Nesta festa do Pentecostes nós percebemos melhor como cada um de nós, e todos nós em conjunto, somos uma consequência do Espírito Santo. Cada dia da nossa vida é um dia de Pentecostes. [...]

Espírito Santo, o grande tradutor
João 14,15-16.23-26
José Tolentino Mendonça

Queridos irmãs e irmãos,
Nesta festa do Pentecostes nós percebemos melhor como cada um de nós, e todos nós em conjunto, somos uma consequência do Espírito Santo. Cada dia da nossa vida é um dia de Pentecostes.

O dia de Pentecostes não foi apenas aquele dia, concreto, em que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos reunidos no cenáculo. O Pentecostes passou a ser o tempo da Igreja, passou a ser o tempo do mundo, o tempo de cada crente. Porque, em cada dia, o Espírito Santo vem em nosso auxílio, o Espírito Santo desce sobre nós, o Espírito Santo está connosco, testemunha o amor de Deus no nosso coração. Diz ao nosso coração: “Podes acreditar em Deus, confia Nele, Deus é credível, podes amá-lo, podes confiar no Seu amor e na Sua Palavra.” O Espírito Santo vem até nós como defensor, não deixa que a voz da noite fale ao nosso coração, não deixa que a voz da sombra ou da violência ou do temor se sobreponham à voz, tantas vezes frágil, da própria esperança, da própria confiança.

O Espírito Santo vem até nós como laboratório da criatividade, da invenção de Deus no nosso coração. Porque o alfabeto com que Deus Se escreve é sempre novo, em cada pessoa, em cada crente, em cada tempo, em cada dia, em cada instante. O Espírito Santo é essa criatividade em ato que nos estimula a sermos diferentes, a sermos originais. E conspira para, na nossa diferença, na nossa singularidade irredutível nós nos conseguirmos entender, conseguirmos criar laços de fraternidade, conseguirmos ser um único pão partido e distribuído para a fome do mundo. Por isso, nós somos consequência do Espírito Santo, e precisamos rezar mais ao Espírito Santo na nossa vida, porque Deus é Pai. E nós sabemos como o Pai é essa arquitetura fundante daquilo que somos, o Pai está na origem da nossa própria vida. Este Pai foi-nos revelado pelo Filho e a experiência da filiação, a certeza de que somos filhos, a descoberta, como diz S. Paulo, de que: “Não somos escravos, mas somos filhos”, é uma descoberta que nos instaura como sujeitos crentes. De facto, nós não somos servos, somos filhos, não somos escravos somos herdeiros. Foi Jesus quem nos revelou isso e esta filiação vivida em cada um de nós.

E o que é a filiação? A filiação é a certeza de que a nossa vida está fundada num amor incondicional. A nossa vida é amada de uma forma ilimitada. Não é hipotético, não é se, se, se… A nossa relação com Deus não é se nos portamos bem, Deus gosta de nós. Ou, se nos comportarmos bem, vamos para o céu. Não, a nossa relação com Deus é a relação de um amor incondicional, a descoberta de que nada nem ninguém nos pode separar desse amor. E mesmo em relação aos pecados, na noite da Páscoa, nós cantamos: “Feliz pecado que te deu a conhecer tal Redentor.” Então, de facto, a experiência de filiação que Jesus nos vem revelar é a experiência de uma filiação infalível, indestrutível que nós descobrimos como código da esperança, tatuado no nosso coração e que já não se pode apagar mais.

Mas Jesus partiu. Ficou-nos a Sua palavra, a Sua presença eucarística. Como é que nós hoje descobrimos Deus vivo na história? Descobrimos através do Espírito Santo que é este Deus, é esta presença de Deus que o Pai e o Filho enviam a assistir aos crentes ao longo da história. E como é que o Espírito Santo se traduz na nossa vida? Traduz-se através da multiplicidade dos dons, desta confiança esparsa, espalhada, infundida, radicada em cada um de nós mas também através daquilo que nós descobrimos que é possível. Porque, se calhar, nós temos mais competências, mais capacidades, há mais potencialidades em nós do que nós pensamos. E, se calhar, ficamos a vida toda a achar que não somos capazes disto e daquilo, que os milagres não são para nós. E, se calhar, os milagres estão na ponta das nossas mãos, estão no interior das nossas palavras, estão nessa capacidade de revitalizar, de acordar a vida, de afirmar que a vida é maior do que a morte, de cuidar, de curar, de transformar a história. Isso é o Espírito em ação, o Espírito em atividade.

