Quinta-feira, 29 de Agosto de 2019
O P. Manuel João Pereira Correia, missionário comboniano, nasceu em Lamego, Portugal. No próximo mês de Outubro, faz 68 anos. Desde 2010, carrega consigo uma cruz muito particular, a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), uma doença neurodegenerativa, caracterizada pela paralisia muscular progressiva. Ele chama-lhe a sua companheira de viagem. No passado dia 15 de Agosto, celebrou 41 anos de ordenação sacerdotal, dos quais cerca de 16 passados nas missões da província comboniana do Togo, Gana e Benim. Hoje, encontra-se na comunidade de Castel D’Azzano, na Itália, onde recolheu e publicou as suas cartas pessoais, enviadas desde a missão. Também as publicamos, aqui.
Cartas desde a missão no Togo e no Gana
(1986-1989)
Lomé (Togo), Outubro 1986
Caros amigos,
Estou a escrever-vos finalmente desde a África, mais concretamente de Lomé, capital do Togo, onde cheguei há três semanas, com alguns dias de atraso sobre a data prevista. É que, precisamente nas vésperas da minha viagem Paris-Lomé, houve uma tentativa de golpe de estado no Togo (23 de Setembro). O aeroporto de Lomé foi encerrado temporariamente e em todo o país foi instaurado o recolher obrigatório (ainda em vigor). É uma primeira experiência da situação de instabilidade política que se vive em muitos países africanos!
Depois de alguns dias de espera em Paris, no dia 30 de Setembro pisava, pela primeira vez, solo africano. A viagem foi agradável, não obstante um “sobressalto” ao embarcarmos: um passageiro não compareceu no avião, depois de ter registado a sua bagagem, o que fez levantar suspeitas de bomba. Depois de duas horas de espera para detectar a bagagem suspeita, lá partimos finalmente.
Deixar a Europa e depois de poucas horas de voo encontrar-se em África é sempre uma experiência “chocante”: entra-se realmente noutro mundo! Tudo nos parece diferente. Falar de “primeiras impressões” resulta, por conseguinte, difícil. Elas são muitas e, por vezes, contrastantes. Acho mais prudente ir observando. Com humildade e paciência há que submeter-se a um lento processo de adaptação: ao clima, à comida, a outras condições de vida, a outros costumes e mentalidades. É o caminho por onde é forçoso passar para entrar no mundo daqueles que passam a ser o “nosso” povo!
Ficamos impressionados ao ver a pobreza em que vive a maioria da população, em contínua luta pela sobrevivência, mas mais impressionados ficamos ainda ao ver o optimismo das pessoas. O carácter jovial do africano é ainda mais forte que as contrariedades da vida. O sorriso não desaparece dos seus lábios. Ficamos impressionados ao ver que os cristãos são ainda uma minoria de 10% num ambiente predominantemente pagão, mas ficamos mais impressionados ainda ao ver a riqueza da sensibilidade religiosa deles; ao ver o entusiasmo das suas celebrações e o espírito apostólico que os anima!
Em Lomé eu deveria ficar apenas alguns dias, o tempo estritamente necessário para tratar da documentação para ir para o Gana, concretamente para a missão de Abor, onde trabalhou o padre José Augusto. Infelizmente, porém, a fronteira entre o Togo e o Gana encontra-se fechada, desde a tentativa de golpe de estado. È que o Togo acusa o Gana de ter apoiado os rebeldes. De maneira que não tenho outro remédio senão aguardar pacientemente! Saber esperar é uma virtude fundamental aqui em África!
Entretanto aproveitei para visitar as seis missões combonianas no Togo, todas elas no Sul (diocese de Lomé), relativamente bastante perto umas das outras. É uma zona densamente povoada, com uma média de 80.000 habitantes por missão, dos quais apenas dez por cento são cristãos. Comecei por Vogan, onde ainda se recordam do Irmão Humberto e vários me perguntaram quando é que ele regressa. Depois fui uma semana a Afanya, onde encontrei o P. António Maria, com a sua boa disposição de sempre. Acompanhando-o pelas aldeias, às escolas e capelas, pude contactar directamente com a gente e tomar consciência do trabalho realizado pelos nossos missionários, seja no campo da promoção humana como espiritual. De Afanya demos também um salto a Kouvé para visitar o padre Francisco Matos Dias. E presentemente encontro-me em Togoville, uma missão-santuário, nas margens do lago Togo, e aqui tudo me lembra o Irmão Alfredo do Rosário, que deu início a vários projectos de promoção humana destas populações.
Ver, por um lado, o trabalho que gerações de missionários realizaram antes de nós e, por outro, o muito que ainda resta por fazer, faz-me vir à mente quanto dizia Comboni: “O missionário deve considerar-se como um indivíduo despercebido no meio de operários que esperam os resultados não tanto da sua obra pessoal quanto de um conjunto de obras misteriosamente dirigidas e transformadas pela Providência!”.
Estou contente, apesar das dificuldades iniciais de adaptação, e agradeço ao Senhor pela vocação missionária que me concedeu. A vós agradeço-vos a vossa oração e amizade!
P. Manuel João
Afanya (Togo), Natal 1986
Caros amigos,
Foi no dia 30 de Setembro que pisei, pela primeira vez, solo africano, em Lomé, capital do Togo, uma semana depois duma tentativa de golpe de estado, que me obrigara a adiar por alguns dias a viagem. Em Lomé respirava-se ainda um ambiente de “alerta geral”, com “recolher obrigatório” e frequentes rusgas nas estradas. Apesar disso foi com alegria que vivi este meu primeiro encontro com África: era a realização dum “sonho” de há muitos anos!…
Os Missionários Combonianos presentes nesta zona da África trabalham em três países vizinhos: no Togo (sede central), no Gana e no Benin. Estava previsto eu ir para o Gana, mas por causa da situação política, a fronteira foi fechada, de modo que não há outro remédio senão esperar!… Aproveitei para visitar as nossas missões do Togo e para estudar os usos e costumes deste povo.
Presentemente encontro-me na nossa missão de AFANYA, uma missão com 75.000 habitantes, dos quais só 5.250 são baptizados (7%). Possivelmente irei cá ficar até Junho do próximo ano, para fazer o curso de introdução à língua local, o ewé. Em Afanya vim encontrar o P. António Oliveira, com quem já trabalhara em Coimbra. Tenho vindo a visitar com ele as vinte e tantas comunidades e capelas da missão, dispersas numa área de 500 km2.
Afanya é uma missão de muita actividade. Além do trabalho pastoral há diversos projectos de promoção humana: oficinas de aprendizagem (carpintaria, construção civil, arte); um “projecto poços” (dotar todas as aldeias da missão com um poço); um projecto em favor de leprosos (proporcionar aos leprosos da zona uma habitação condigna). Há ainda um hospital católico, dirigido pelos Irmãos de S. João de Deus, e uma casa para educação de raparigas, orientada por Irmãs, para além de várias escolas católicas, disseminadas pelas diversas aldeias da missão. Creio que esta missão será para mim uma boa introdução ao trabalho missionário!
