Carta do Padre Joseph Mumbere Musanga: “Todos contra o Racismo”

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Terça-feira, 8 de Fevereiro de 2022
O Padre Joseph Mumbere Musanga, missionário comboniano da República Democrática do Congo, chegou ao Brasil há quatro meses. Os superiores destinaram-no à missão de Piquiá-Açailândia, no estado do Maranhão. Imaginava um Brasil “onde o racismo teria sido ultrapassado”, conta-nos o missionário, numa carta de protesto contra o racismo, que a seguir publicamos. “Infelizmente, em meus quatro meses de vida no Brasil, fui já confrontado com a realidade do racismo criminoso”, afirma. [
Justiça nos Trilhos]

Todos contra o Racismo

Moïse Kabagambe, jovem congolês espancado por três homens até a morte,
na madrugada do dia 24 de janeiro, na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil.
Foto: Reprodução/Facebook e Brasil de Fato.

Meus queridos/as brasileiros/as,
Escrevo esta carta para expressar meus sentimentos de dor cheia de tristeza, de raiva e de medo diante do aumento dos atos racistas de violência extrema, até chegar ao recente assassinato de Moïse Kabagambe, meu compatriota da República Democrática do Congo. Mas eu também quero fazer ecoar o meu grito, para que seja feita justiça de modo que os atos criminosos de racismo e xenofobia não continuem manchando a imagem de um Brasil belo, de convivência multicultural e multirracial.

Antes de tudo, me apresento: sou o Padre Joseph Mumbere Musanga, missionário comboniano da República Democrática do Congo, África. Cheguei ao Brasil há quatro meses. Estou na missão de Piquiá-Açailândia, no estado do Maranhão. Portanto, estou bem no início da minha experiência de vida neste belo país. Vim para o Brasil, imaginando um país onde o encontro (mesmo que trágico e dramático por causa da escravidão e colonização) de europeus, africanos e povos indígenas originários da América Latina, produziu uma mistura de raças e culturas que faz o mundo inteiro vibrar e mesmo sonhar com sua alegria, cheia de música, dança e técnica futebolística, mas também com sua luta contra todas as formas de discriminação e preconceito. Cheguei aqui sonhando com um país onde o racismo teria sido ultrapassado, justamente por causa dessa mistura de raças e culturas nas famílias brasileiras. Infelizmente, em meus quatro meses de vida no Brasil, fui já confrontado com a realidade do racismo criminoso.

Gabriel Barbosa: A primeira experiência foi a de Gabriel Barbosa, na cidade de Açailândia. Um jovem que foi atacado por um casal que, por causa de seus preconceitos racistas, achava que Gabriel estava roubando seu próprio carro. Este casal o agrediu, espancou e escapou da morte graças à intervenção providencial de um vizinho. 

Moïse Kabagambe: A segunda experiência de racismo criminoso é a de Moïse Kabagambe, um jovem congolês, que veio para o Brasil na esperança de uma vida melhor do que aquela que ele deixou no Congo, onde a guerra pelo controle dos minerais estratégicos tem um pesado tributo para a população. Vejo que tem muitos mais casos de racismo, mas confesso que eu não esperava viver essas duas experiências de Gabriel e Moisés num país tão grande, multicultural e multirracial como o Brasil. Por isso, estou sofrendo duma dor de cólera e tristeza.

Cartaz da manifestação contra o racismo no Rio de Janeiro. Foto: Reprodução/Redes Sociais e e Brasil de Fato.

Queremos JUSTIÇA

Rezo e peço que seja feita justiça para as vítimas conhecidas e desconhecidas dos atos desprezíveis de racismo. Confesso também que começo a ter medo, pois percebo que o demônio do racismo não está morto, pelo contrário, ele sempre encontra novas formas de encarnar-se nas pessoas e causar sofrimento e até mesmo a morte, como aconteceu com Moïse. Como pessoa negra, do Congo, tenho medo porque posso ser eu a próxima vítima do racismo criminoso.

Mas minha carta a vocês, queridos/as brasileiros/as, não teria sentido se eu me limitasse à minha dor e medo, porque desse modo eu teria me resignado à fatalidade do racismo e teria dado rédea livre, para que o racismo e a xenofobia se espalhassem e continuassem causando tanto sofrimento e morte. Minha carta quer, de fato, ser um chamado e um grito ao sonho e à luta. 

