É necessário re-apropriar-nos da verdade mais inaudita e paradoxal do mistério cristão: a verdade de um Deus imprevisível… que se deixa pôr à margem do mundo e cravar na cruz
«Queríamos ver Jesus» (Jo 12,21) … os homens do nosso tempo…pedem aos crentes de hoje não só que lhes «falem» de Cristo, mas também que de certa forma lho façam «ver» (Novo Millennio Ineunte, 16).
Na citação encontra-se a «mãe» de todos os desafios, que nos coloca numa «situação de missão», denominador comum de todas as situações. Que resposta a tal desafio? Procuremo-la com coragem no testemunho e na «situação» vivida por Comboni.
1. Na escola do «pensamento único»
E não é por certo um «pensamento débil» porque contempla todos os pensamentos e é garante da grandeza da pessoa. «Sobre esta grande ideia se fixou o nosso pensamento e a regeneração da África com a África parece-nos ser o único programa que se deve seguir …um caminho que, ao segui-lo, permita alcançar a alta meta para a qual se orientam sempre todos os pensamentos da nossa vida e pela qual estaremos contentes de derramar o nosso sangue até à ultima gota» (do Plano, E 2753). O pensamento único revela-se «pensamento jovem» porque se regenera continuamente em contacto com a história. A «iluminação» de que fala Comboni, foi também o produto de uma longa gestação (G. Romanato, A África Negra entre o Cristianismo e o Islão. A experiência de Daniel Comboni [1831-1881], p. 295). Esta visão de Comboni é importante. O primeiro passo para ele «foi o de se libertar da visão da Missão tal como a tinha concebido no Instituto Mazza. Este facto deve ser ulteriormente aprofundado, porque ajudaria a compreender a importância de mudar paradigmas de referência para a eficácia da Missão hoje tanto em África como na Europa» (Cadernos de Limone 2007, número 1).
A primeira fase do processo da Ratio Missionis pôs em evidência generalidade e dispersão. «Na nossa tradição procurou-se quase sempre… dar acolhimento a tudo… com a convicção de que tudo pode concorrer para o bem da Missão. Na história do Instituto pouco foi feito para pôr claramente em destaque o que era específico da missão comboniana… e o que era apenas resposta histórica e contextual» (Relatório da primeira fase do processo da Ratio Missionis, 8). A consequência é um abaixamento do conceito de Missão. É necessária a coragem das escolhas, para sair do genérico.
2. Sentir «cum Ecclesia»
Uma linha emergente na Igreja dos nossos tempos solicita-nos a voltar ao outro pólo de Comboni: a experiência mística de relação pessoal com Cristo que deu forma à sua consciência missionária agrupando em unidade os seus pensamentos.
O Ad Gentes termina falando de organização e actividade, mas de imediato o centro de gravidade desloca-se do fazer para o ser. Para a Evangelii Nuntiandi a Missão é Testemunho. Ficou famosa a frase de Paulo VI: «os jovens de hoje acreditam mais nas testemunhas do que nos mestres ou nos mestres enquanto são testemunhas». Alguns anos mais tarde, em 1991, a Redemptoris Missio volta ao tema falando de «urgência» (RM, 1) da Missão. No capítulo II, identifica Reino de Deus não com um programa, uma ideia ou um projecto, mas com uma Pessoa de rosto bem definido: Jesus de Nazaré. Termina com um capítulo dedicado à espiritualidade missionária caracterizada pela abertura ao Espírito e esvaziamento de si.
Uma nota do Conselho Episcopal Permanente, «O amor de Cristo nos impele», em 1999 considera que a fonte e a forma da Missão está no encontro pessoal com Cristo. No início do milénio a Novo Millennio Ineunte traça as linhas gerais da Missão para o ano 2.000 e centra o seu ponto focal no pedido dos gregos a Filipe «Queríamos ver Jesus», interpretado pelo Papa como sede do Evangelho nos homens de hoje. A única resposta a tal expectativa permanece a contemplação do Rosto de Cristo (n. 3). E chegamos ao texto programático do pontificado de Bento XVI: «No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, dessa forma, o rumo decisivo» (Deus Caritas est, 1).
