Sexta-feira, 3 de Setembro de 2021
Durante o Sínodo Amazónico, um grupo significativo de bispos, leigos, sacerdotes e religiosos celebraram o Pacto das Catacumbas para a Casa Comum e assinaram um compromisso de o divulgar nos diversos territórios de missão. Os Missionários Combonianos, por iniciativa dos provinciais da América Latina, aderiram também a este Pacto, adaptando-o à realidade das comunidades dos diferentes países do continente americano onde trabalham.

1. Uma escolha de fundo: o extrativismo predatório

Estamos num mundo que funciona a duas velocidades. Cada vez mais rápido na acumulação de benefícios para uns poucos, cada vez mais precário para a grande maioria.

Introjetamos essa desigualdade como se fosse natural. Acostumamo-nos a viver em sociedades da abundância e do descarte, enquanto ao nosso redor se multiplicam sociedades de sobreviventes.

A América Latina é a região do mundo com a maior desigualdade de renda, conforme dados da ONU[1]. Na cidade onde vivo, São Paulo, a expectativa de vida depende do código postal: quem mora num dos bairros nobres vive mediamente 20 anos a mais de quem está na periferia[2]!

Para que esse sistema continue se sustentando, alguns territórios e comunidades precisam ser condenados a zonas de sacrifício. Nosso continente, desde o início da colonização, foi e continua sendo considerado uma mina de recursos para o desenvolvimento de outros. É a lógica, hoje ainda muito afirmada em quase todos os países latino-americanos, do extrativismo predatório.

No Brasil, a palavra soa ainda mais amarga e agressiva, porque se opõe à experiência ancestral dos povos e comunidades autodenominados “extrativistas”: aqueles que, desde sempre, aprenderam a viver em equilíbrio e simbiose com seu território, como bem destaca a encíclica Laudato Si’:

É indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quan­do se avança com grandes projetos que afetam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um es­paço sagrado com o qual precisam interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura. (LS 146)

Há, portanto, um conflito entre dois modelos que disputam os mesmos territórios. Nos fazem acreditar que o primeiro (predatório, extensivo, tecnológico e poluidor) seria o mais eficiente, desenvolvido, gerador de riqueza. Na verdade, favorece a acumulação de bens no bolso de bem poucas pessoas, a custo de graves violações socioambientais acumuladas sobre a maioria.

O procurador da República Felício Pontes testemunha que o segundo modelo tem um potencial incrível de geração de renda e qualidade de vida para as comunidades locais: por exemplo, o conjunto de 17 tipos de atividades do ecossistema amazônico — do abastecimento de água e regulação climática ao fornecimento de alimentos, como peixes, frutas e castanhas — atinge 692 bilhões de dólares por ano[3].

Porém, para garantir o interesse das elites fundiárias e das grandes empresas, o Estado e o grande capital se aliaram. É aquilo que se define “a captura corporativa do Estado”, e que a Laudato Si’ denuncia ao dizer que a política se submeteu à economia (n. 189).

Com base nessa opção, tendo já ocupado a maioria dos territórios com grandes projetos de monocultura, agronegócio, criação extensiva de gado, mineração, geração de energia com alagamento de grandes áreas, etc., o extrativismo predatório precisa agora avançar além das últimas fronteiras, ultrapassando novos limites geográficos e legais. Disputam-se, assim, as áreas florestais ou protegidas, os parques nacionais e, especialmente, toda a bacia amazônica. Busca-se a flexibilização das leis ambientais; o Estado garante a impunidade de quem viola a lei; tolera e, frequentemente, até institucionaliza a violência contra as comunidades e as lideranças, cada vez mais criminalizadas, perseguidas e mortas.

2.Um cenário apocalíptico

Esse cenário é apocalíptico porque é revelador dos responsáveis que estão por trás dele, e também das alternativas que, com sempre menos tempo à disposição, se fazem urgentes.

Nunca uma geração, como a nossa, encontrou-se com tamanha responsabilidade: temos as condições de condenar o Planeta a um ciclo irreversível de aquecimento global, descontrolado[4].

