Quaresma. É um tempo que começamos sob o signo da esperança, nós precisamos de renascer, precisamos de reganhar uma liberdade, uma vida interior, precisamos de passar dos invernos gelados do nosso coração à primavera. Precisamos deste trabalho, de um acordar, de um despertar, porque a verdade é que mesmo não fazendo grandes disparates, ou não sendo especialmente inventivos no mal que fazemos, sem darmos conta há alguma coisa que nos corrói.

Até onde somos livres?
(homilia)
José Tolentino Mendonça

Lucas 4,1-13

Queridos irmãs e irmãos,
Nós começamos este tempo da Quaresma. É um tempo que começamos sob o signo da esperança, nós precisamos de renascer, precisamos de reganhar uma liberdade, uma vida interior, precisamos de passar dos invernos gelados do nosso coração à primavera. Precisamos deste trabalho, de um acordar, de um despertar, porque a verdade é que mesmo não fazendo grandes disparates, ou não sendo especialmente inventivos no mal que fazemos, sem darmos conta há alguma coisa que nos corrói. Há uma desvitalização interior, vamos perdendo ânimo, vamos perdendo a alma. Vamos cedendo aqui, vamos condescendendo connosco. De repente, sem fazermos grandes coisas, o nosso eu acaba por ser um tirano e vivemos em função de nós próprios, do que nos dá prazer, daquilo que nos é mais agradável, do nosso ‘eu’. E à frente de tudo e de todos colocamos o nosso ‘eu’, a julgar tudo como o único comandante da nossa nave. E, sempre sem darmos conta, acabamos por viver numa espécie de idolatria. Prestamos culto a Deus mas prestamos culto também ao dinheiro, ao nosso ter, ao nosso conforto, às nossas ideias, a isto e a aquilo, aos ídolos de cada momento. Somos cristãos, mas por dentro será que somos? Acreditamos, mas até que ponto esse acreditar é decisivo para as pequenas e grandes escolhas da nossa vida? Sentimo-nos livres, mas até que ponto experimentamos de facto a liberdade interior? Até onde somos livres? Até onde? Quais são as nossas amaras? O que é que nos prende? O que é que nos captura? O que é que nos sequestra? Que desprendimento, que gratuidade nós somos capazes de experimentar?

O tempo da Quaresma é assim um tempo para fazermos um diagnóstico. Não é da vida do vizinho: “Ai que mau!” Não é o outro, sou eu, é um diagnóstico da minha vida. Porque cada um de nós tem de tirar o pulso, tem de tirar a temperatura à sua vida espiritual e sentir que há em nós um horror ao vazio. Se a gente não enche o nosso coração de Deus vamos encher de toda a tralha possível e imaginária. E por isso, nós precisamos de um tempo, de um tempo de renascimento, de um tempo de uma religação, de um tempo de uma verdade, da procura de uma inteireza interior que nos aproxime do grande acontecimento pascal. Na linha do horizonte está a Páscoa de Jesus, que é também a nossa páscoa, a nossa passagem, o nosso êxodo, a nova criação, a nova criatura, passar do homem velho ao homem novo.

Como é que isso se faz? Percorrendo um caminho de verdade, trabalhando interiormente, sentindo o apelo à conversão, à transformação interior.

Na quarta-feira passada nós recebemos as cinzas e agora temos este caminho que é um caminho penitencial. Por exemplo, não cantamos o “Aleluia”, não rezamos o “Glória”, as vestes são o roxo, não temos flores no altar. São sinais de uma frugalidade e ao mesmo tempo de uma penitência. Quer dizer, nós não cantamos o “Aleluia” porque nem sempre merecemos cantar o “Aleluia”. Nós não rezamos “Glória” não é porque Deus não mereça ser louvado. Não, às vezes a gente tem de calar e dizer: “Não, eu não mereço, as coisas não estão bem. Posso fazer mais. Peco tanto por omissão.” E esta consciência que cada um de nós tem de ter tem de ser também uma consciência fina, não podemos viver uma consciência adormecida. Porque senão acontece aquilo que dizia Hannah Arendt: “O mal torna-se uma banalidade.” Há a banalidade do mal, perdemos o sentido do pecado, tudo é mais ou menos igual, tudo é mais ou menos relativo, tudo é justificável. E às tantas, o fogo divino já não arde dentro de nós, já não se acende o nosso coração porque fica pesado de tantas paixões e ao mesmo tempo de tanta condescendência. Por isso, este é o tempo de sacudir, este é o tempo de desinstalar.

Jesus é o nosso exemplo. No texto evangélico de hoje Jesus está no deserto e é tentado pelo Diabo. “Diabolos” quer dizer: duplo, dividido. Às vezes a nossa vida também se divide e escutamos vozes contraditórias dentro de nós: apetites, paixões, inclinações diferentes dentro de nós. Jesus passou por três tentações que resumem três mil tentações, são grandes tipologias de coisas que nos tentam. E o que é que nos tenta?

