O Evangelho de hoje (cf. Mt 23, 1-12) ambienta-se nos últimos dias da vida de Jesus, em Jerusalém; dias cheios de expetativas e também de tensões. Por um lado Jesus dirige críticas severas aos escribas e aos fariseus, e por outro faz importantes recomendações aos cristãos de todos os tempos, e portanto também a nós. (...)
Quem ocupa a cátedra do teu coração?
Aquele que for o maior entre vós será o vosso servo!
Mateus 23,1-12
O evangelho deste domingo continua num contexto tenso de oposição entre Jesus e os seus adversários. Agora, porém, é Jesus que toma a iniciativa e faz uma série de denúncias muito duras contra os escribas e fariseus, que se prolonga por todo o capítulo 23 do evangelho de Mateus. A passagem de hoje é a introdução. Seguem-se os “7 ais” pronunciados por Jesus contra eles: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas!”
Podemos surpreender-nos com a linguagem severa e mordaz de Jesus contra estes dois grupos que, no entanto, eram estimados pelo povo. Vários fariseus farão parte da comunidade cristã primitiva. O próprio S. Paulo tinha sido “fariseu e filho de fariseus” (Actos 23). Por que razão, então, Jesus se indigna tanto contra eles?
1. O fermento dos fariseus
É provável que o evangelista Mateus tenha carregado um pouco as tintas, pensando na sua comunidade, onde havia fariseus convertidos que, com o seu formalismo e legalismo, corriam o risco de aguar o vinho novo do Evangelho. É preciso lembrar também que estamos no fim da vida de Jesus e que ele quer advertir os seus discípulos contra o perigo de que o “fermento dos fariseus” (Mateus 16,6) entre na comunidade.
Perante estas repreensões, podemos adotar duas atitudes falaciosas. A primeira é pensar que Jesus está a falar a uma categoria de pessoas do seu tempo: “Naquele tempo...”, assim começa a proclamação do Evangelho. Infelizmente, essa categoria de pessoas nunca desapareceu, porque esconde-se em cada um de nós! A segunda atitude consiste em pensar que esta palavra é dirigida aos responsáveis da comunidade cristã, padres e bispos em primeiro lugar. E com razão! Revestimo-nos de títulos e honras que nos tornaram ridículos e risíveis: eminências, excelências, monsenhores, reverendos.... E ai de nós se nos enganarmos no título, rebaixando alguém! Seria preciso uma bela varredura de títulos e pompas para purificar a Igreja de tanto mundanismo! Lembro-me da minha surpresa, ao chegar a África, ao ouvir as pessoas chamarem-me “fadavi”, isto é, “pequeno padre”, enquanto o título de “grande padre”, “fadagan”, estava reservado ao pároco! Fazia-me sorrir ouvir os catequistas e outros responsáveis das comunidades apresentarem-se frequentemente com um subordinado: “este é o meu segundo!”, diziam. Como somos hábeis na arte de nos destacarmos!
O vírus do “farisaísmo” está presente em todos os sectores da vida pública e social, e não só nas igrejas. “Aquele que for o maior entre vós será o vosso servo”, diz Jesus. Quem dera que assim fosse!
2. A ofalmodulia
Mas de que é que Jesus censurava os escribas e os fariseus? Essencialmente, de três coisas:
- A incoerência de vida: “eles dizem e não fazem”. Esta é ainda hoje a censura mais frequente contra nós!
- Um legalismo extremo que escravizava as pessoas: “Atam fardos pesados e põem-nos aos ombros dos homens, mas eles nem com o dedo os querem mover”. Esta é uma forma de exercer o poder que ainda hoje parece estar em vigor!
- A procura quase espasmódica de honras e da estima dos outros: “Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens”. Trata-se de uma autêntica patologia que S. Paulo designa por oftalmodulia, termo grego talvez por ele cunhado por não se encontrar noutro lugar. Significa escravidão ou “servidão do olhar”, subserviência ao olhar dos outros (cf. Colossenses 3,22; Efésios 6,6).