Papa Francisco nos desafiou a uma resposta urgente, escrevendo a Laudato Si’ logo antes da importante Cúpula das Nações sobre o Clima, em Paris. Ao convocar o Sínodo da Amazônia, afirmou que esse bioma é um “banco de prova para a humanidade”. São evidentes os sinais de emergência e conhecemos as estratégias prioritárias para curar essas feridas.

Assim mesmo, estamos loucamente avançando em direção contrária!

O desmatamento no Brasil, por exemplo, tem aumentado de modo descontrolado nos últimos dois anos[5]; no mundo, as florestas preservadas são só cerca o 10% daquelas do início do Holoceno; ainda estamos destruindo 120 mil km2 de florestas primárias tropicais por ano, biomas que são reguladores do clima e abrigam 80% da biodiversidade terrestre do planeta.

Os principais responsáveis da contaminação e destruição da floresta amazônica e de outros biomas essenciais, como o cerrado, são o agronegócio para a produção de soja, a criação extensiva de gado, a mineração e a extração de petróleo. Há uma forte conexão, portanto, com nossos estilos de vida e de alimentação, particularmente com respeito à carne bovina (veja-se a campanha “Tire a Amazônia de seu prato”, que teve bastante visibilidade tanto no Brasil como no norte global).

Como sabemos, a própria pandemia de Covid-19, ainda antes de ser causa de nossos males, é um efeito deles, uma consequência do “viver mal” que estruturamos nessa sociedade de descarte, oposta às intuições do “Bem Viver” sugeridas pelas culturas dos povos originários.

Nas palavras do sociólogo Michel Maffesoli, a pandemia biologicamente é uma doença, mas antropologicamente é um sintoma de que a sociedade de consumo, como a conhecemos e a organizamos, caducou[6].

Esse cenário apocalíptico revela que não nos encontramos simplesmente numa época de mudança, mas numa verdadeira mudança de era geológica: entramos no Antropoceno, é a primeira vez que a ação humana tem influências tão fortes ao ponto de impactar permanentemente na Terra[7]. Chegamos ao ponto final: a expansão ilimitada do sistema capitalista, que funciona por acumulação e, por definição, não pode conhecer limites, deparou-se com a fronteira da escassez de recursos de um Planeta saqueado. Já não tem mais mundo para todo mundo; a única saída que sobra, se não mudarmos de sistema, é a necropolítica: o direito que alguns poderosos se autoconferem para decidir quem é útil e precisa viver, e quem, sendo desnecessário, fica mais conveniente descartar.

3. Caminhos possíveis

Há muitos debates em curso sobre quais seriam novos caminhos, modelos e cenários para voltarmos a respirar, nesse contexto global de sufocamento.

Laudato Si’ insiste sobre a educação e a espiritualidade ecológica, a governança internacional, a autoridade da política sobre a economia, a serviço da vida. Faz-se urgente a conversão da sociedade de consumo à sobriedade feliz. Outro caminho ainda são radicais transições ecológicas, especialmente nos enormes territórios urbanos: a redução dos consumos de água e energia; novos conceitos de cidades e de mobilidade urbana; a descentralização das relações sociais para fora das megalópoles; a promoção de economias locais campo-cidade; a agroecologia e as economias circulares.

Como missionários, temos uma certa experiência e tradição na denúncia e incidência internacional. Nesta linha, será importante concentrar-se, nos próximos anos em América Latina, sobre a implementação do Acordo de Escazú, legislação inovativa e potente, na defesa internacional dos direitos socioambientais.

A promoção dos Direitos da Natureza é outro caminho, evolução natural e necessária da compreensão dos direitos universais. Amadurece a relação com a natureza como sujeito, para além do antropocentrismo despótico e desordenado (LS)[8].

Nossa aliança estratégica com os povos indígenas e as comunidades tradicionais precisa também consolidar seus mecanismos de autonomia e autogoverno, formas legítimas de autoridade pública coletiva para além do Estado, que não pode ser o único regulador dos planos de vida dos povos[9].