[Na foto: As tentações de Jesus, um mosaico do século XIII da Basílica de São Marcos em Veneza]

A primeira tentação. Jesus sentiu fome e o Diabo disse-lhe:

“-Olha, transforma estas pedras em pão.

E Jesus disse-lhe:

– Nem só de pão vive o homem.”

De facto, a nossa grande tentação é o materialismo, é transformarmos tudo em pão, tudo serve para alguma coisa. A bondade das coisas passa a ser definida pelo proveito que nos trazem. Por exemplo, uma rosa não é bela em si mesma, não é bela no jardim, é bela porque eu a arranco, porque eu a possuo, porque eu a tenho. Então, de repente, as coisas todas existem para saciar a minha fome que é insaciável, que é insaciável. Porque a nossa fome é a nossa voragem, a nossa rapacidade é verdadeiramente insaciável. E se a gente não faz um corte, se a gente não diz: “Não, as coisas não existem só para me dar prazer, só para me confirmarem, só para me admirarem.” Não, as coisas têm uma bondade em si, têm uma beleza em si, têm uma vida, uma vida em si. “

“Nem só de pão vive o homem.” Quer dizer, eu não preciso só das coisas para me alimentarem, eu preciso da Palavra de Deus, eu preciso do significado da vida, eu preciso daquilo que não tem porquê nem para quê. E isso dá-nos uma liberdade muito grande.

Queridos irmãos, é muito fácil vivermos no materialismo, muito fácil, muito fácil. Por exemplo, às vezes vivemos com o taxímetro ligado. Mesmo em família, mesmo para prestar um serviço a alguém, mesmo para os nossos amigos, para os outros. Estamos sempre a cobrar, sempre a cobrar. E no fundo, tudo tem a ver com o dinheiro, com o material, com as trocas, com isso. Acaba por haver muito pouca gratuidade na nossa vida, muito pouco exercício de generosidade, muito pouca capacidade de acolhimento, de dádiva, de doação. E é verdade que nós precisamos de pão, mas precisamos de muitas outras coisas, muitas outras coisas. É verdade que os nossos carros só andam com gasolina mas para andarmos na vida nós precisamos de muitas outras coisas. E, se calhar, colocamos a materialidade da vida num lugar de exclusividade, quando ela é só um aspeto da vida e muitas vezes não é sequer o aspeto mais importante, não é o aspeto mais decisivo.

“Nem só de pão vive o homem.”: é uma descoberta que cada um de nós tem de fazer, tem de fazer. E é uma descoberta cheia de consequências e sobretudo é uma prática, é uma arte de viver, é um estilo que nós vamos cultivando nas relações uns com os outros.

Depois o Diabo leva Jesus a ver num instante todos os reinos do mundo, todo o poder. E diz:

“-Olha, eu dou-te tudo isto se venderes a tua alma, se te prostrares diante de mim e me adorares.

E Jesus diz:

– Só adorarás o Senhor teu Deus.”

E esta é, de facto, uma outra tentação, porque precisamos de poder, precisamos no fundo de ter as coisas ao nosso alcance, queremos dominar, queremos possuir. E nós sabemos que o caminho para isso, a maior parte das vezes, é vender a própria alma. É alienar as nossas convicções, é baixar o nível dos nossos valores, é exigir menos, é fingir que não se vê. É tanta coisa que no fundo é isso: é adorarmos o ídolo e não o verdadeiro Deus, ter uma liberdade muito grande face aos poderes, face ao poder, ao poder que nos tenta. Ser capaz de dizer: “Não, os meus valores são estes e há valores que são inegociáveis. Eu não posso fazer menos.” Ah, mas eu vou ser prejudicado por isso, mas eu perco aquela oportunidade, perco aquele lugar. Perco!

Eu tenho de aceitar perder. Eu tenho de aceitar perder e tenho de aceitar o risco de perder. Porque se a gente não perde também acaba por hipotecar a própria liberdade, acaba por hipotecar a própria vida. Nós sabemos como no jogo da vida social é tão fácil isto acontecer, e quase de uma maneira invisível somos empurrados para vender a alma ao Diabo. Por uma razão ou por outra. De repente, já não somos nós próprios, já não estamos inteiros, já não somos senhores do nosso destino.

E por fim, o Diabo que leva Jesus a um pináculo e diz: “Atira-te daqui abaixo porque o Senhor mandará os seus anjos. ” E Jesus que responde: “Não tentarás o Senhor teu Deus.” De facto, há esta tentação do providencialismo que é o contrário da primeira tentação. A primeira tentação é uma espécie de ateísmo prático: nós vivemos como se Deus não existisse. E depois, a terceira tentação é querermos que Deus nos resolva a vida, é querermos um providencialismo mágico quando nós temos de viver a responsabilidade pela nossa vida. Eu tenho de sentir-me responsável pela minha vida e construi-la com esse profundo sentido de responsabilidade. Este é o caminho de Jesus, este é o caminho da nossa existência. Que é um caminho tentado, é um caminho provado, mas é um caminho em que eu me tenho de descobrir sabendo, como diz S. Paulo, que a Palavra de Deus não está longe do nosso coração. E basta confessar que Jesus é o Senhor de todos, todos, não só judeus mas também o grego. Isto é, para todos o Senhor Se manifesta, a todos o Senhor dá a oportunidade de ser.