Em conclusão, devo dizer-vos que estou contente e que agradeço a Deus por esta oportunidade de poder viver a minha vocação missionária no meio deste povo. É claro que há dificuldades: a dureza do clima tropical (muito quente húmido); a dificuldade da língua local, o ewé; o paganismo muito arreigado (esta é a zona do “vodú”, feiticismo) que muito dificulta o nosso apostolado… mas Deus vai dando também força e o entusiasmo para as enfrentar!
Resta-me desejar-vos um FELIZ NATAL! Na minha oração quotidiana os meus familiares, amigos e benfeitores têm sempre um lugar de destaque Sei que também rezais por mim e por isso vos agradeço de coração.
Um abraço do amigo
P. Manuel João
Afanya (Togo), Páscoa de 1987
Caros amigos,
Que a Paz do Ressuscitado inunde os nosso corações!
Aproveito esta ocasião da Páscoa do Senhor para entrar de novo em contacto convosco. Esta minha carta deseja ser um sinal da amizade que me une aos amigos, vencendo as barreiras da distância que nos separa!
Há seis meses que pisei, pela primeira vez, terra africana. Como o tempo passa!… Tenho ainda bem presentes as emoções desse primeiro momento: a alegria da chegada, o misto de curiosidade e ansiedade ao entrar num mundo diverso… mas sobretudo a confiança no Senhor que me enviara!…
Cá continuo provisoriamente na missão de Afanya (Togo) com o meu colega P. António Oliveira. Penso que só em Julho poderei partir para a missão do Gana, a que estou destinado, e que amo desde já, embora ainda a não tenha visitado (a fronteira com o Gana continua fechada!).
A minha preocupação principal de momento é o estudo da língua local. De duas em duas semanas desloco-me a uma missão vizinha, Togoville, a uns 50 Km para uma semana de estudo intenso da língua com um professor local. Somos apenas três: um irmão missionário comboniano italiano (Ir. Alfio), um outro canadiano dos Irmãos do Sagrado Coração (Ir. André) e eu. Vamos encorajando-nos mutuamente! A língua, muito difícil, é uma verdadeira ‘cruz’!…
As minhas impressões depois de seis meses? Estou contente e animado e continuo ‘resistindo’ bem à dureza do clima. Que dizer ‘desta’ África? Não pensem em “animais ferozes” ou coisas do género!… Os únicos animais que aqui encontramos são as cabras e a s galinhas, que vagueiam livres por todo o lado, obrigando-nos a fazer autênticas acrobacias quando atravessamos as aldeias. E os “esquadrões” de insectos que nos assaltam periodicamente na época das chuvas!… Ah, esquecia-me da enorme cobra pitão que há tempos encontrei atravessada no caminho, ao regressar da aldeia, à noite. Não pude evitar de parar para admirar de perto este pacífico animal de que me tinham falado com tanto respeito porque é considerado por cá “animal sagrado”!
O Togo, embora país pequeno e sem grandes recursos, conhece uma certa prosperidade e progresso, que nos impressiona logo à chegada. O índice de alfabetização é dos mais elevados da África. Encontramos escolas em todas as aldeias.
A Igreja encontra-se já bastante bem implantada, embora os católicos sejam a penas 20% da população. Há bastantes sinais de vitalidade desta Igreja jovem, que se prepara para celebrar o seu I centenário em 1992. O Espírito do Senhor está trabalhando no coração desta gentes. Alguns exemplos? Agboka Yaovi, leproso e pagão (melhor dito catecúmeno) que está a preparar um grupo de catecúmenos na sua aldeia e outro na aldeia vizinha, ao mesmo tempo que se prepara ele mesmo para o baptismo; ou os pagãos de Hedome que, mobilizados pelo único cristão da aldeia, decidem construir uma capela!…
É claro que nem tudo são rosas! Não faltam também os contrastes: oportunismo, lassidão de costumes entre os cristãos, abandono da prática religiosa… Mas o obstáculo principal à evangelização talvez seja o feiticismo, muito arreigado. Ainda agora me custa a crer no que me contou um catequista duma aldeia vizinha: um feiticeiro fez enterrar vivo um jovem que sofria de epilepsia, prometendo ressuscitá-lo curado! É claro que quando foram desenterrá-lo, dias depois, se morto estava, bem morto ficou, não obstante todas as “cerimónias” do charlatão. Deitou as culpas à família: que não cumpria exactamente as instruções dadas, que chorara durante o enterramento, etc. Novos sacrifícios de cabras e galinhas, novas cerimónias e a “ressurreição” foi adiada para mais tarde. Conclusão: o feiticeiro foi parar à prisão e o morto viu a sua ressurreição adiada “sine die” para o Juízo Final!…
O medo tolhe o espírito deste povo: o medo da vingança do “vodu” (feitiço), se não lhe satisfazem os caprichos; o medo incutido pelos feiticeiros, que não hesitam a recorrer ao envenenamento, por vezes, para tornar mais convincentes as suas ameaças….
Já podeis imaginar como é urgente anunciar o Evangelho para libertar este povo da escravidão do medo e da superstição. É o que tentamos fazer nós missionários, e para isso contamos com o vosso apoio e oração!
Que o Senhor Ressuscitado, que enviou os Seus Apóstolos pelo mundo a anunciar a Boa Nova, vos conceda de participar da Sua Paz e do seu anseio apostólico de salvar todos os homens.
UMA SANTA E FELIZ PÁSCOA!
Um abraço do amigo
P. Manuel João Pereira Correia
Liati (Gana), Advento 1987
Caros amigos,
Aproveito, mais uma vez, da proximidade da Festa do Natal para vos escrever a comunciar-vos que, desde Julho, me encontro finalmente na missão de LIATI, no Gana, para onde os meus superiores me tinham destinado.
Aberta que foi a fronteira do Togo com o Gana, o meu colega P. Eugénio Petrogalli veio buscar-me. Liati fica a 150 Km da costa e muito perto da fronteira com o Togo. Na estrada que, partindo de Lomé, percorremos em direcção ao norte, costeando a fronteira com o Gana, deparámos inúmeras barreiras da polícia e de militares. Devido à tentativa de golpe de estado do ano passado, que partiu precisamente do Gana, esta estrada fronteiriça é particularmente vigiada. Ao verem o nosso carro com matrícula do Gana mandavam-nos parar mas ao verem que éramos sacerdotes saudavam-nos cordialmente e faziam-nos sinal para prosseguir.