3. A contemplação de Jesus Crucificado
«Fomentarão em si esta disposição essencialíssima (o espírito de Sacrifício), tendo sempre os olhos postos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das almas» (E 2721). É necessário «re-apropriar-nos da verdade mais inaudita e paradoxal do mistério cristão: a verdade de um Deus imprevisível… que se deixa pôr à margem do mundo e cravar na cruz»… «Julguei não dever saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado”» (1Cor 2,2) (Cadernos de Limone, Julho de 2006, p. 9). Comboni não nos dá muitas informações sobre a sua vida íntima de relação pessoal com Cristo, mas há abundantes indícios para colher a dimensão mística da sua existência. Por isso, ao voltar ao carisma, deve ser posta em evidência «a Incarnação como ponto focal da Missão. À volta deste ponto focal, as intuições que nos sustentaram durante anos poderiam unificar-se numa espiritualidade unitária: o Coração trespassado do Bom Pastor, a Teologia da Cruz, o amor radical à missão» (op. cit., p. 25). «O encontro pessoal com Cristo é o momento decisivo da vocação do missionário» (RV 21.1).
Karl Rahner, num seu livro que é considerado um clássico da espiritualidade moderna, sublinha a importância deste carácter experiencial da relação com Deus: «O cristão de amanhã ou será um místico, isto é alguém que experimentou alguma coisa, ou não será nada».
No seio desta lógica de amor, Comboni vê aquilo que os outros não vêem: Cristo cria espaço dentro de si também para os Africanos. Onde há amor há uma capacidade nova de ver (ubi amor ibi visio). Mostra-me alguém que ama, diria Santo Agostinho, e compreenderá do que estou a falar. Quando se adopta este caminho, os nossos pensamentos unificam--se e recupera-se a paixão pela Missão. Esta é a novidade que o último Capítulo Geral nos deixou: «o novo significa regressar à paixão pela missão pela qual Comboni… viveu e morreu (RV 2). O novo é olhar para o futuro com optimismo… com as nossas pobrezas e riquezas… que muitas vezes exige um regresso à pureza das origens» (DC ’03, p. 9).
4. Missão com «com-paixão»
São Paulo, falando de sequela da Cruz, passa de um conceito estático a um outro mais dinâmico. Compreende que os sofrimentos constituem um misterioso completamento dos sofrimentos de Cristo (Cl 1,24). Comboni coloca-se no seio desta visão paulina. O apostolado realizado no sofrimento é um efectivo prolongamento da redenção de Cristo. Nesta perspectiva, a Missão torna-se uma participação no movimento de Deus para com os «mais pobres e abandonados». Unindo os dois simbolismos, do Coração Trespassado e do Bom Pastor, Comboni passa de uma atitude devocional, que caracterizou os anos da sua formação e a primeira parte da sua vida missionária, a uma relação teologal de experiência viva de um amor recebido, fonte da sua confiança incondicional em relação a Deus. O espírito de sacrifício nasce do fixar com amor os olhos em Jesus Cristo Crucificado. Por isso Comboni ama a Cruz: «Rogue sempre a Jesus e ao Seu Ss.mo Coração por mim, que estou crucificado, a fim de que ame verdadeiramente cada vez mais a cruz e os espinhos, que converterão a Nigrícia» (E 7156).
Este é o testamento que deixa aos seus missionários. No Instituto, a única verdadeira ciência é a de Cristo Crucificado (E 2723). O martírio, no horizonte de uma vida doada, torna-se uma perspectiva que suscita desejo e conforto: «Oh, que felicidade sofrer e padecer o martírio por Jesus» (E 5809).
A vida interroga-nos
– Que escolhas concretas perante as interrogações da Missão hoje?
– Como recuperar a dimensão do Coração na espiritualidade do Instituto?
– Como voltar à herança carismática comboniana?
– Que experiência de «felicidade e conforto» em gestos de amor e movimentos de compaixão concreta?
Audácia missionária e martírio à luz do testemunho de Comboni