No segundo domingo de Natal temos o prólogo do Evangelho de S. João, este texto com uma densidade teológica, existencial que nos ajuda a descortinar o mistério da própria Encarnação do Senhor. (...)

João 1, 1-18
Encarnou entre nós

Queridos irmãs e irmãos,
No segundo domingo de Natal temos o prólogo do Evangelho de S. João, este texto com uma densidade teológica, existencial que nos ajuda a descortinar o mistério da própria Encarnação do Senhor.

O que é isto que os nossos olhos veem? O que é isto que a nossa carne contempla? “No princípio era o Verbo, o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.” Este é o resumo daquilo que nós podemos olhar. E o que é que nós tocamos? Do que é que nós nos avizinhamos no mistério do Natal? Avizinhamo-nos de um Deus que Se faz carne, que toma a nossa carne, um Deus que visita a história, que a atravessa, que passa a estar entre nós, que passa a ser um de nós – a nossa carne, o nosso corpo, a nossa vida. Porque, o nosso corpo é este corpo individual que todos temos, mas é o corpo social, é a nossa história, é o corpo biográfico. O nosso corpo torna-se teomórfico. A nossa humanidade torna-se o lugar onde Deus habita, onde Deus esplende.

Então, nós temos de olhar para a nossa humanidade de outra forma, com outros olhos. No mistério da Encarnação, nós percebemos que a nossa humanidade passa a valer mais. Não apenas a minha humanidade individual, mas a humanidade passa a valer mais. Porque, Jesus vem mostrar o valor da nossa humanidade, vem dar-nos um novo olhar, uma nova compreensão daquilo que nós somos, daquilo que cada ser humano é. Vem alargar, finalmente nós podemos ver. Nós podemos ver a glória que está inscrita, que está agora tatuada na fragilidade da nossa condição humana.

Por isso, o tempo de Natal, estes dias de Natal são dias para contemplarmos. Contemplarmos a cena do presépio mas contemplarmos os presépios vivos. Uma rua da nossa cidade é um presépio vivo, as nossas casas, a nossa família é um presépio vivo. As pessoas que passam, conhecidos e desconhecidos, é um presépio vivo. Nós somos chamados a olhar para aquela humanidade que muitas vezes nos é indiferente, muitas vezes até nos agride, muitas vezes damos por desvalorizada. Somos chamados a reolhar, a rever a humanidade, agora com olhos novos, porque ela é o lugar onde está Deus.

Neste tempo do Advento e do Natal nós fizemos tantas coisas e chegamos a este dia muitas vezes até com o sentido: valeu a pena, não valeu a pena. Sentimos que investimos demasiada esperança, que caímos outra vez na armadilha do Natal. Voltei a acreditar e, de repente, este dia vai chegar ao fim. Há mais uma tarde e acaba tudo. E parece: pronto, lá caí outra vez. Porque, talvez possamos temer que o investimento de esperança, de afeto, de dádiva, de serviço, de cuidado que oferecemos nós não recebemos a troca, não vemos para que é que isto serve. Para que é que tudo isto existe, qual é o real valor de tudo isto. Será que não somos uns zombies que se contagiam uns aos outros com este espírito e que depois, no fundo, percebemos que nada disto valeu a pena. Eu penso que as palavras do prólogo de S. João nos ajudam a perceber porque é que vale a pena. Porque é que vale a pena? Porque é que vale a pena sermos dom, porque é que vale a pena até o nosso cansaço, a nossa fadiga? Porque é que vale a pena toda esta mobilização, porque é que vale a pena hoje a cidade estar vazia, porque é que vale a pena tudo isto que se cria? Porque é que vale a pena?