Chegámos a Liati ao entardecer e, apesar da chuva impertinente (estávamos na estação das chuvas), os responsáveis da comunidade cristã vieram dar-me as boas-vindas à maneira tradicional. Bebemos juntos o vinho de palma, depois de eles terem invocado Mawu (Deus) e os antepassados, pedindo que abençoassem a minha estadia no meio deles. A mesma oração fiz eu ao entrar pela primeira vez na velha igreja e ao visitar a “gruta” de Nossa senhora, escavada no tronco dum enorme baobab.
As primeiras semanas foram para conhecer a missão. O ambiente natural, de montes e florestas (que a mão do homem, porém, vai pouco a pouco destruindo!) é encantador. A paróquia, fundada em 1928, é uma das maiores e mais antigas da diocese. Calculamos que haja umas 50.000 pessoas, dispersas numa extensão de 500 Km2. A maior parte da gente é já baptizada mas muitos são protestantes. No passado parece que houve bastantes problemas entre católicos e protestantes mas hoje existe um bom relacionamento, como eu pude constatar algumas vezes. Há umas semanas atrás, quando eu atravessava uma povoação, o carro enterrou-se-me na lama quase em frente da capela onde a comunidade protestante estava reunida. Qual não foi a minha surpresa ao ver o pastor protestante interromper o serviço litúrgico dominical para convidar a gente a vir ajudar-me a empurrar o carro!… O esmo já se não pode dizer das inúmeras seitas que surgem por todo o lado semeando desorientação!
As nossas comunidades/capelas são 35. Em geral podemos alcança-las de carro (embora na estação das chuvas, por vezes, isso se torne uma autêntica aventura, devido aos atoleiros e riachos). Algumas comunidades ficam situadas nos montes e temos que caminhar algumas horas para lá chegarmos É um bom exercício físico!… Por todo o lado as pessoas acolhem-nos muito bem e estimam-nos muito.
Além do trabalho pastoral temos também que cuidar do dispensário da missão, onde diariamente um grupo de enfermeiras assiste os doentes vindos de toda a zona; da escola profissional, frequentada por 150 jovens; das escolas católicas e outros projectos de promoção humana. De maneira que não temos mãos a medir!…
Estou contente e agradeço ao Senhor a missão que me confiou. Isto não quer dizer que tudo sejam consolações e alegrias. As cruzes também não faltam. Nem sempre se depara com acolhimento e gratidão. Há também quem procura estorvar a nossa acção, como aquele que… nos matou nove porcos (com vossa licença!), envenenando uns, ferindo outros! A cruz faz parte da vida missionária. Já dizia o nosso Fundador Daniel Comboni: “As obras de Deus nascem e crescem à sombra da cruz”!…
Depois de quase um ano de “resistência”, a malária veio bater-me à porta, e o pior é que não quer deixar-me!… Tive que ir parar ao hospital de Afanya (na missão onde eu estivera precedentemente, no Togo). Agora estou melhor, o apetite voltou e estou a tentar recuperar alguns dos quilos que perdi. Como vedes, o nosso “inimigo número um” continua a ser o mosquito, responsável da transmissão da malária. Isto não quer dizer que já me tenha familiarizado com outra “bicharada”, como as cobras! Há tempos uma veio visitar o nosso galinheiro matando-nos dois patos mas teve a gentileza de os deixar para nós os comermos. Afinal de contas, o animal mais simpático acaba por ser… a galinha a cozinhar na panela!
Não quero cansar-vos mais. Termino desejando-vos um SANTO E FELIZ NATAL e pedindo-vos que rezeis por nós missionários, a fim de que o Senhor nos dê a graça de O anunciarmos com a nosso palavra mas sobretudo com o testemunho da nossa vida. E lembrai-vos que ainda não será Natal para muita gente!…
Um abraço do amigo
P. Manuel João Pereira Correia
Liati (Gana), Natal 1987
QUE NOS TROUXESTE?
Caros amigos,
Estou a escrever-vos desde o Gana. Concretamente de LIATI, uma antiga missão situada numa bonita zona de colinas e florestas no sudeste do Gana, confiante com o Togo. Aqui Deus me colocou para viver a minha fé com um novo povo que passei a considerar também meu.
Venho partilhar convosco estas primeiras experiências e impressões da “minha” missão. Faço-o por um dever de amizade e porque sei que comungais do mesmo ideal missionário que me anima. Não é sem um certo esforço que se toma a caneta na mão, seja porque o trabalho pastoral é demasiado absorvente, seja porque a realidade que vivemos, e que ao princípio nos surpreende, se torna pouco a pouco “vida ordinária”, perde a sua novidade e deixa de constituir “notícia” aos nossos olhos.
Cheguei a Liati em Julho, depois de alguns meses de estadia no Togo, que aproveitei para o estudo da língua local, na expectativa da abertura da fronteira do Gana.
Recordo ainda muito bem o simpático acolhimento que me reservaram à minha chegada a Liati, em sintonia com a proverbial hospitalidade africana. Woe zo! Woe zo! Bem-vindo! Que significa literalmente: És tu que caminhaste!, ou seja, és tu que te deste ao trabalho de te pores a caminho para nos vires visitar! E era bem verdade, no meu caso, como dos meus colegas aliás. Não tanto pela viagem de alguns milhares de Km, de Portugal a Liati, mas sobretudo enquanto era a meta da “viagem” da minha vida, da minha vocação, um longo caminho, com tantas dificuldades e obstáculos a superar!
A celebrar a minha chegada, juntámo-nos para beber o tradicional vinho de palma, uma bebida obtida por fermentação da seiva da palmeira. Dei-me conta imediatamente que beber o “deha” (assim se chama esta bebida) não é uma simples ocasião de convívio. É um rito com as suas cerimónias e regras. Um dos anciãos, com grande solenidade, versando por três vezes no chão um pouco de vinho de palma, fez a libação invocando Deus e os antepassados, pedindo para mim uma feliz estadia no meio deles.
Depois, sem pressas, um a um bebemos o vinho de palma, servido num recipiente próprio, constituído por uma cabaça redonda cortada ao meio. Nos discursos que se seguiram, um ancião da comunidade cristã recordou-me que a minha primeira atitude deveria ser a de observar e aprender: “Lembra-te que já cá estávamos nós antes de tu cá chegares!”. Disse-lhes que era com uma atitude de criança que queria começar a minha vida no meio deles e pedia-lhes que me fizessem de “pais”. Deles teria que aprender muita coisa: a língua, os costumes, as tradições… Eles sorriram satisfeitos. De aí a pouco o catequista veio discretamente dizer-me que cruzar os pés como eu estava fazendo era sinal de indelicadeza!… Tinham realmente tomado a sério o que eu acabava de lhes dizer!…
Na visita às 35 comunidades da paróquia encontrei sempre o mesmo caloroso e simpático acolhimento. Eu procurava observar tudo: a gente, como vestem, como se relacionam, como vivem… Eu observava a simplicidade e pobreza das capelas, construídas em barro e palha, à maneira tradicional, ou em tijolo feito no local, sem portas e sem janelas, de muros nus e com simples tábuas assentes em tijolos a servirem de bancos; e como sinais religiosos, uma mesa a servir de altar e um pequeno crucifixo pregado na parede. Tudo muito simples, reduzido ao mínimo indispensável, como os meios de subsistência de que eles dispõem. Não há lugar para o supérfluo quando há que lutar para obter o essencial. O meu colega P. Eugénio, explicava-me que se trata duma opção de metodologia missionária, de caminhar com eles e ao passo deles, convidando-os a construir a capela com os próprios meios e segundo as possibilidades de que dispõem, em vez de lhes construirmos nós mesmos uma bonita capela com a ajuda dos nosso amigos de Europa.