Em tudo isso, o papel da Igreja pode ser muito significativo. Temos, recentemente, exemplos esperançadores de aliança e apoio à causa das comunidades em seus territórios, como o posicionamento oficial da Igreja de El Salvador junto à luta do povo, que conseguiu aprovar uma lei que impede a mineração metálica em grande escala em todo o território nacional!

Também, a Rede Eclesial Panamazônica tem um papel relevante nas atividades da Assembleia Mundial da Amazônia e, recentemente, no processo de incidência sobre a política ambiental do governo Biden, para que não sejam desenhados projetos internacionais sobre a Amazônia sem a participação plena e o protagonismo de seus povos.

4. A atuação comboniana

Ao longo dos últimos anos, sobretudo pela inspiração da encíclica Laudato Si’, a atuação comboniana para o Cuidado da Casa Comum se consolidou no continente Latino-americano, se bem ainda precisa se reforçar e articular muito. Destacamos a seguir, de maneira sintética, alguns âmbitos em que estamos presentes e poderíamos investir mais energias.

  • REPAM: a Rede Eclesial Panamazônica, grande protagonista ao Sínodo da Amazônia, está organizada em diversos eixos de trabalho (povos indígenas, direitos humanos, fronteiras, justiça socioambiental e bem-viver, formação, redes internacionais, comunicação). É uma presença dinâmica, flexível, interativa com as igrejas locais, capaz de tecer redes com outros movimentos populares.
  • Iglesias y Minería: é uma rede ecumênica latino-americana, a serviço das comunidades atingidas por mineração. Reconhece e alimenta as espiritualidades como raízes que sustentam as comunidades e suas resistências; atua em chave de incidência em todas as esferas das igrejas, para que mantenham sempre sua fidelidade na defesa dos pobres e da Mãe Terra; propõe uma campanha de desinvestimento das empresas mineradoras, que provoque a postura ética de igrejas e congregações, com respeito a seus investimentos financeiros.
  • Presença próxima e solidária ao lado das comunidades: há experiências bonitas de cuidado e regeneração dos espaços urbanos e de educação ambiental (p. ex. Chorrilhos, Peru); o compromisso em defesa dos rios e na resistência frente à mineração (Borbón e toda a região de Esmeraldas, Equador); a partilha com as comunidades indígenas em Pangoa (Peru), Petén (Guatemala), Guerreiro (México), ou em Manaus e Roraima (Brasil); a presença junto às comunidades costeira em Tumaco (Colômbia) e ribeirinhas no baixo Rio Madeira (Brasil). Todas essas experiências têm o potencial de proteger e afirmar as culturas como princípio e garantia de relações sadias, instrumento de cura para todos os seres da Criação.
  • Redes de comunidades atingidas: quando nosso empenho começa a articular comunidades que se reconhecem vítimas dos mesmos empreendimentos e atores, a organização popular se reforça, assim como a intensidade das reivindicações e a criatividade em buscar caminhos. É a experiência da rede Justiça nos Trilhos, na região de exploração do minério de ferro, em Carajás, e especialmente em Piquiá (Brasil).
  • Advocacy e denúncias internacionais (VIVAT International): também em América Latina, como em outras partes do mundo, os combonianos-as utilizam a estratégia de conexões que pode escalar um conflito local para que chegue às instituições internacionais de defesa dos direitos. Já houve denúncias de violações no Conselho de Direitos Humanos da ONU, bem como interação com relatores especiais das Nações Unidas, a partir de nossa atuação missionária.

5. Pacto Comboniano para a Casa Comum[10]

No Sínodo da Amazônia, um grupo significativo de bispos, leigas e leigos, padres, religiosas e religiosos celebrou o Pacto das Catacumbas para a Casa Comum e assinou um compromisso, com o propósito de multiplicá-lo nos diversos territórios missionários. Também os Missionários Combonianos, por iniciativa dos provinciais de América Latina, adaptaram esse Pacto à realidade de suas presenças e comunidades no continente, e o relançaram para adesões.