Vale a pena porque na nossa carne nós experimentamos uma diferença. O amor deixa-nos talvez mais cansados, talvez sem forças. O amor traz-nos a fadiga, o cuidado dos outros, a solidariedade. O pensamento dos outros mobiliza-nos, enche-nos de ocupações, muda a nossa agenda, transforma-nos. E esta modificação que cada um de nós experimenta, num custo de fadiga, de cansaço, de cuidado, de dádiva, de prestação de serviço, este custo que o Natal tem na nossa carne é a vinda de Deus. É Deus a vir ao nosso próprio corpo, à nossa própria vida. Esta espécie de desvitalização é o cavar a manjedoura dentro de nós, cavar o berço onde Deus vai nascer. Porque nós precisamos de fazer o caminho de Jesus, o caminho que Ele depois vai fazer na sua vida, porque esta história não acaba em Belém, esta história começa em Belém. E o que Ele nos ensina é a fazermos da nossa vida dom, é a darmo-nos por inteiro, é a sairmos de nós, é a não pensarmos em nós-próprios, em vivermos na alegria, na alegria do dar. Há uma infinita alegria que está no dar e não no receber, há uma infinita alegria que está no servir e não no ser servido, há uma infinita alegria em fazer-se o último, em esquecer-se de si. Há uma perfeita e infinita alegria em sermos pequeninos e ajudarmos a construir sorrisos, a sermos cúmplices dos sonhos dos outros, a realizar a alegria que os outros têm adiada. E nós dizemos: olha, hoje é o dia dessa alegria, é hoje que vais sorrir, é hoje que vais ter aquilo que sonhaste. Seja um brinquedo ingénuo, seja o que for, é a vida que está a ser partilhada, estamos a construí-la uns com os outros. Quando somos capazes de fazer isso, claro que há um custo. Mas, esse custo, que está até na nossa carne e no nosso corpo, é a forma de Deus, é a forma de Deus.

Queridos irmãs e irmãos, por isso o Natal é a festa do brilho e da abundância. Mas o Natal é a festa dos famintos, é a festa dos esfomeados, dos sedentos, daqueles que querem mais, querem mais da vida, querem outra coisa da vida, daqueles que não se conformam apenas com a rotina, com o dia-a-dia, que sentem que tem de haver um suplemento, tem de haver um plus, tem de haver alguma coisa que vá além da medida, que não seja apenas o normal, alguma coisa que nos traga o excesso, o excedente do brilho do próprio Deus, da glória do próprio Deus. Por isso, o Natal é este tempo assim desconforme, exagerado, é o tempo do desejo de Deus, é o tempo para dar espaço a essa fome e a essa sede que temos no nosso coração. Famintos de estrelas, nós que andamos colados ao chão. É tempo para sentir isso e para dar voz, dar corpo, dar lugar à expressão de tudo isso que está no nosso coração. E é assim que a nossa carne ganha a forma de Deus.

“O Verbo fez-se carne e encarnou entre nós e viveu entre nós.” É a isto, irmãos e irmãs, que temos de nos agarrar, traduzindo na nossa carne, na nossa vida, nas nossas relações, nas nossas construções a presença de Deus. Dando ao mundo a forma de Deus. Este é o programa do Natal, procuremos vivê-lo à nossa medida, à nossa dimensão com aqueles que encontrarmos, partilhando, vivendo este milagre que é este dia, mas ao mesmo tempo, tendo a capacidade de o multiplicar, de o expandir, de fazer do Natal uma surpresa que chega a quem pensava ou já não pensava que ele pudesse existir.

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org

Desejo de adorar
Mateus 2, 1-12

Queridos irmãs e irmãos,
Nós celebramos hoje a grande solenidade da Epifania do Senhor, da Sua manifestação. Falar da Epifania é falar do mistério de Cristo, do programa de Cristo, da novidade que Ele introduz na própria história. É muito importante olharmos para a festa da Epifania, como a liturgia nos aconselha, com a ajuda do apóstolo Paulo, que foi um dos primeiros cristãos a trabalhar este tema da Epifania de Jesus e o caráter transfronteiriço da mensagem cristã, da proposta que Jesus vem fazer.

S. Paulo na Carta aos Efésios faz uma espécie de resumo daquilo que hoje nós, simbolicamente, também celebramos. Ele diz: “Foi-me revelado o mistério de Cristo.” E o mistério de Cristo é este: “Os gentios recebem a mesma herança que os judeus, pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa em Cristo por meio do Evangelho.” Isto que parece uma coisa muito simples é uma revolução completa. É a emergência de uma realidade nova que, de certa forma, nós ainda estamos a apanhar, estamos a colher, com muita dificuldade, porque é mesmo assim.