O Espírito Santo é dado a mulheres e homens que não têm uma vida isenta, não têm uma vida neutra. É muito duro e muito belo aquilo que nos é descrito por S. João, nesta cena que nós lemos para este dia de Pentecostes.

Os Apóstolos estão reunidos, com as portas fechadas, com medo dos judeus. Quer dizer, eles não estão numa atitude de confiança, leve de coração. Não, estão afundados no seu medo, na intranquilidade, no “ Ai, ai! O que é que vai ser agora?”, no “Não sabemos“, no “Não estamos a ver como é que vamos prosseguir o caminho.” Estava tudo fechado no medo. E Jesus vem, atravessa o medo deles, perfura o medo deles e diz: “ A paz esteja convosco.” E mostra-lhes as feridas, as próprias feridas e o lado. Quer dizer, nós não vamos receber o Espírito Santo para lá das nossas feridas. Se não tivermos feridas recebemos o Espírito Santo, não é isso.

É a mulheres e homens feridos, feridos pela vida, pelos lutos múltiplos, pelos sofrimentos, pela fragilidade, até pela própria imperfeição, pelo inacabamento. É a mulheres e homens feridos que Jesus vem dizer: “A paz esteja contigo.” E é a estas vidas que se calhar não vêem bem como é que podem prosseguir: “E agora? Como é que vai ser? Não vemos claro como é que possa ser o passo seguinte, o dia seguinte, a estação seguinte da nossa vida.” É a esses, que somos nós, que Jesus vem e sopra, sopra. E esse sopro, faz uma citação do primeiro momento da criação em que Deus amassa o Homem da fadiga do barro, da fragilidade da terra, e sopra nas narinas e o Homem vive. E agora Jesus também na fadiga da nossa existência, na sua interminável fragilidade.

Jesus vem e não diz: “Acabou a fragilidade, acabaram as lágrimas, acabou o medo.” Não diz nada, mas sopra sobre nós. E este sopro que cada um de nós recebe é que nos dá a capacidade de entender, de compreender de uma outra forma. Se calhar a grande mudança, a grande transformação é também um exercício de compreensão, uma abertura do nosso olhar, uma capacidade de entender. É interessante que os Atos dos Apóstolos contam o Pentecostes como uma capacidade de tradução. O Espírito Santo é o grande tradutor dos acontecimentos, cada um fala numa língua diferente mas eu sou capaz de entender a diversidade das línguas com que a vida me fala e essa capacidade hermenêutica é um dom que o Espírito Santo nos dá, é o Espírito Santo em ato, em nós.

Queridos irmãs e irmãos, recebamos o Espírito Santo. Este Espírito que é múltiplo, múltiplo. Um cristão tem de ser singular. Cada um de nós tem de viver a fé na sua criatividade, a fé também é fantasia de acreditar. A fé também é um exercício de imaginação. Nós temos de ser diferentes. Temos de receber o Espírito Santo e fazer com Ele a nossa viagem, o nosso caminho.

O Espírito Santo é o contrário do cinzentismo, é o contrário da formatação, é o contrário do tudo igual, da diluição no mesmo que tantas vezes é uma tentação. Não, o Espírito Santo é esta unicidade, é esta diversidade, é esta polifonia. E, ao mesmo tempo, é percebermos que a diferença não é um obstáculo ao encontro. Mas é nas nossas diferenças, na nossa diversidade que podemos criar um corpo, que podemos criar uma orquestra. Que é uma imagem que S. Paulo também usa, no capítulo 14 da carta aos Coríntios: podemos ser uma flauta, um címbalo, uma harpa e todos juntos nos encontrarmos para tocarmos a seu tempo, com as linguagens aproprias de cada um, tocarmos a mesma peça. E assim, enchermos o mundo de esperança, mostrando que é possível.

