Como nos lembra o livro do Deuteronómio, a Palavra de Deus não está longe de nós para que possamos dizer: “Mas como é que eu a posso alcançar? Como é que eu a posso escutar?” Não está inacessível, Deus não está inacessível, Deus está perto de nós, atravessa a nossa história, cruza-Se com os nossos caminhos. Deus é tangível, Deus é visível. E é isso que nós proclamávamos nesse hino extraordinário da Carta aos Colossenses quando nos diz: “Cristo é imagem de Deus invisível.” [...]
Lucas 10, 25-37
Ampliar a nossa sede
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
Como nos lembra o livro do Deuteronómio, a Palavra de Deus não está longe de nós para que possamos dizer: “Mas como é que eu a posso alcançar? Como é que eu a posso escutar?” Não está inacessível, Deus não está inacessível, Deus está perto de nós, atravessa a nossa história, cruza-Se com os nossos caminhos. Deus é tangível, Deus é visível. E é isso que nós proclamávamos nesse hino extraordinário da Carta aos Colossenses quando nos diz: “Cristo é imagem de Deus invisível.”
Então, para nós cristãos, Deus não é um enigma, Deus não é inescrutável, Deus não é alguém que nunca vimos, que nunca tocamos, cuja proximidade nunca influenciou, nunca entrou pela nossa vida dentro. Pelo contrário, em Cristo nós temos a imagem do Deus invisível. Sentimos a vizinhança de Deus, sentimos a fronteira de Deus completamente próxima dos nossos dias, das nossas horas, dos nossos passos, dos nossos projetos. É uma fronteira próxima porque Deus está, Deus está aqui. No aqui e no agora da nossa vida, Ele está.
A parábola que Jesus conta no diálogo com aquele doutor da Lei, que queria saber como é que havia de ganhar a vida eterna, é uma parábola que vai precisamente nesse sentido a dizer que Deus não é um culto que nós celebramos em Jerusalém, e fica aí tudo. Deus não é um serviço cultual e litúrgico que nós celebramos no Templo e depois deixamos Deus no mistério do Templo, no santo dos santos do Templo. Não, nós encontramos Deus andando em viagem como aquele Samaritano anda em viagem. Ele próprio não ia a Jerusalém, não ia ao Templo, mas Deus ia ao encontro dele.
É muito bela uma frase do profeta Isaías que S. Paulo recupera e cita na Carta aos Romanos que é Deus a dizer: “Eu fiz-me encontrar por aqueles que não me procuravam.“ Quer dizer, Deus não se deixa encontrar só por aqueles que O procuram, mesmo aqueles que não O procuram Deus faz-se encontrar, Deus dá-se a ver. E Deus dá-se a ver onde? Antes de tudo, no encontro com o nosso irmão. Antes de tudo, no encontro com a vida nua, com a vida frágil, com a vida carente, com a vida necessitada. Antes de tudo é aí que Deus Se dá a ver, Se dá a tocar, é aí que Deus Se revela.
Pode acontecer que nós tenhamos o coração fechado, isto é, que estejamos saciados de Deus. A pior coisa para um crente é estar saciado de Deus. Por exemplo, nós vimos à missa e de Deus já temos a nossa dose e não precisamos mais Dele, nem estamos disponíveis para outros encontros com Deus no dizer da vida, na surpresa, no inesperado. Porquê? Porque já fomos ao Templo, já subimos a Jerusalém, já rezámos, já oferecemos o sacrifício e então já estamos desobrigados do encontro com Deus.
Ora, um crente não é aquele que está saciado de Deus, o crente é aquele que tem sede e fome de Deus. Nós estamos aqui não para nos saciarmos mas para ampliarmos a nossa sede, para ampliarmos o nosso desejo de Deus, para fazermos crescer a vontade de O encontrar, a vontade de O ver, para intensificar a nossa busca, a nossa exploração. E por isso, não estamos desobrigados. Pelo contrário, a fé é como um radar, a fé é uma antena, a fé é uma sonda, a fé é um sismógrafo, a fé está sempre numa atenção, numa atitude de atenção. Onde é que Deus está neste momento da minha vida? Onde é que Deus está? Por onde é que Ele está a passar? De que forma surpreendente, de que forma inesperada neste momento Deus está a falar-me? Porque é assim que Deus fala.
Aquele homem andava em viagem, ele era um samaritano. Isto é, era alguém que nunca iria a Jerusalém, fazia a busca de Deus a partir de outra tradição que os Judeus consideravam uma tradição espúria, menor, sem sentido. Ele andava em viagem. E o andar em viagem não o isolava, não insonorizava a sua vida, não o colocava numa cápsula, como tantas vezes a nossa vida está colocada. Mas ele estava atento, o seu coração funcionava, as entranhas de misericórdia funcionavam e quando ele viu aquele homem caído na estrada ele encheu-se de compaixão.