Mas ainda estamos longe de perceber a radicalidade desta palavra porque, durante séculos, a história do Povo de Deus era uma história que unia a Revelação à construção de uma nação, de um país. Então, toda a promessa de Deus era lida em chave nacionalista. Isto é, esta palavra é uma palavra que pertence a Israel, pertence àqueles que geneticamente são deste povo. Todos os outros são gentios, são pagãos, não têm acesso à manifestação de Deus. Ora, Jesus vem como homem, como pessoa humana, para tornar a Salvação de Deus acessível a todos. Jesus vem para dizer a todos que é possível, que é para eles que Deus se manifesta, que Deus Se revela.
Ora, isto não é fácil porque das primeiras palavras que nós aprendemos a dizer é: “Meu, é meu, é meu.” E também em relação a Deus: “É o meu, é o meu Deus, é a minha maneira de ver, é a minha oração, é a minha tradição religiosa.” E, de repente, nós estamos a aprisionar Deus, a aprisionar Jesus.

Nós estamos a celebrar a festa da Epifania, desta universalidade da salvação que Jesus vem revelar. Como é que nós, Igreja, vivemos essa universalidade? Muitas vezes nós construímos igrejas, e dentro das igrejas capelas, e dentro das capelas capelinhas. Porque a nossa tendência é essa, é de barricar, de enclaustrar, de fazer uma trincheira, de dizer: “É meu, é minha.” E ficar apenas por aí.

Lembro-me duma homilia do Papa Francisco, uma homilia agitadora como é a palavra do Santo Padre, uma palavra profética, ele dizia isto: “Há dois modelos de Igreja: o modelo daqueles que procuram sobretudo alimentar, confortar, consolidar os que já estão dentro. E, então, nós construímos uma espécie de cintura que nos isola do resto e procuramos, sobretudo, fortalecer a fé dos que já estão, dos que já pertencem. “ E o Papa diz: “Uma Igreja assim não se distingue nada de um clube.” Daqueles clubes muito reservados, com muito pedigree. Uma Igreja assim não se distingue de um clube. E há um outro modelo, diz o Santo Padre: “Que é daqueles que dizem: «É bom estar dentro, é bom já pertencer, mas nós temos de sair para fora, temos de ir ao encontro dos que ainda não estão aqui» E essa, diz o Santo Padre, é uma Igreja missionária, é uma Igreja em saída, é uma Igreja que não fica no conforto das suas certezas, das evidências já conquistadas, já reconhecidas. Mas vai partir pedra, mas vai fazer caminho, mas vai ao encontro de um mundo que é diverso, que é impuro, que não é aquele que nós idealizamos, que tem tantos contrastes, que tem tantos paradoxos mas, no fundo, é um mundo que Deus ama, é um mundo que precisa ser salvo.”

Isto para nós é uma responsabilidade muito grande, queridos irmãos, porque também nós somos artesãos da Igreja, somos construtores da Igreja. E podemos criar segredos, fazer disto uma espécie de segredo inútil que se transmite e que morre aqui, ou podemos fazer de Jesus, daquilo que a Encarnação de Jesus significa, podemos fazer Dele uma epifania, uma manifestação, sabendo que esta boa-nova tem de chegar para lá, para lá das nossas fronteiras.

No Evangelho de S. Mateus emergem dois personagens e, no fundo, são dois tipos humanos, são dois tipos de atitude, podemos tanto ser um ou ser outro. Temos o rei Herodes. O rei Herodes não sabe nada, ignora tudo, a única coisa que ele sabe é o seu poder, é que ele tem de sobreviver no poder, que ele tem de continuar. Ele não sabe que o Menino nasceu, ele não sabe nada da Estrela, ele tem de perguntar aos outros, tem de ler os grandes livros, ele não sabe que o Messias vai nascer em Belém, ele não sabe nada, só sabe de si.