Padre Joseph Mumbere Musanga, comboniano da República Democrática do Congo, em Piquiá de Baixo (Açailândia/Brasil). Foto: Justiça nos Trilhos

Sonho um Brasil…

Gostaria de continuar sonhando com um Brasil que seja fruto de uma mistura bem sucedida entre as raças e culturas europeias, africanas e indígenas da América Latina. Para mim, o Brasil é um belo país pela sua beleza humana, que as diferentes cores de pele conseguem produzir. No Brasil, não se encontra a monotonia de uma única cor de pele, mas a vivacidade da mistura racial e cultural. 

Continuo sonhando com este Brasil porque acredito que os/as brasileiros/as que se deixam levar ou enganar pelo demônio do racismo são uma minoria, porque a grande maioria dos/as brasileiros/as acredita e vive o sonho brasileiro duma verdadeira integração racial e cultural. 

Convido, portanto, esta maioria de brasileiros/as a não deixar a minoria racista manchar sua imagem como um povo que nasceu e cresceu multicultural e multirracial, depois de ter vivido os horrores da escravidão e da colonização. Na verdade, a vitória sobre a escravidão e a colonização não esteve na criação de um estado brasileiro independente e federal, mas nas uniões amorosas entre afrodescendentes, euro-descendentes e indígenas latino-americanos. Estas uniões de amor deram origem ao povo brasileiro de hoje, que está, portanto, entre as pessoas mais belas do mundo. 

A escravidão e o colonialismo são as duas manifestações históricas do racismo, e foram as uniões amorosas entre afrodescendentes, euro-descendentes e indígenas latino-americanos que as superaram. Mas, como estamos vendo, o demônio do racismo dificilmente morre, e é por isso que devemos continuar a luta para derrotá-lo completamente.

Convido, portanto, vocês, queridos/as brasileiros/as, para a luta permanente contra o racismo e a xenofobia. Venho de um país, a República Democrática do Congo, onde a luta não é apenas sobre valores tão grandes como a justiça, a paz e o respeito pelos outros que são diferentes de mim culturalmente ou racialmente, mas ela é acima de tudo pela sobrevivência. 

No meu país, ouro, diamantes, coltan, cobalto são mais importantes do que a vida do povo. Nas regiões onde esses minerais estratégicos são encontrados, as pessoas são massacradas todos os dias simplesmente porque tiveram a pouca sorte de nascer numa terra rica em minerais. A luta em minha região, o Kivu Norte, é pela sobrevivência. É com esta experiência de luta pela minha sobrevivência como pessoa, pela sobrevivência do meu povo massacrado diariamente em Beni, que vim ao Brasil para aprender e enriquecer minha experiência com as diferentes lutas brasileiras contra a escravidão e pelo reconhecimento e proteção dos territórios e das culturas dos povos indígenas contra as políticas neoliberais depredatórias, e pela proteção do meio ambiente e da imensa biodiversidade amazônica. 

Porém, agora vejo que a luta contra o racismo, que eu pensava estar ultrapassada no Brasil, deve se tornar a luta mais importante, porque o demônio do racismo está mais uma vez invadindo não só este grande e belo país, mas o mundo inteiro. Em uma série de televisão norte-americana, uma advogada, Mrs. Kitting, defendendo uma vítima de discriminação racial nos EUA, disse perante a Suprema Corte do seu país: “O racismo faz parte do DNA dos Estados Unidos da América. E enquanto fizermos vista grossa à dor daqueles que sofrem com sua opressão, nunca poderemos escapar de suas origens”.

Lutar contra o racismo

Esta é a razão de minha carta a vocês, queridos/as brasileiros/as. É um chamado, um grito à luta para que nunca fechemos nossos olhos e ouvidos à dor daqueles que são vítimas de racismo aqui no Brasil e nas outras partes do mundo. Pois sem a luta, como disse a senhora Kitting, nunca escaparemos do demônio do racismo. A única salvaguarda que as vítimas do racismo podem ter é o direito de se defenderem para que seja feita justiça. Ao chorarmos Moïse Kabagambe e todas as outras vítimas do racismo e da xenofobia, unamo-nos na luta pela justiça, para que juntos possamos derrotar o demônio do racismo que pode estar adormecido em todos nós. Somente a justiça para com as vítimas nos dará o direito de chorá-las, perpetuando assim sua memória.

Que a luta continue e que todas as vítimas de racismo possam viver graças à nossa luta.
P. Joseph Mumbere Musanga, mccj
[Missionários Combonianos]