E a vivência religiosa? O cristianismo nesta região tem já uma certa tradição, que em breve se tornará secular. Chamar “trõsubola” (pagão) a uma pessoa é quase uma ofensa. A maioria é já baptizada, na Igreja Católica, numa confissão protestante, ou… numa das numerosas seitas que surgem por todo o lado! A graça vai trabalhando no coração desta gente mas não podemos pretender milagres. Momentos de entusiasmo e exuberância religiosa por ocasião de festa, se alternam com momentos de apatia e indiferença na vida quotidiana. De certo modo a fé ainda não penetrou em muitos sectores da existência. A inculturação da fé cristã na vida e mentalidade da gente é um processo muito lento, que está ainda nos seus inícios.
Apesar dos limites e da pobreza de meios, estas comunidades estão dando sinais de maturidade cristã. Sob a orientação dos catequistas e do comité da capela, cada comunidade se reúne regularmente para o serviço litúrgico dominical. Quantas das nossas comunidades em Portugal estariam preparadas para caminhar sem a assistência continua do sacerdote? Somos apenas dois sacerdotes para 35 comunidades. Os verdadeiros protagonistas da missão são os catequistas. Munidos da Bíblia (que manejam com certa desenvoltura!) e do “Dzifomo” (“Caminho do céu”, o manual tradicional de orações e cânticos, compilado pelos primeiros missionários alemães), eles são as autênticas colunas da comunidade. Por isso, à preparação dos catequistas dedicamos a maior parte do nosso tempo e das nossas energias. Temos um encontro semanal com eles para a preparação da liturgia dominical e um curso mensal de formação.
Uma última coisa queria dizer-vos. Nestes “primeiros passos” na vida de missão acabo de descobrir que tenho “tornar-me criança”, sim mas criança… astuta, perspicaz e, por vezes, também… manhosa!, para não me deixar instrumentalizar e para permanecer fiel à minha vocação de anunciador do Evangelho. Eu explico-me. Há tempos, um dos responsáveis da comunidade cristã (depois de ter bebido um pouco!) veio dizer-me: “Estamos contentes que tu tenhas vindo viver no meio de nós mas… que nos trouxeste?”. Eu caí das nuvens! Era a mentalidade materialista, interesseira que se manifestava (in vino veritas!) e que pretenderia fazer de nós missionários simples “agentes do progresso”. Respondi-lhe então: “Trouxe-te o que tinha de mais precioso: a minha vida!”. E Deus se encarregaria de que estas palavras não fossem retóricas. Estou-o experimentando nestes últimos meses através da doença que, embora roubando-me as forças físicas necessárias para o apostolado, me recorda qual é o preço da missão: a doação da própria vida!
Tudo isto veio ajudar-me a viver dum modo diverso este meu segundo Natal na missão. Natal como mistério dum Deus que não encontrou modo melhor para mostrar o seu amor aos homens que “trazer-se a si mesmo!” Com a sua pobreza desiludiu alguns (os que esperavam um messias temporal) mas enriqueceu a outros: “Àqueles que O acolheram Ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus” (S. João 1,12).
P. Manuel João P. Correia
Liati (Gana), 6 de Dezembro de 1988
Estimados amigos,
O NATAL está às portas! É o calendário que mo recorda, pois com este calor que nos faz transpirar continuamente e sem a mudança de estações a que estávamos habituados em Europa, quase nem nos damos conta do tempo passar! Mas a verdade é que o tempo voa… e eu já vou chegar atrasado com esta minha saudação natalícia!
Cá continuo na minha missão de LIATI (Gana) mas, a partir de Junho passado, com dois novos colegas: P. Lino e P. Luís, ambos combonianos italianos. Deixa-me que vo-los apresente. O P. Lino é o veterano e superior da comunidade, com 32 anos de África, primeiro na Uganda, depois no Togo e agora no Gana. O P. Luis veio doutra missão do sul. Com 11 anos de África, diz que Deus lhe prometeu 50, de maneira que espera continuar por cá ainda outros 39 anos!… O P. Luis é mais vulgarmente conhecido como “adelá”, o caçador!… Entendamo-nos bem: “caçador de homens”, antes de mais; mas nos momentos vagos tenta também caçar algum animal que tenha o azar de lhe aparecer pelo caminho! (Aliás, não faziam os Apóstolos algo de semelhante? Entre caçar e pescar não é grande a diferença!…). Esta é a minha comunidade. Somos os três bastante diversos em idade e temperamento mas procuramos imitar, na medida do possível, a unidade e o amor da… Santíssima Trindade!
O nosso trabalho principal é a assistência religiosa às comunidades cristãs, o que exige de nós muita paciência, devo confessar. A maioria da população da nossa paróquia é já baptizada (protestantes ou católicos) mas infelizmente os costumes e tradições são ainda profundamente pagãos. Para mais, a comunidade cristã é ameaçada por uma proliferação enorme de seitas que semeiam divisão e desorientação entre os cristãos e, a longo andar, indiferença e descrédito em relação a Cristo e à Sua Igreja. Só para dar uma ideia: em Xoxoe, uma pequena cidade que fica aqui perto de nós, existem 60 seitas, cada uma das quais pretende ser a verdadeira igreja de Jesus Cristo!
A nossa vida quotidiana decorre normalmente, sem muito de particular a assinalar. Isto não quer dizer que, de vez em quando, não aconteça alguma!… Como quando, há tempos, fiquei com a Land-Rover imersa no meio dum riacho, para regozijo duns amigos italianos de visita à nossa missão, que, depois do susto inicial, se divertiram a filmar a “aventura”. Eu é que não me diverti lá muito!… Ou quando acontece, ao atravessar a floresta, de pisar inadvertidamente as formigas carnívoras!… Aprendi por experiência própria a temê-las mais do que as serpentes!