E temos este outro tipo humano que é esta figura dos Magos. Os Magos que vivem longe, que são aquelas pessoas curiosas pela vida, que mantêm uma disponibilidade para se deixar surpreender. No fundo, é preciso ter um coração pobre, é preciso não fazer do seu ego o seu trono, para ainda abrir uma janela e olhar para as estrelas e perguntar o que é que aquelas estrelas quererão dizer. E estes homens estão disponíveis para fazer caminho, para fazer estrada. Um rei é prisioneiro da sua corte, do lugar onde se senta. O Rei Mago é um nómada, é alguém disponível para sair da sua casa, sair do seu palácio, fazer uma viagem.

Uma viagem da qual não há muitas certezas, porque se nos deixamos guiar por uma estrela é uma viagem muito aberta, muito pobre ao mesmo tempo de sinais, é uma espécie de alinhavo, não é um traço forte. Mas eles estão disponíveis para ir adorar uma coisa que está longe deles, e não apenas adorar o seu umbigo, adorar a sua imagem. Estes são capazes de ir mais longe. E quando chegam, perante uma criança, ajoelham-se e adoram.

O que é que nós adoramos normalmente, o que é que nós consideramos? Uma pessoa tem de dar o litro para merecer a nossa admiração, para merecer a nossa confiança tem de fazer uma coisa verdadeiramente excecional, aí, nós sim reconhecemos. Estes põem-se de joelhos perante uma vida que não fez nada, perante uma vida que é, perante aquilo que é o mistério desabalado da própria vida. De joelhos a contemplar o Menino, não contemplam coisas, atos, monumentos, ações, glórias, saberes, conhecimento, não, ajoelham-se perante a vida a vida trémula, a vida que não é nada, a vida frágil, a vida que tem ali todo o seu mistério, a vida no ato puro de ser.

Estão ali de joelhos e partilham com aquela vida as suas riquezas, os seus tesouros, aquilo que trazem. Tesouros sem dúvida simbólicos, para perfumarem a vida: o ouro, o incenso, a mirra. Os grandes tesouros do mundo antigo e que têm a ver com o mundo real, com o mundo sacerdotal, com o mundo profético, com as coisas mais preciosas daquele mundo e daquela cultura. E eles partilham os seus tesouros e depois partem, voltam ao seu caminho.

Nós sabemos que Herodes só pode fazer o contrário. Herodes só pode determinar a matança dos inocentes porque Herodes não suporta o outro como uma ameaça, ele não suporta não ser o centro e por isso há de mandar matar todos os meninos que nasceram naquela época.

Os Magos vêm, adoram a vida e partem. São dois tipos, são duas atitudes perante a vida e a verdade é que nós encontramos ambas dentro de nós, a rivalizar dentro de nós. O necessário é que nos tornemos reis magos ao longo deste ano, deste Ano Santo da Misericórdia, tendo a capacidade de ir mais longe, tendo a capacidade de ser guiados pelo alto, tendo capacidade de nos desinstalarmos, de fazermos a grande viagem e de retornarmos depois à nossa casa, ao nosso coração por um outro caminho. Isto é, voltar à nossa casa transformados pela própria viagem porque aquilo que vimos, aquilo que fizémos transformou completamente a nossa vida.

Queridos irmãos, é a grande festa da Epifania, que responsabilidade nos é colocada nas mãos, que responsabilidade tornarmo-nos nós agentes desta Epifania. Deixarmos para trás o Herodes que subsiste, que sobrevém sempre dentro de nós e sermos capazes de adotar a atitude dos Magos, e aprender com eles este desejo de adorar. O primeiro mandamento é adorar a Deus , amar e adorar a Deus sobre todas as coisas. E este ter uma coisa para adorar na vida é um bem sem tamanho.

Muitas vezes nós vivemos uma vida só mesquinha, só conseguimos gostar ou não gostar, ou querer ou não querer – é a posição de Herodes. Estes que vêm de longe são capazes da adoração. O Senhor nos dê um coração capaz da adoração. Isto é, da contemplação do seu mistério, do fantástico reconhecimento da sua presença no mundo, nas nossas vidas.

Pe. José Tolentino Mendonça, Epifania do Senhor

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org