtzum”, parece uma coisa brincada. O “tzimtzum” é uma coisa inventada a partir das leituras da Cabala, segundo a qual Deus, para poder criar, teve de dar um passo atrás, teve de se despojar de si mesmo para poder criar. Esta ideia foi retomada por autores tão importantes na segunda guerra mundial como Simone Weil, que disseram, precisamente: o tempo da catástrofe parece um tempo em que Deus recua, dá um passo atrás; contudo, é um tempo para descobrirmos o Deus da ternura, o Deus da misericórdia, o Deus próximo, o Deus comprometido com a pessoa humana, o Deus que está ao lado da vítima, ao lado do que sofre; porque o próprio Deus vive este recuo.

É uma ideia curiosa, que nos deixa a mística judaica, e que nos ajuda a pensar o que está a acontecer com o espaço; está a acontecer o nosso “tzimtzum”, damos um passo atrás para, também, ter uma visão crítica em relação ao modo como habitamos o espaço. Porque, muitas vezes, é pura ocupação de espaço, pura marcação de território, puro automatismo. É uma espécie de colonização do território da comunidade, ou do território público. É sonambulismo existencial.

O “tzimtzum” permite olhar para o tempo, não tanto para o espaço, e ouvir os múltiplos tempos que existem dentro de nós. Santo Agostinho, nas Confissões, fala de três presentes: o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, e o presente das coisas futuras. O tempo é superior ao espaço.

Uma última dimensão que queria sublinhar é que este tempo de isolamento é muito intenso de relação. E é um tempo de intensificação da relação. Porque é muito viciante, e é um jogo viciado, acharmos que só existe uma forma de presença, ou que a ausência tem sempre o mesmo sentido; que a distância e a proximidade se leem de uma forma unívoca. Não

Este é um tempo de grande escuta espiritual. Este é o momento para percebermos que a vida não se esgota no momento, no instante, na arquitetura do quotidiano, mas que a vida tem uma respiração muito maior. E nós temos de ouvir os passos do futuro, e dialogar com o futuro de outra forma.

Não tenho dúvidas de que entramos numa nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já estaremos outra época. Culturalmente noutra época. Civilizacionalmente noutra época. Mas também espiritualmente noutra época da história. É importante que em termos da espiritualidade também nos preparemos para entrar nesse tempo novo, que já é o tempo que estamos a viver. Por isso, não podemos olhar para este momento apenas como um parêntesis, como uma suspensão, e depois vamos voltar a viver tudo o que vivíamos – isso não é ajustado à realidade. Temos de encontrar novas linguagens; este tempo é um laboratório. E temos de ouvir o futuro, que já está aqui, porque, como diz Santo Agostinho, há um presente do futuro.

Uma última dimensão que queria sublinhar é que este tempo de isolamento é muito intenso de relação. E é um tempo de intensificação da relação. Porque é muito viciante, e é um jogo viciado, acharmos que só existe uma forma de presença, ou que a ausência tem sempre o mesmo sentido; que a distância e a proximidade se leem de uma forma unívoca. Não. Muitas vezes estamos próximos e estamos completamente ausentes; muitas vezes encontramo-nos e só esbarramos uns nos outros; muitas vezes estamos em comunidade e somos ilhas, não arquipélagos. E este é um tempo para redescobrir e retrabalhar as histórias de amor. E eu não tenho dúvida de que este tempo faz-nos descobrir tanto, tantas possibilidades.

Na história da cultura do século passado, vemos que grandes obras da literatura, da filosofia, da música, da pintura, da espiritualidade, aconteceram em contextos dramáticos, como o que estamos a viver. Franz Rosenzweig, o grande filósofo, escreveu a sua Estrela da redenção nas trincheiras da primeira guerra mundial; Messiaen escreveu a sua obra mais famosa, o Quarteto para o fim dos tempos, num campo de concentração. A Guernica, um dos símbolos da arte do século XX, foi escrita no impacto da guerra civil espanhola.

Este não é um tempo para a pura sobrevivência, este é um tempo para sonhos grandes, para projetos maiores do que nós, é um tempo para dar passos novos, para ensaiar novos caminhos, para sair da caixa, para reinventar o formato, para descobrir novas linguagens. É um tempo para sentir coisas que, possivelmente, até aqui não sentimos

Uma das grandes místicas do século XX é, sem dúvida, Etty Hillesum, esta jovem holandesa judia, muito próxima do cristianismo, laica e crente ao mesmo tempo, que, podendo escapar do campo de concentração, se oferece como voluntária para nele trabalhar, e nele acaba como prisioneira. E Etty Hillesum diz esta coisa espantosa: este tempo em que parece que a nossa alma soçobra, este é o tempo para olhar os lírios do campo.

Há um desafio enorme neste tempo. E vemos a quantidade de histórias de amor, pequenas histórias, os médicos, os enfermeiros, o pessoal técnico, as pessoas dos laboratórios, tantos sacerdotes, tantas comunidades; mas não só: tantos gestos de amor: as pessoas que dizem, nos seus prédios, aos mais idosos, que vão fazer as compras; aqueles que não querem deixar ninguém para trás; todos esses gestos de amor são alguma coisa que está a transformar este tempo numa catedral.

Como é que eu vejo a espiritualidade neste tempo de pandemia? É um tempo de kénosis, mas também de graça; é um tempo de grande precariedade, mas é um tempo para descobrir o precare, a força da oração; é um tempo para voltar às grandes perguntas; é um tempo para criar memórias, para ouvir o futuro, para perceber que o tempo é superior ao espaço.

Podemos pensar: este é um ano para esquecer; este é um ano de vida adiada. Há um grande poeta de língua portuguesa, António Ramos Rosa, que tem um verso maravilhoso: «Não posso adiar o coração para outro século». Este não é um tempo para a pura sobrevivência, este é um tempo para sonhos grandes, para projetos maiores do que nós, é um tempo para dar passos novos, para ensaiar novos caminhos, para sair da caixa, para reinventar o formato, para descobrir novas linguagens. É um tempo para sentir coisas que, possivelmente, até aqui não sentimos.

Eu dou um exemplo da porta ao lado. O papa gosta de falar da santidade da porta ao lado. Na praça onde está a casa onde vivo, estão algumas pessoas sem-abrigo. E, claro, eu procuro ser cuidadoso, ser humano e ser próximo. Mas a verdade é que quando nós temos uma casa, e estamos a falar com uma pessoa sem-abrigo, há uma diferença: nós não estamos completamente naquela situação. Para mim, uma das coisas extraordinárias foi, no primeiro mês após a pandemia, sair de casa e perguntar «como está?» à senhora que dorme na rua, e ela perguntar-me: «E você, como está?». E a pergunta era igual. Porque estávamos no mesmo barco, debaixo da mesma tempestade. Penso que esta aprendizagem é de uma riqueza espiritual que nos pode ajudar muito.

Card. José Tolentino Mendonça
Arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana
Intervenção no ciclo “Tecendo redes – Diálogos online de Teologia Pastoral” (2020), 22.4.2020
Fonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, Brasil
Transcrição: Rui Jorge Martins
Imagem: Bill Viola | D.R.
Publicado em 23.06.2020
http://www.snpcultura.org