A religião é misericórdia e neste Ano Santo da Misericórdia é preciso nós dizermos isso e nós nos convertermos a isso. Religião é misericórdia. Religião sem misericórdia não é religião, é uma coisa demasiado estreita, é um funil de Deus, é um funil que diminui a força de Deus em vez de intensificar a chegada de Deus ao mundo, reduz Deus, torna Deus mais pobre. Religião é misericórdia, misericórdia. Porque Deus é amor, Deus é entranhas de misericórdia, vísceras de misericórdia.
É interessante que na tradição profética fala-se do útero de Deus. Isto é, Deus tem umas entranhas que geram vida, Deus não é estéril no amor, Ele é um gerador de vida. Deus vive numa gestação de vida permanente. Ele não apenas criou, Ele cria, Ele é essa criação de vida. Neste ano da Misericórdia é muito importante que nos perguntemos por isso: o que é que fazemos nós da misericórdia? Onde é que a colocamos na nossa relação com Deus, na construção de nós mesmos, na forma como habitamos o mundo? O que fazemos da misericórdia?
Aquele homem passou pelo caído na estrada, por aquele homem ferido, e encheu-se de compaixão. E isto é o que transforma a vida: é a compaixão, é colocar-se no lugar do outro, é sentir a dor do outro, sentir a dificuldade do outro. Ele tinha tudo para se afastar mas a misericórdia torna-nos reféns do outro, torna-nos incapazes de nos afastarmos – é um vínculo de solidariedade, é uma empatia espiritual pela situação do outro. Entranhas de misericórdia. Aquele homem encheu-se de compaixão. E com a compaixão ele entra numa espécie de itinerário, é quase como se fosse uma oração. Porque ele aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. A sequência dos verbos é como se fosse uma oração. É a grande oração do amor, do cuidado pelo outro, do ligar o coração do outro, do tratar das suas feridas. Essa é que é a grande oração.
Uma vez encontrei uma pintora que estava a trabalhar as parábolas de Jesus, e uma parábola que ela tratou no seu trabalho artístico foi esta parábola. Ela depois designou a exposição “A noite do samaritano.” Porque ela disse: “Eu li muitas vezes a parábola do Bom Samaritano mas só ao fim de muito tempo é que eu descobri isto: o samaritano passou uma noite inteira junto daquele ferido, passou uma noite inteira a cuidar dele. Então, o que me interessa é tratar a noite do samaritano.” Isto é, aquela noite, aquele tempo longo, aquele gesto talvez desmesurado de amor, de compaixão pelo outro que ocupa a noite inteira. E ele, possivelmente, ficou em vigília toda aquela noite, cuidando do outro. Essa noite, a noite do samaritano é a noite de Deus na nossa vida.
Queridos irmãs e irmãos, nós somos chamados neste Ano Santo a redescobrir a misericórdia. E a misericórdia não é uma coisa teórica é, antes de tudo, a capacidade de sentir compaixão, sentir compaixão. Nós, por muitas razões, tornamo-nos duros de coração, desconfiamos do outro, achamos que o outro não merece, que não vale a pena, desistimos, descartamos. E a misericórdia é alguma coisa que aos poucos vai sendo declarada impossível na nossa vida. Porque nós vemos uma situação e levantamos logo isto, mais aquilo, mais aquele outro e a verdade é que passamos ao lado das situações em vez de nos envolvermos com elas.
É claro que pegar neste homem caído trocou as voltas à vida do samaritano, completamente, deu-lhe cabo da viagem possivelmente, ou transformou-o completamente, ou essas coisas todas. Porque dá trabalho, dá que fazer. Mas naquela sua noite, naquele seu gesto aquele samaritano tocou o mistério de Deus.
Às vezes Deus parece que está ausente, Deus está calado, Deus está silenciado na nossa vida porque simplesmente nós estamos a passar ao lado de Deus. E estamos à espera que Deus nos apareça limpinho, sublime, sobre as nuvens a cair e Deus está caído na rua, Deus tem piolhos, Deus cheira mal, Deus tem a vida desordenada, Deus merecia estar preso, Deus merecia estar excluído. Deus é assim, Deus não toma banho, Deus cheira mal, não cheira bem. Isto é, o encontro com Deus é o encontro com os últimos, é o encontro que só a misericórdia sustenta. Há um encontro com Deus que só a misericórdia sustenta e por isso nós temos de abrir o coração. É um desafio muito grande, este desafio ao cuidado da vida frágil, ao cuidado da vida pobre.
Vamos rezar ao Senhor por cada um de nós. No fundo, o grande desafio é tornarmos a nossa vida uma parábola de misericórdia, que a nossa vida seja uma parábola. Não tem de ser esta do Bom Samaritano, mas a nossa vida tem de ser uma história de misericórdia e tem que ter histórias de misericórdia. Este Ano Santo da Misericórdia ficaria incompleto se nós não protagonizarmos uma história de misericórdia que é chamada a acontecer nas nossas vidas.
Vamos por isso rezar para que o Espírito Santo nos inspire e que este tempo de férias, este tempo diferente do resto do ano seja também uma oportunidade dada à misericórdia nas nossas vidas.
Pe. José Tolentino Mendonça,
Domingo XV do Tempo Comum