A vida missionária reserva-nos um pouco de tudo mas é bonita, se vivida com fé e confiança no Senhor, que nos garantiu a sua assistência: “Eu estarei sempre convosco!” Há umas semanas atrás, em viagem em direcção a uma comunidade situada nos montes, encontrei o caminho esbarrado com uma enorme árvore que caíra durante a noite. Lá me lamentei com o meu anjo da guarda, resignado a dar meia-volta e tentar um longo giro por outro lado. Estava eu a procurar um sítio para virar o carro quando apareceu um homem com um machado que veio livrar-me de apuros. Cortados que foram alguns ramos da árvore, eu lá consegui passar por baixo dela e continuar a viagem, agradecendo a Deus este pequeno sinal da sua assistência, e o homem lá se foi ao seu campo, contente por ter sido útil ao padre!
Em Janeiro de 1989, nós combonianos celebramos o 25º aniversário da nossa presença nesta parte de África. Será uma ocasião de agradecimento a Deus por quanto tem feito através da nossa pobreza. Um obrigado também a vós, amigos, pela vossa oração e colaboração nesta obra missionária da Igreja!
Termino esta minha conversa convosco, desejando-vos um SANTO E FELIZ NATAL!
Um abraço do amigo
P. Manuel João P. Correia
Cartas desde a missão no Togo
(1989-1993)
Adidogome (Lomé, Togo), Natal de 1989
Caros amigos,
Eis-nos de novo às portas do Natal! Os dias passam velozes, as semanas e os meses voam!… E sempre a mesma sensação de ser continuamente ultrapassado pelo tempo! Aproveito mais uma vez da ocasião do Natal para vos escrever e pôr em dia a correspondência.
Nesta altura as nossas cidades da Europa encontram-se todas enfeitadas, convidando a gente para as compras do Natal. Também aqui começam a aparecer tímidos sinais nas ruas principais da capital, mas o ambiente que nos rodeia é bastante diferente, naturalmente. E quando digo diferente não penso só ao calor insuportável destes dias de harmatan que chega até nós do deserto do Sahara e que nos faz sonhar com o frio ou a neve das nossas terras. Penso sobretudo aos sinais dum outro Natal completamente diverso, o da miséria de tanta gente que nos rodeia e que nos faz lembrar a humildade e pobreza do nascimento de Jesus no presépio de Belém.
Para mim será o quarto Natal por terras de África, e este ano será a ADIDOGOME, bairro periférico da cidade de Lomé, capital do Togo. Na verdade é desde Junho que me encontro numa nova comunidade. Deixei a minha missão de Liati (Gana) com o coração a chorar. Quando se começa a conhecer a gente e a travar amizades partir é doloroso, mas isto faz parte da vida do missionário. Fui destinado ao nosso seminário-postulantado de Adidogome como formador. Aqui se encontram 14 jovens de vinte e tal anos, provenientes do Togo, Gana, Benim e Costa do Marfim, que se preparam para se tornarem sacerdotes combonianos.
Somos dois padres. O meu colega é o P. Jerónimo Miante, italiano. Além da formação dos seminaristas foi-nos confiada a responsabilidade da paróquia de Adidogome, consagrada a “Maria, Mãe do Redentor”. A população deve rondar os 50.000 habitantes, mas a grande maioria é ainda pagã. A igreja foi inaugurada em Abril e agora, pouco a pouco, andamos a construir a sacristia e a dotar a igreja de tudo o necessário. Depois haverá que pensar aos salões paroquiais… Entretanto as aldeias secundárias reclamam também um pouco de atenção: quem pede a construção ou reparação da capela, quem um sino, quem uma sala para os encontros… Não há mãos a medir! Vai-se fazendo o que se pode, com a ajuda dos amigos e benfeitores e, naturalmente, com a colaboração da população local, que procuramos sensibilizar em primeiro lugar, de maneira a que sintam que é obra deles e fruto do suor e trabalho deles.
Pouco a pouco a Igreja vai nascendo e crescendo no meio deste povo. A influência da religião tradicional (vodu) é ainda muito forte. Há semanas, numa aldeia aqui perto, foi encontrado o cadáver dum rapaz que, de regresso da escola, foi apanhado por desconhecidos que lhe cortaram a cabeça e outros órgãos do corpo (destinados a cerimónias pagãs!), para depois desaparecerem. De vez em quando sucedem ainda coisas destas, mesmo às portas da capital. Ninguém vê, ninguém fala. O medo da vingança é mais forte. O medo mantém esta gente escrava. É o medo ainda que faz esta pobre gente gastar por vezes os poucos tostões que possuem para comprar um “gri-gri”, um amuleto para se protegerem (!) contra infortúnios e maus-olhados!
No campo social, encontramo-nos empenhados particularmente no ensino: temos uma escola católica, aqui no centro da missão, com mais de mil alunos (três grupos escolares, com seis classes cada um). Andamos ainda a completar o edifício (mais um quebra-cabeças!).
Entre a formação dos seminaristas e o trabalho da paróquia já podeis imaginar que não nos resta muito tempo livre. Graças a Deus (e às vossas orações!), ultimamente tenho andado bem de saúde. Agradeço-Lhe também a vossa amizade e apoio que nos dão ânimo e coragem nos momentos mais difíceis (também os há!).
Um sincero “muito obrigado” a quanto colaboraram ma compra da estátua de Nossa Senhora de Fátima que me enviaram para Liati, e que se encontra já num “santuário mariano” situado sobre um monte, para velar sobre toda a missão (e a recordar a passagem dum missionário português por aquelas terras!). Eventuais ofertas, seja para o sustentamento dos nossos seminaristas, seja para as obras em curso na missão, é melhor que sejam enviadas à nossa Procura das Missões em Lisboa, com a indicação que me sejam enviadas para o Togo.
Resta-me desejar-vos um SANTO E FELIZ NATAL. Que o Senhor encontre o nosso coração aberto para O acolher neste Natal na pessoa do nosso irmão mais necessitado.
Um grande abraço do amigo
P. Manuel João Pereira Correia
Dzogbegan (Togo) Páscoa 1990
Estimados amigos,
O aproximar-se da Páscoa do Senhor oferece-me uma oportunidade para vos escrever e enviar-vos uma curta mensagem de BOAS-FESTAS.
Para nós cristãos a Páscoa é a festa mais importante do ano litúrgico, porque nela celebramos a mistério central da nossa Fé: a ressurreição de Nosso senhor Jesus Cristo! É esta a Boa-Nova que nós missionários anunciamos pelo mundo fora. A ela consagramos todas as nossas capacidades e energias, toda a nossa existência. A vocação missionária da Igreja nasceu no dia de Páscoa.
Escrevo-vos desde Dzogbegan, um mosteiro beneditino situado no norte da nossa diocese de Lomé, onde me encontro com os nossos seminaristas para passar uns dias de retiro em preparação à Páscoa do Senhor. Aqui, na paz e sossego deste lugar de oração, lembrei-me de vós junto do Senhor e pensei enviar-vos esta breve saudação amiga. A tarefa da formação dos seminaristas e a sobrecarga de trabalho pastoral próprio do tempo de Quaresma, especialmente a preparação dos catecúmenos para o baptismo, têm-me impedido de escrever pessoalmente a cada um de vós, como seria meu desejo.
