Sábado, 14 de junho de 2024
O padre Manuel João Pereira Correia, missionário comboniano, vive há 14 anos com esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença que procura enfrentar com espírito missionário, serenidade e o «dom do sorriso». O Ir. Tomek Basinski, missionário comboniano polaco, fez-lhe uma breve entrevista que a seguir publicamos.
«Amo a vida e gosto de repetir que a vida é bela!»
Como nasceu a tua vocação missionária?
A minha vocação missionária... nasceu comigo! Desde a minha infância que sentia o desejo de ser padre, talvez por influência da minha mãe que, quando eu era muito pequeno, me perguntava durante a Santa Missa: «Manelzinho, não gostavas de ser padre também?» Esse desejo cresceu comigo, de tal forma que quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande, respondia com convicção: «Quero ser padre!» Os meus colegas e alguns familiares riram-se de mim, mas o sonho manteve-se vivo.
Quando tinha 10 anos, durante a escola primária, veio um comboniano e falou-nos com entusiasmo da vocação missionária. Por fim, perguntou-nos quem gostaria de ir para África com ele. Mas ninguém levantou a mão. Nem mesmo eu, por timidez. O professor, que talvez tenha pressentido que eu poderia ser um «candidato», chamou-me durante o intervalo e apresentou-me àquele promotor vocacional. Alguns meses mais tarde, fui aceite no seminário. E assim nasceu a minha vocação de padre comboniano.
Devo salientar que a decisão de dar o meu «sim» definitivo ao Senhor não nasceu de um esclarecimento das minhas dúvidas, mas sim de uma convicção íntima de que, mesmo que o futuro revelasse que a minha decisão tinha sido arriscada ou mesmo errada, o Senhor daria sentido à minha história. Esta convicção tornou-se para mim como uma «promessa de sentido»: «Estarei sempre contigo para dar sentido à tua vida!» Esta promessa sempre me acompanhou e iluminou os momentos difíceis da minha vida.
Poucos dias antes da minha ordenação [15 de Agosto de 1978], o meu pai confidenciou-me que, no momento da minha concepção (sou o filho primogénito), os meus pais fizeram uma espécie de oração ou consagração: «Senhor, se o nosso primeiro filho for um rapaz, nós oferecemo-lo a ti para ser padre!» E contou-me que não me tinha dito isto antes para não me condicionar na minha escolha. Outra confidência, da minha mãe (que guardo só para mim!), comoveu-me profundamente. Vejo-me na vocação de Jeremias, com as suas dúvidas, medos e timidez, mas chamado por Deus desde o ventre da sua mãe!
Trabalhaste em diferentes comunidades e países até que, em 2010, aconteceu algo que te obrigou a regressar e a ficar na Europa. O que é que aconteceu?
Comecei a ter dificuldade em andar e perguntei-me o que seria. No início, pensei que era falta de exercício. À noite, depois de terminar as minhas actividades, comecei a andar de bicicleta. Quando se tornou claro que era outra coisa, fui a um neurologista, que me aconselhou a regressar imediatamente ao meu país, Portugal, para fazer exames e me deu uma carta num envelope fechado para apresentar a um especialista. Quando cheguei a casa, abri-a e li o veredicto. Diagnóstico provável: esclerose lateral amiotrófica (ELA). Em Lisboa, este diagnóstico foi-me confirmado. Quando perguntei ao médico qual seria a evolução da doença, ele respondeu-me: «Muito simples, primeiro vai andar com muletas, depois numa cadeira de rodas, depois...».
Agradeci-lhe pela sua franqueza e fui-me embora! Regressei a África (Togo) para terminar os últimos meses do meu serviço como responsável dos Combonianos na África Ocidental (Togo, Gana e Benim) e no final do ano regressei à Europa.
Como é que reagiste quando recebeste o diagnóstico do médico?
Na primeira noite, chorei um pouco, confesso, mas depois o Senhor concedeu-me uma graça que eu não esperava: uma grande serenidade, que sempre me acompanhou. É claro que, no início, me perguntei porque é que aquela desgraça tinha de me acontecer, mas dei logo a resposta a mim próprio: «E porque é que não tinha de te acontecer a ti? Por acaso és privilegiado?»
Pensava muitas vezes quando estaria completamente preso no meu corpo, mas uma certeza dava-me paz: «Não estarei sozinho, o Senhor será prisioneiro dentro de mim!» Pensei também na possibilidade de ficar completamente isolado da realidade exterior, mas outra convicção cresceu em mim: «Terei sempre a possibilidade de viver no mundo interior que habita na catedral do meu coração!»
O teu ministério mudou certamente à medida que a tua doença foi progredindo.