Para nós, o Espírito Santo é um mapa, é um programa de vida, é a nossa modalidade de existência. E o Espírito Santo, se nós estivermos atentos à linguagem bíblica vem de duas maneiras. Vem pela infusão. Isto é, o Espírito Santo derrama-Se em Línguas de Fogo sobre cada um. Isto é, o Espírito Santo transforma-Se na minha vida. A minha vida é uma vida espiritualizada. E depois, já não se consegue separar o que eu sou daquilo que o Espírito é em mim, somos uma coisa só. Então, o Espírito é o que cada um é, é o que cada um traz, é o que cada um pode, é o que cada um sonha. Isso é o Espírito Santo que está esparso em cada um de nós, que está misturado, criativamente confundido, assimilado à nossa vida. E é tão importante isso, assimilarmos o Espírito Santo, recebermos o Espírito Santo, pedirmos que Ele venha como uma chuva sobre nós. Uma chuva que nos fortalece, que nos dá o sentido da sabedoria, da ciência, da caridade, da esperança, da alegria, a capacidade de irmos ao encontro uns dos outros. Este Espírito Santo que vem até à nossa vida, é quase uma dimensão fusional. Que também tem de haver, sempre, porque Deus está em nós, Deus está em nós. E é importante que cada um de nós o descubra dentro de si, e descubra dentro de si qual é o dom que o Espírito Santo lhe deu. Qual é o dom mais forte que o Espírito Santo deu a cada um de nós? Porque cada um de nós tem esse dom derramado no seu coração e tem de trabalhar esse dom, em termos espirituais, fazer um caminho com ele. Por isso, o Espírito Santo é infusão, o Espírito Santo é fusão com a nossa vida.

Mas o Espírito Santo também é diferenciação. Porque Jesus diz: “O Espírito sopra onde quer, e nós não sabemos de onde Ele vem nem para onde Ele vai.” Então o Espírito não é só isto que está derramado em nós, o Espírito é isto que nós olhamos com espanto, com surpresa. Isso que nos faz dizer: “Ai é? Mas como é que pode ser?” O Espírito Santo é esta desinstalação, é este assombro, é este desassossego. Porque Deus surpreende-nos, Deus surpreende-nos, Deus não está apenas aqui. Nós não enceramos Deus, não domesticamos Deus. E, se calhar, aquele que nos vai dizer a palavra do Espírito Santo não pertence a este redil, não pertence à Igreja, não é batizado, não é cristão, é alguém que vem doutro mundo, doutra referência, doutra história. Mas nós percebemos que o Espírito Santo está nele e o que ele diz ilumina-nos, o que ele diz transporta o vento de Deus, o hálito de Deus, o sopro de Deus, esta capacidade de nos deixarmos surpreender pelo Espírito.

De facto, num mundo como o nosso, na sua heterogeneidade, nós temos de perceber que a surpresa de Deus acontece todos os dias. Não podemos trancar Deus em quatro paredes. O Espírito Santo é maior do que a Igreja, o Espírito Santo é maior do que a Igreja, o Espírito Santo é maior do que a nossa tradição. E, por isso, nós temos de ser mulheres e homens que escutam, que se deixam surpreender, que se deixam habitar. Muitas vezes por palavras que chegam em línguas diferentes, em códigos diferentes, em tradições diferentes, mas que nós reconhecemos que nelas, através delas chega-nos o único Espírito Santo. Por isso mesmo, ao mesmo tempo que Ele está em nós e está connosco e nos habita e é aquilo que nós somos e somos uma consequência do Espírito Santo, o Espírito Santo pede que sejamos peregrinos, atentos, de coração aberto, ecuménicos. Capazes de perceber que noutra religião ou noutro humor ou com outras palavras o Espírito Santo está nesta hora a ser declinado, a ser pronunciado, a ser dito, a ser transmitido.

Queridos irmãos, é uma bela festa esta do Espírito Santo, vamos pedir por cada um de nós, para que o Espírito encontre em nós o lugar de ressonância, o lugar de crescimento, que nos deixemos revitalizar pelo Espírito. Que muitas vezes, ao longo dos nossos dias, nós peçamos a Deus que venha o Espírito Santo. Espírito Santo, vem até nós, vem até mim, renova-me, refunda-me, traz-me o dom que eu preciso nesta hora da minha vida. E ao mesmo tempo, que o Espírito seja uma janela aberta, uma disponibilidade, uma atenção ecuménica, uma capacidade de tolerância, de entendimento, de compreensão. Porque, só isso nos faz vencer o medo e as portas trancadas.

Pe. José Tolentino Mendonça,
Domingo de Pentecostes