Em breve penso ir de férias (mês de Julho) e talvez tenhamos a oportunidade de nos encontrarmos para partilhar convosco um pouco desta minha experiência missionária. A fins de Setembro estarei de volta, se Deus quiser, para continuar o meu serviço missionário aqui, em Adidogome (Lomé-Togo).
Votos duma santa e feliz Páscoa! Que a paz e alegria do Ressuscitado encha os nossos corações!
Um abraço do amigo
P. Manuel João P. Correia
Adidogome (Lomé, Togo), Natal 1990
Queridos amigos,
“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que Deus ama”: é o hino que os anjos cantam, celebrando a alegria do nascimento do nosso Salvador. A Igreja junta a sua voz à deles para aclamar o Senhor e invocar a paz sobre os homens. E nós missionários tentamos levar a mensagem natalícia a todos os povos para que em todas as línguas se possa cantar. GLORIA A DEUS NAS ALTURAS E PAZ NA TERRA AOS HOMENS QUE DEUS AMA!
Aproveito, mais uma vez, da época de Natal para saudar os amigos e dar algumas notícias.
Depois do período de férias, aqui me encontro de novo no nosso Postulantado de Adidogome (Lomé – Togo) para continuar o meu trabalho de formador dos nossos seminaristas combonianos e também de pároco. Este ano os nossos postulantes são catorze, vindos dos três países desta zona ocidental da África onde nós combonianos estamos presentes: Togo. Gana, Benim. Comigo encontra-se o P. Maximino de Almeida, colega português. Juntos procuramos levar para a frente o trabalho do seminário e da paróquia.
O número de cristãos aumenta continuamente (temos presentemente mais de 700 catecúmenos que se preparam para o baptismo), o que exige de nós cada mais tempo e disponibilidade. A título de exemplo, no ano passado celebrávamos uma só missa no centro. Este ano tivemos que começar a celebrar uma segunda para os jovens, e agora, devido ao grande número de crianças, vamos ter que celebrar uma terceira para as crianças. Além disso, vamos abrir uma nova comunidade numa aldeia, o que aumentará para cinco o número de comunidades que teremos de seguir.
Como é bem verdade o que dizia o Senhor: “A messe é grande mas os operário são poucos”! Quanto bem se poderia fazer, se houvesse mais missionários! As pessoas estão abertas à mensagem cristã, estão sedentas de Deus. Só que, muitas vezes, devido à falta de missionários que anunciem a Boa Nova, estas pessoas acabam por ir beber nas águas insalubres dos charcos de toda a classe de seitas que proliferam por todo o lado, valendo-se da ignorância da gente. É uma situação que nos faz sofrer continuamente.
Uma outra preocupação nossa são as obras paroquiais. Graças a Deus, terminámos a igreja e a sacristia. Agora tencionamos começar a construção dos salões paroquiais, aqui no centro e noutra aldeia. As respectivas comunidades cristãs andam atarefadas a “inventar” possíveis fontes de receita para colaborar no financiamento das obras. As pessoas são generosas, não obstante a situação de pobreza em que vivem. Não hesitam a dar do pouco que têm.
Pensamos também terminar o edifício da escola primária católica para poder receber 1.500 alunos no próximo ano lectivo. Isto para não falar doutros “sonhos”!…. Boa vontade e confiança na Providência e… nos amigos não faltam! E quanto ao resto, Deus dirá!
Termino desejando a todos os amigos um SANTO NATAL. Que a celebração deste mistério aumente a nossa fé em Deus-Amor e fortaleça os nossos laços de fraternidade.
Um abraço do amigo
P. Manuel João Pereira Correia
Adidogome (Lomé, Togo), 21 de Junho 1991
Caros amigos,
Várias pessoas me têm escrito – admiradas com o meu longo silêncio – a perguntar se eu ainda estou vivo!… Realmente, desta vez exagerei. É já desde o Natal que praticamente não escrevo a ninguém. Uma pessoa amiga dizia-me que contava já com isso: pela experiência tida com outros colegas missionários, ela tinha-se dado conta que os missionários que regressam à missão para um segundo período de trabalho deixam de escrever. Porquê? Talvez porque o trabalho nos absorve completamente, ou ainda porque as novidades deixam de ser tais, ou então… por simples descuido! Seja o que for, conto com a vossa compreensão e, se for o caso, com o vosso perdão!…
Quero aproveitar desta “ocasião de graça” que é o regresso a Portugal, de férias, do meu colega P. Maximino para enviar um abraço a todos os amigos e para lhes agradecer as orações que fazem por mim. Elas estão a ser ouvidas: nunca mais tive problemas de saúde, embora ultimamente os mosquitos (causadores da malária) nos tenham atacado duma maneira nunca vista! Continuem a rezar, não só por mim (não quero ser egoísta!) mas também por este país que está a viver um momento muito delicado. Na próxima semana vai começar uma “conferência nacional” para discutir o futuro da nação. É desde o mês de Outubro que se tem vivido numa situação de incerteza, greves, confrontações violentas, mortes e desaparecimentos de pessoas. O governo aceitou agora, finalmente, de respeitar a vontade popular mas o futuro ainda é incerto. Aliás, toda a África se encontra em ebulição. Deus queira que seja para o bem destes povos, sedentos de paz e de justiça social!
Aqui em Adidogome, onde me encontro, a vida vai decorrendo normalmente, com as suas pequenas alegrias e tristezas de cada dia. A nossa comunidade cristã continua a crescer e o número de “capelas” a aumentar. No domingo passado houve a confirmação de 180 jovens. Tivemos também a alegria de celebrar o sacramento do matrimónio duma dúzia de casais que se preparavam há alguns meses para o receber. O casamento é o grande problema que nós encontramos aqui no nosso trabalho pastoral. As pessoas têm medo de se comprometer por causa da poligamia dos homens (ter várias mulheres é um sinal de virilidade, poder e riqueza!) e da instabilidade da vida conjugal. E as crianças são as que pagam as consequências: abandonadas, especialmente pelo pai, crescem sabe Deus como, sem o apoio de que necessitariam para um desenvolvimento normal da personalidade.
Além do edifício espiritual que é a comunidade cristã, temos que pensar também aos edifícios materiais para a acolher. Aqui no centro da paróquia estamos a construir um edifício com cinco salas paroquiais para as reuniões dos vários grupos e para o catecismo, e noutra aldeia um outro com três salas e sacristia. Tudo isto graças à ajuda dos cristãos da Europa, mas os de aqui também colaboram generosamente, não obstante as dificuldades cada vez maiores que eles encontram para obter “o pão nosso de cada dia”!…
Os nossos seminaristas estão prestes a ir de férias (talvez já se tenham esquecido que a nossa missão é também seminário!). Cinco deles, no fim de Julho, partirão para o noviciado, no Zaire. É um sinal da bênção de Deus no nosso trabalho de formação. Rezai por eles também!