Sim, sem dúvida. No início, esperava viver, no máximo, alguns anos. De facto, vi morrer amigos que conheci com a mesma doença. Como o Senhor me deu alguns anos a mais (já se passaram mais de doze anos!), pensei em dar a minha pequena contribuição no campo da formação permanente dos colegas, criando um blogue e partilhando com eles material de formação. Enquanto a minha situação o permitiu, prestei-me a colaborar com alguns grupos, dando o meu testemunho e cultivando amizades.
Disseste uma vez que a tua cadeira de rodas se tornou um púlpito para ti.... Como é que vês isso?
Sim, creio que a minha cadeira de rodas é o púlpito que Deus me deu para proclamar a Palavra de Deus. Creio que a nossa cruz é o lugar mais adequado para proclamar a Palavra. Vejo-me como o profeta Jonas no ventre da baleia, que me conduz para onde Deus quer que eu vá. Navego no mar da vida, entre as suas duas margens. De um olho da baleia olho para a vida nesta margem, do outro olho vislumbro a outra margem que nos espera, na bruma da fé e da esperança.
Sempre que me lembro de ti, vejo um homem sereno e sorridente. De onde vem essa tua alegria?
A serenidade que me acompanha desde o início da minha doença é um dom de Deus. Tenho a certeza disso, porque estava bastante preocupado com problemas de saúde, que não me faltaram na missão. Peço ao Senhor um sorriso todos os dias.
Desde 2018 que estás completamente imóvel. Como é que vives a dependência dos outros?
É a minha maneira de viver o meu voto de pobreza: estar em necessidade e ter de pedir tudo! Mas é também uma forma de cultivar a gratidão por cada pequena coisa. Além de agradecer a Deus por todas as pessoas que generosamente me ajudam, tento sempre retribuir com um sorriso nos lábios e uma bênção no coração. Por outro lado, isto é muito fácil porque todos me amam e me mimam!
E como é que comunicas com os outros, por exemplo, agora comigo?
Comunico sobretudo com os meus olhos, a única parte do meu corpo que ainda consigo mexer. Com os meus olhos escrevo, graças a um computador com um software especial que «lê» os movimentos dos meus olhos. Uma das muitas maravilhas da tecnologia!
Como é que vives a tua vocação missionária?
Amo a vida e gosto de repetir que a vida é bela! Tento transmitir este sentimento de admiração às pessoas que me rodeiam.
Continuo a interessar-me e a acompanhar a vida do nosso mundo, da sociedade, da Igreja e da missão. Faço-o por paixão e para actualizar continuamente o meu blogue (www.comboni2000.org).
Por vezes, as pessoas que experimentam a doença e o sofrimento sentem dor e revolta em relação a Deus. Qual é hoje a tua relação com Deus?
Na doença descobri a generosidade de Deus! Durante alguns anos impressionou-me a imagem da visita do Senhor como um ladrão. Sentia que se tratava de uma visita dolorosa. Espontaneamente, pedia ao Senhor que não me visitasse como um ladrão. Que viesse como um amigo e batesse à minha porta, mesmo como um amigo importuno, a ponto de me obrigar a abrir-lha, por amizade ou por força! Quando o Senhor me visitou com uma doença, exclamei espontaneamente: «Senhor, tu és um ladrão!» Uma vez por outra, ele tirava-me alguma coisa. Descobri, no entanto, que Ele é um ladrão muito especial. Nunca nos tira nada sem nos deixar algo mais precioso!
O que é que dirias às pessoas que perderam a esperança e são infelizes no seu sofrimento e na sua doença?
Eu diria que a vida é sempre uma oportunidade! Desde o início da minha doença, uma convicção acompanha-me: a vida nunca fecha uma porta sem abrir outra. Só que, muitas vezes, ficamos tão obstinadamente presos a essa porta fechada que não nos apercebemos de que, entretanto, se abre outra porta. No início, a doença era para mim como uma parede escura que cortava completamente todas as perspectivas de horizonte. A convicção de que a vida é sempre uma oportunidade levou-me a olhar para essa parede com outros olhos e a vislumbrar uma porta, até então invisível aos meus olhos, que me ofereceu uma nova visão da vida, mais profunda, mais ampla e mais bela, atrevo-me a dizer! É claro que a fé me ajudou neste processo. Claro que há situações que são particularmente trágicas, difíceis de aceitar e de gerir. Para o crente, é a hora da esperança e da fé no triunfo da vida, de que a cruz e a morte são a gestação. Ao não crente, diria para confiar no instinto da beleza da vida. Também esse é um caminho de esperança que nos conduz, ainda que inconscientemente, à Vida!
Entrevista de Ir. Tomek Basinski,
missionário comboniano