Isaías desenvolve a simbologia nupcial para falar das relações entre Deus e o seu povo. João faz das bodas de Caná o primeiro sinal realizado por Jesus, o esposo por excelência. O bom vinho que oferece, a sua palavra, será bebido com fartura pelo novo povo de Deus.
João 2,1-11
De diversos modos, da Anunciação à Epifania, passando pelo anúncio feito aos pastores de Belém, Jesus nos foi apresentado. Hoje, ele mesmo é quem se manifesta. E, se manifesta a sua glória nas bodas de Cana, é para manifestar sua divindade. Ele veio fazer novas todas as coisas. A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum, do Ciclo C. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
As bodas
A união entre o homem e a mulher é altamente significativa. Revela inicialmente a incompletude de cada um e de cada uma de nós. Manifesta, além disso, que a nossa verdade se encontra no outro ou, falando de outro modo, que existir significa relacionar-se.
A relação nupcial está no cume das relações, é a aliança por excelência. Por isso a Bíblia diz: «Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou: homem e mulher ele os criou» (Gn 27). Assim, quando falamos da Trindade, queremos significar que Deus em Si mesmo é Aliança.
É necessária a união do homem e da mulher para que o humano seja imagem de Deus. E, no entanto, esta união é somente uma figura e uma etapa. O humano irá de fato superar o seu estado de imagem, para participar da natureza divina.
Estas bodas entre Deus e o homem irão encontrar sua expressão nas bodas do Cristo com seu povo. João começa o seu evangelho com as bodas de Caná e termina, quase, o seu Apocalipse com as Núpcias do Cordeiro (Ap 19,6-9). No quadro das bodas humanas é que Jesus vai realizar o sinal que antecipa as núpcias da humanidade com Deus. A água primordial (cf. Gn 1,2) torna-se o vinho do final, figura do sangue da Aliança. Assim o relato de Caná em 11 versículos recapitula em Cristo e por Cristo tudo o que acontece com a humanidade.
Maria
Seu nome sequer é citado no relato de Caná. Maria é simplesmente chamada de «mãe de Jesus» e de «mulher», termo usado correntemente nos evangelhos quando referido a um personagem feminino (por exemplo, em João 8,10). Não podemos, no entanto, deixar de ver nela a figura da mulher por excelência. Não é por acaso que, em João, somente vamos encontrá-la no início (Caná) e no final, ao pé da Cruz, quando recebe uma nova maternidade, a maternidade do novo corpo de Cristo: o povo que João representa (Jo 19,25-27).
Também na cruz não é citada nenhuma palavra de Maria. Em Caná, é ela quem sinaliza a falta do vinho: assim como em toda figura bíblica, as bodas humanas devem ser superadas pela realização daquilo que prometem; elas estão em estado de falta. Os esposos, mesmo sem saber, já chegaram ao fim das suas reservas. Jesus responde à sua mãe que sua hora, a hora do vinho, a hora do sangue, ainda não havia chegado.
A Cruz será o verdadeiro leito nupcial de Deus com a humanidade, pois é aí que, em Cristo, Deus irá chegar ao limite extremo da condição humana. Ele, então, terá esposado tudo de nós. Mas para isso foi preciso que o ser humano tivesse pronunciado o sim nupcial, tivesse manifestado o seu acordo. Podemos colocar em paralelo o sim de Maria na Anunciação, «faça-se em mim segundo a tua palavra!» (Lc 1,37), e a recomendação que ela faz aos servidores em Caná: «Fazei tudo o que ele vos disser».
“Fazei tudo o que ele vos disser”
Esta fórmula é herdada de Gênesis 41,55: o Faraó utiliza-se dela para prescrever aos Egípcios que se dirijam a José. Não foi por acaso que João a tenha retomado: em Gênesis, tratava-se da falta do pão; em Caná, da falta do vinho. Como não pensar na última Ceia, abertura da Paixão pela qual Jesus será glorificado? Aí sim, a sua hora havia chegado. E de fato, em seu «discurso após a Ceia» (Jo 13,31), Jesus diz aos seus discípulos: «Agora o Filho do homem foi glorificado e Deus foi glorificado nele».
O que vai glorificar a Jesus e a Deus é a manifestação ao mundo do seu amor absoluto; amor mais forte do que a morte. No final do Cântico dos Cânticos, poema revelador de Deus a partir do amor nupcial, está escrito que «o amor é forte como a morte» (8,6); com Cristo, ficamos sabendo que a morte não pode nada contra o amor, o que a Ressurreição vai tornar explícito. Pois o Cântico já o pressentia: «As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo» (8,7). Portanto, é superando todo o medo que podemos comprometer-nos a fazer «tudo o que ele vos disser».
Encontramos na primeira leitura uma fórmula impressionante: «Como o jovem desposa a donzela (pensemos nos esposos de Caná), assim teus filhos te desposam». Incesto? É, antes, a certeza de que somos destinados a nos fazermos um só com a fonte da nossa vida, com a fonte de toda a vida.