E fico-me por aqui. Termino enviando um grande abraço de muita amizade e de muita gratidão para todos vocês, amigos e familiares, que colaborais connosco nesta obra missionária da Igreja. Que o senhor vos abençoe!
O amigo
P. Manuel João
Adidogome (Lomé, Togo), 21 de Maio 1992
Estimados amigos,
Queria escrever-vos antes da Páscoa mas as actividades pastorais não mo permitiram. Faço-o agora, atrasado mais ainda em período pascal e, por conseguinte, a tempo de vos desejar a Paz e a Alegria de Jesus ressuscitado! Que todos nós possamos experimentar a vida nova que Ele veio comunicar aos homens.
Por aqui nós continuamos o nosso trabalho normalmente. Este ano já abrimos seis novas comunidades e pensamos abrir uma meia dúzia mais até fins do ano. Acabo de vir duma aldeia: Kleme Agokpanou. Visitei o chefe, um velho do tempo dos alemães (que colonizaram o Togo até à primeira guerra mundial) para pedir que nos deixe fundar uma nova comunidade cristã na sua aldeia. Acolheu-nos muito bem e prometeu-nos falar com os anciães para nos encontrar um terreno.
Para este trabalho apostólico procuramos interessar os grupos das comunidades mais velhas. Cada um encarrega-se de criar uma nova comunidade numa aldeia vizinha. Dificuldades não faltam, naturalmente. Agora teremos que pensar à construção de algumas “capelas” provisórias para estas novas comunidades. Para isso contamos com a colaboração generosa dos nossos amigos.
O Senhor não nos falta com a sua assistência e protecção. Ainda há apenas duas ou três semanas o pude experimentar. Estava eu de visita a uma aldeia para ver uma escola que a população tinha construído e que eu tinha prometido ajudar a cobrir com folhas de zinco. Quando eu dava a volta ao edifício para calcular o número de folhas de zinco necessário para o telhado, não reparei num grande e profundo buraco que eles tinham feito para obter o barro para a construção. Caí dentro do buraco mas de maneira tal que nem uma arranhadela me fiz. As pessoas ficaram admiradas (e eu também!). O anjo da guarda fez bem o seu dever!…
O nosso trabalho com os seminaristas continua bem. Nos fins de Julho irei acompanhar um grupo de dez novos noviços ao Zaire. É lá que se encontra o noviciado comboniano para a África ocidental. No dia 25 de Julho será ordenado o primeiro sacerdote comboniano togolês. São os primeiros frutos do trabalho de animação missionária que temos vindo a fazer aqui a partir de 1981, ano da celebração do centenário da morte de Daniel Comboni, nosso Fundador.
Várias pessoas me perguntam sobre a situação social e política do país. Actualmente o Togo é dirigido por um governo provisório que deveria preparar as eleições. O caminho da democracia tem-se revelado difícil e o futuro, por enquanto, é bastante incerto. Nós continuamos a rezar e a convidar as pessoas à reconciliação, alimentando a esperança duma transição para a democracia feita na paz e na concórdia nacional. Contamos também com a vossa oração!
Termino desejando a todos a bênção de Deus.
Um grande abraço do amigo
P. Manuel João
Adidogome (Lomé, Togo), 1.12.1992
Caros amigos,
O NATAL, com a sua mensagem de Paz e Amor, faz-nos recordar, duma maneira especial, a família e os amigos, e eu quero aproveitar esta ocasião para vos escrever e partilhar convosco um pouco da minha vida missionária.
GLORIA A DEUS NAS ALTURAS E PAZ NA TERRA AOS HOMENS QUE DEUS AMA! É com esta aclamação dos anjos que eu desejaria começar esta minha carta. Ela tem uma significação toda especial no contexto da situação política e social que este país (Togo) está vivendo.
Neste momento vamos já na quarta semana de greve geral decretada pela oposição contra o actual regime, que faz “orelhas moucas” às justas reclamações do povo, que deseja uma sociedade mais justa e fraterna. Não sabemos qual será o desfecho desta prova de força entre o antigo regime e o movimento democrático. Entretanto o povo sofre. Muitas pessoas começam a vir bater-nos à porta: têm fome! Estamos a tentar organizar-nos em vista desta situação de emergência, para tentar ajudar os mais desfavorecidos. Como será o nosso Natal?! Rezai por nós e por este povo para que Deus possa encontrar os “homens de boa vontade” dispostos a acolher o dom da Sua Paz! Os nossos cristãos também não se cansam de rezar por esta intenção: a toda a hora e momento há gente a rezar na igreja!…
Quanto a nós prosseguimos o nosso trabalho missionário com entusiasmo. Graças a Deus (e à vossa oração!), a saúde não me tem faltado. Continuo com a responsabilidade do seminário (postulantado comboniano) e da paróquia. Este ano, porém, dois novos colegas (P. Fabio e P. Roberto), italianos, foram destinados à nossa comunidade, um provisoriamente para aprender a língua local, o outro para colaborar connosco na formação e na pastoral.
O trabalho, entretanto, não pára de aumentar. Continuamos a fundar novas comunidades cristãs para ocupar todos os pontos estratégicos da região. De três comunidades que havia há três anos quando aqui cheguei, passámos já a dezasseis. Esta manhã mesmo fui pedir um terreno a um chefe para abrir uma nova comunidade cristã. No próximo domingo vamos lá começar uma campanha de evangelização. Amanhã irei ver o chefe duma outra aldeia. Lá as Testemunhas de Jeová anteciparam-se e fazem de tudo para impedir que nos implantemos na aldeia!…
O nosso trabalho não é fácil. A religião tradicional está profundamente enraizada no coração deste povo e a conversão à fé cristã é fruto dum longo processo que exige tempo e paciência. A superstição, o medo dos tabus escravizam a alma deste povo!
Esta manhã enviei o nosso cozinheiro Koku visitar uma aldeia onde tencionamos começar uma nova comunidade. Acaba de me contar que o chefe é acusado de ter assassinado uma pessoa que desaparecera há dias. Parece que não é a primeira vez que é acusado de semelhante crime. Foi com pouco entusiasmo que me decidi a abrir uma comunidade naquela aldeia. Uma das razões era precisamente a má impressão que o chefe me dera e que poderia comprometer a nossa acção. Koku comentava, pelo contrário, que este crime e a má fama de que goza a aldeia era mais uma razão para lá ir anunciar o Evangelho. Sabedoria e fé dos simples!