Houve celebrações e assinaturas combonianas em algumas regiões, assim como a divulgação do compromisso através das mídias e redes sociais de nossas circunscrições. O Pacto Comboniano para a Casa Comum tornou-se, assim, um instrumento de evangelização e de animação missionária, mas também uma responsabilidade para cada um de nós, consagrados à missão de cuidar e promover a vida, conforme o exemplo de Jesus.

Mais recentemente, o Dicastério Vaticano para o Desenvolvimento Humano Integral lançou a iniciativa de um Plano Laudato Si’, promovido em perspectiva dos próximos sete anos.

Acreditamos que a inspiração do Pacto Comboniano poderia ser uma das maneiras para nos comprometermos concretamente, a partir de nossas escolhas pastorais, em sintonia com esse Plano Laudato Si’. Por isso, recomendamos a todas as circunscrições para retomarem o Pacto Comboniano, relançá-lo e avançar na prática dos compromissos anunciados.

Conclusões

«Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto».

O XIX Capítulo Geral dos combonianos é iluminado por uma entre as muitas imagens de Jesus inspiradas na natureza. O Pai, agricultor, sabe que só produziremos frutos se permanecermos bem unidos a seu Filho. A encíclica Laudato Si’ nos lembra que essa união, vivida de modo intenso na Eucaristia, é “um ato de amor cósmico”. “A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação” (LS 236). 

No discernimento e nas decisões que tomaremos nesse Capítulo, não tem como separar a missão comboniana da grave urgência atual de cuidar da Criação inteira: somos ramos, somos terra (Gn 2,7), “entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que geme e sofre as dores do parto” (LS 2), mas que, se permanecermos unidos a ela, dará muito fruto!
Pe. Dário Bossi, mccj

 

[1] Relatório de desenvolvimento humano de 2019 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). http://hdr.undp.org/en/2019-report/download

[4] Temos o desafio de manter as emissões de CO2 abaixo de 450 ppm, mas em 2020 já estávamos perto de 415 ppm, e estamos aumentando em média 2,5 ppm por ano. O climatólogo Matthew E. Mann prevê que em 2036 poderemos superar mais 2oC acima da temperatura média do período pré-industrial, o que teria efeitos muito graves em todas as dimensões da vida: alimentos, água, saúde, terra, segurança nacional, energia, prosperidade econômica. https://www.scientificamerican.com/article/earth-will-cross-the-climate-danger-threshold-by-2036/

[5] Dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) apontam maior nível de desmatamento anual desde 2008 na Amazônia brasileira: 11.088 km² devastados entre agosto de 2019 e julho de 2020. https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2021/01/12/estudo-wwf-desmatamento-brasil-amazonia.htm

[6] Pensar o (im)pensável. Instituto Ciência e Fé e PUCPRESS debatem a pandemia com Michel Maffesoli. https://doi.org/10.7213/pensarimpensavel.001

[7] Veja-se, por exemplo, a poluição de rios e oceanos por microplásticos e diferentes substâncias químicas, a alteração nos níveis de nitrogênio pelo uso extensivo de fertilizantes na agricultura, o aumento da dispersão de substâncias radioativas no planeta, após muitos testes com bombas nucleares, e, principalmente, as mudanças climáticas.

[8] Em Bolívia, para consolidar o direito a se defender da Madre Terra, compreendida como um ser vivo, está sendo proposta uma lei nacional para a criação da “Defensoría de la Madre Tierra”, uma autoridade independente que permita a representação institucional da natureza e de seus direitos frente ao Estado. Da mesma forma, está se pleiteando a instituição do crime de ecocídio, estabelecendo leis e sanções contra pessoas físicas ou jurídicas que ponham em risco a existência ou a vida da Pachamama.

[9] Destacamos a importância do Consentimento prévio, livre e informado dos povos para todos os projetos que estejam sendo organizados de fora deles. Um exemplo muito interessante de Plano de Vida é aquele construído pelos povos indígenas da COICA, por ocasião do grito da Floresta, no final de fevereiro de 2021. https://asambleamundialamazonia.org/

[10] http://www.combonianos.org.br/noticias-e-artigos/noticias/256-familia-comboniana-pacto-das-catacumbas-pela-casa-comum