Queridos irmãos, a Quaresma é assim um tempo prático, um tempo para readquirir a chama para reacender no meio da cinza o fogo. Cada um de nós tenha o seu programa de Quaresma, o seu projeto. Pensando uma, duas no máximo três coisas que pode melhorar, que pode fazer nesta linha de uma fidelidade a Jesus, de uma fidelidade ao Seu Evangelho. Como é que eu vou concretizar isto na minha vida? Sabendo que o tripé: oração, jejum e esmola, é um tripé muito útil no meu caminho.

O jejum. O jejum é o viver com frugalidade, é o saber desprender-me, é eu saber contrariar os meus apetites, as minhas vontades. “Ah, eu adoro chocolates.” Está bem, mas durante quarenta dias não comes e não morres, isso dá-te uma liberdade muito grande. Aprendes que na vida há outros gostos, há um gosto a chocolate que se tem não comendo chocolate, o gosto da renúncia por amor que é um gosto tão importante a descobrir na nossa vida. O gosto daquelas coisas a que tínhamos direito mas renunciamos por amor, renunciamos por liberdade. Isso é um gosto tão grande que nós precisamos de descobrir porque no fundo é o gosto da liberdade, o gosto do amor, o gosto da vida espiritual.

Nestas sextas-feiras nós somos também chamados à abstinência. E a abstinência traduz-se de forma muito concreta em tomarmos às sextas-feiras um alimento frugal. Temos dois dias de jejum: quarta-feira de cinzas e agora o próximo é sexta-feira santa. Mas às sextas-feiras temos um alimento frugal e não comemos carne, não comemos carne. E não comemos carne unindo-nos a uma tradição espiritual do Cristianismo mais antigo que passa por não derramar sangue, sangue animal. E não derramar sangue é muito importante. É um gesto, é um símbolo. Depois, nos outros dias podemos voltar a comer carne mas naquele dia nós interrompemos. Interrompemos precisamente para dizer que a nossa vida não vale mais do que a vida dos outros e que nós percebemos os limites, percebemos que há um sofrimento do qual nós somos uma parte da cadeia. Se podermos interromper e pensar nisso isso nos devolve uma liberdade. Por isso não comemos carne à sexta-feira e comemos um alimento frugal.

Depois temos a esmola. O tempo da quaresma é um tempo de condivisão, é um tempo de partilha. Quer dizer, nós procuramos adotar um estilo de vida mais frugal e é importante renunciar. Gosto imenso de ir ao cinema, abdico de ir uma vez. Gosto imenso de café, abdico de menos um. Ser capaz de abdicar, não é dar do que nos sobra, é retirar do nosso estilo de vida, é renunciar para poder condividir com os outros. E condividir materialmente mas também condividir do nosso tempo, do nosso serviço, das nossas competências, da nossa disponibilidade para poder partilhar mais com os outros, e isso também é uma esmola. Há muitas formas de dar a esmola, de expressar a caridade divina: as obras de misericórdia, cada uma delas é também uma esmola, é um ato de caridade.

E por fim, a oração tem de estar do princípio ao fim. Porque a conversão só é possível em nós através da oração. Não é um exercício da nossa vontade, é uma abertura à transformação que o Espírito Santo faz em nós. Por isso, precisamos de rezar, aumentar o tempo da oração, rezar mais. E rezando mais certamente vamos rezar melhor. Porque a oração também é uma prática. Às vezes a gente está muito preocupada em encontrar a forma mais extraordinária de oração, a forma mais extraordinária de oração é qualquer uma, é qualquer uma. Porque a oração é esta abertura de coração a Deus, é tão pessoal como o caminhar, como o rir e é o estar, é o desejo de estar. Muitas vezes a nossa oração não é a que desejávamos mas esse desejo de Deus já é Deus, já é oração. Por isso, cada um de nós procure reforçar o tempo de oração durante esta Quaresma e seja também um tempo de rezarmos uns pelos outros. Nós que fazemos parte da mesma comunidade temos também uma corresponsabilidade uns com os outros, rezarmos uns com os outros. Porque não é fácil, quer dizer, no dia em que a gente se dispõe “Ah, eu vou fazer isto”, depois naquele dia vão-nos aparecer cem tentações para fazermos precisamente o contrário. E temos de ser fortes, na nossa fraqueza temos de ser fortes, e nas horas da tentação de facto só a oração nos pode valer. A oração e fugir delas.

Os Padres do Deserto diziam: “Não tenhas ilusões, só há uma maneira de combater as tentações é fugindo para longe e levando Deus no seu coração.” Por isso, vamos rezar ao Senhor por este tempo da Quaresma. Nós estamos aí com um grande inverno mas a Quaresma é assim uma primavera, uma primavera interior que cada um de nós é chamado a acordar dentro do seu coração.
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