Alegrias e tristezas convivem no dia-a-dia do missionário. Ainda há pouco tempo, no domingo de Cristo Rei, numa nova comunidade que acabámos de abrir, uma rapariguinha de sete anos morreu atropelada ao atravessar a estrada, à saída da celebração dominical. Quando vieram comunicar a triste notícia fui imediatamente visitar a família, mesmo se era já noite. Foi com o coração cheio de tristeza e em sobressalto que entrei naquela casa (ainda por cima nos perdemos à sua procura!). Como nos iriam receber? Dentro de mim eu queixava-me com Deus: Porquê permitiste esta desgraça, Senhor? Eu lamentava a sorte da pequena Adzotoa mas temia também as consequências deste facto para a vida desta jovem comunidade nascente. Os pagãos iriam comentar que era um aviso do Vodu (divindade pagã) para todos aqueles que se tornassem cristãos! Mas a família (pagã) recebeu-me muito bem e pediu que eu mesmo viesse enterrar a pequenita. A mãe, em lágrimas, pediu-me que rezasse por ela “para que o seu coração se apaziguasse”!
Regressando a casa, eu pensava naquelas palavras de Jesus ao bom ladrão, do texto do evangelho desse mesmo dia: “Hoje mesmo tu estarás comigo no Paraíso!”. O Senhor me fez compreender que essas palavras tinham sido dirigidas a Adzotoa, a quem eu dei o nome de Cecília, a santa que o calendário litúrgico comemorava nesse dia, 22 de Outubro. A pequena Adzotoa-Cecília intercede agora no céu pelos seus irmãos da comunique de Apedokoe e pela sua aldeia, que bem precisa. Ainda há dias mataram lá três homens (degolados e queimados!), acusados de terem assassinado um rapaz e de lhe terem amputado membros do corpo para usar em ritos pagãos!…
Uma outra preocupação nossa é dotar as comunidades cristãs dum lugar de culto. Para isso tive que tornar-me… mestre-de-obras! E devo confessar que até lhe ganhei um certo gosto! Devo tê-lo herdado do meu pai, certamente. No dia 18 de Outubro inaugurámos uma capela dedicada a Nossa Senhora de Fátima. Santo Antonio ainda a disputou também, mas foi Nossa senhora que venceu. Penso que Santo Antonio não ficou zangado com Ela, tanto mais que lhe prometi que, se ele nos ajudasse, não nos esqueceríamos dele numa próxima ocasião!
Na véspera da bênção da capela, quando preparava a homilia, veio-me a curiosidade de ir ver em que dia eu tinha celebrado a primeira missa de abertura daquela comunidade. E qual não foi a minha surpresa ao ver que fora precisamente no domingo 12 de Maio do ano passado, no dia em que o Papa se dirigira a Fátima para aí rezar com cerca dum milhão de peregrinos. Um feliz acaso ou um sinal de que Ela mesma escolhera esta comunidade?
Neste momento estamos a construir duas novas capelas (de 20 metros de comprimento por 9 de largura). Vamos lá ver se conseguimos termina-las. Faltam-nos os meios necessários! Esperamos que a Providência venha em nossa ajuda! Uma das capelas será dedicada a S. José e a outra a Santo António! Veio-me a ideia de vos convidar a lançar uma campanha nas vossas paróquias, dirigida especialmente aos “Josés” e aos “Antónios”, para nos ajudarem a terminar estas capelas! Perdoai-me a ousadia!…
Esta carta já vai demasiado longa. Termino desejando-vos a todos um SANTO E FELIZ NATAL. Rezai por nós e pela paz deste país!
Com muita amizade,
P. Manuel João Pereira Correia
Lomé (Togo), 10.3.1993
Estimados amigos,
Escrevo-vos esta carta em pleno tempo de Quaresma. Com o olhar fixo em Jesus que caminha à sua frente qual novo Moisés, toda a Igreja, o novo Israel, se encontra em marcha em direcção à Páscoa. Nós, Igreja do Togo, estamos a viver esta Quaresma num contexto muito particular: há quatro meses que a população se encontra em greve geral, como forma extrema de luta para reclamar a democratização d país. Aqui a Páscoa é esperada não só como libertação espiritual mas também como libertação da opressão e da violência dos “faraós” que escravizam este povo. Entretanto a população sofre, especialmente por falta de alimento. Estamos a tentar ajudar, na medida do possível, em colaboração com a Caritas.
Centenas de milhares de pessoas abandonaram o país para ir refugiar-se nos países vizinhos, no Gana e no Benim em particular. Na sua visita ao Benim, no dia 3 de Fevereiro, o Papa dizia, dirigindo-se aos muitos milhares de togoleses vindos para o ver: “Quero manifestar toda a minha simpatia e afeição aos bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, aos catequistas e aos fiéis do Togo e, através dos que se encontram aqui, a todos os togoleses. Neste momento estais a passar por grandes dificuldades. Neste momento de prova, eu continuo a rezar para que Deus dê a paz ao vosso povo. A violência e o desprezo pelas aspirações legítimas dos cidadãos nunca conduziram ao progresso cívico e social”. Deus escutará o grito do seu povo!
Quanto a mim, estes sãos os últimos meses que passo nas missões. Os superiores destinaram-me a trabalhar em Roma, a partir do 1 de Julho, como secretário geral da formação no instituto comboniano. O peso desta nova responsabilidade, confesso-vos, assusta-me bastante. Além disso, dizer adeus à missão por alguns anos não é fácil! Por isso confio muito na vossa oração!…
Agradeço ao Senhor esta graça que me deu de poder partilhar sete anos da minha vida com este povo. Foram anos bonitos, não obstante as dificuldades encontradas e as minhas póprias fraquezas.
Caros amigos, termino desejando-vos uma Páscoa muito feliz. Que a Paz de Jesus ressuscitado, a Paz que Ele oferece aos seus amigos, inunde os nossos corfações e renove toda a nossa vida!
Com amizade,
P. Manuel João Pereira Correia
P.S. Caros amigos,
Afinal de contas esta carta, que eu escrevera para vos desejar uma santa Páscoa, não chegou a partir na devida altura, um pouco por causa da greve, um pouco por descuido meu.
Esta é a última vez que vos escrevo desde a minha missão no Togo. Dentro de alguns dias (30 de Junho) partirei para Roma e de lá seguirei para o México em vista do meu futuro trabalho de secretário-geral da formação e da promoção vocacional do Instituto Comboniano.
Tenho vivido muito intensamente estes últimos meses de missão, procurando levar a bom termo alguns projectos que tinha concebido (criação de novas comunidades cristãs nos pontos estratégicos da região e construção de algumas capelas), não obstante a situação socio-política de muita tensão.
Do 11 de Agosto ao 10 de Setembro estarei de férias em Portugal para rever os amigos e repousar um pouco antes de começar o meu novo trabalho ao serviço da Direcção Geral do nosso Instituto, em Roma. Até lá, um grande abraço de muita amizade.