Estas três censuras podem resumir-se numa palavra: HIPOCRISIA de vida! Hipocrisia vem de uma palavra grega que significa simulação, ligada à representação teatral. O hipócrita vive a vida com máscaras! Vive na falsidade e no engano! Que triste! A hipocrisia rouba-nos toda a credibilidade. O antídoto para a hipocrisia é a HUMILDADE: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”! Quanto mais um edifício for alto, mais os seus alicerces devem descer!
3. A vida não é um palco, mas uma palestra de fraternidade!
Nas leituras de hoje, chama-me a atenção a abundância de termos relacionados com a família: pai, mãe, criança, filhos, irmãos... Deus criou-nos para sermos uma família e não actores que contracenam num palco, usando máscaras de acordo com o papel a desempenhar! A vida é uma palestra de fraternidade!
Como cultivar esta fraternidade? Jesus dá-nos três indicações concretas que nos introduzem na família primordial: a TRINDADE.
- “Vós não vos deixeis tratar por ‘Mestres’, porque um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos”. Quem é esse Mestre? O Espírito Santo! “O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á tudo o que vos tenho dito” (Jo 14,26);
- “Na terra não chameis a ninguém vosso ‘Pai’, porque um só é o vosso pai, o Pai celeste”. Também o profeta Malaquias, na primeira leitura, nos interpela: “Não temos todos nós um só Pai? Não foi o mesmo Deus que nos criou?”;
- “Nem vos deixeis tratar por ‘Doutores’, porque um só é o vosso doutor, o Messias”.
Esta é uma boa ocasião para nos imergirmos de novo nas águas do nosso batismo, nas águas da nossa regeneração como filhos, nas águas da fraternidade!
Podemos também perguntar-nos quem é o nosso mestre, o nosso pai, o nosso guia. É fácil escutar outros mestres em voga, em vez da voz do Espírito, o nosso Mestre interior. É fácil adoptar outras paternidades de cômodo, desautorizando a paternidade divina. É fácil deixar-se enganar por algum guru de turno que nos desvia da sabedoria de Cristo. Quem ocupa a cátedra do nosso coração? Não haverá aí intrusos?
Para a reflexão semanal
Façamos uma revisão do nosso “armário” para ver quantas máscaras usamos no nosso quotidiano. Experimentemos prestar mais atenção às máscaras que usamos com maior frequência. E lembremo-nos de que o nosso verdadeiro rosto, por mais marcado por rugas, defeitos e fraquezas, é sempre mais amável do que qualquer máscara!
P. Manuel João Pereira Correia
Novembro de 2023
Importantes recomendações aos cristãos de todos os tempos
Papa Francisco
Mateus 23,1-12
O Evangelho de hoje (cf. Mt 23, 1-12) ambienta-se nos últimos dias da vida de Jesus, em Jerusalém; dias cheios de expetativas e também de tensões. Por um lado Jesus dirige críticas severas aos escribas e aos fariseus, e por outro faz importantes recomendações aos cristãos de todos os tempos, e portanto também a nós.
Ele diz à multidão: «Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus. Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as». Isto significa que eles têm a autoridade para ensinar o que é conforme com a lei de Deus. Contudo, imediatamente a seguir, Jesus acrescenta: «mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem» (v. 2-3). Irmãos e irmãs, um defeito frequente em quantos têm uma autoridade, quer se trate de autoridade civil quer eclesiástica, é exigir dos outros coisas, mesmo justas, que contudo eles não praticam em primeira pessoa. Fazem vida dupla. Diz Jesus: «Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com seu dedo querem movê-los» (v. 4). Esta atitude é uma má prática da autoridade, que ao contrário deveria haurir a sua primeira força, precisamente do bom exemplo. A autoridade nasce do bom exemplo, para ajudar os outros a praticar o que é justo e necessário, apoiando-os nas provações que se encontram no caminho do bem. A autoridade é uma ajuda, mas se for exercida mal, torna-se opressiva, não deixa crescer as pessoas, causa um clima de desconfiança e de hostilidade e leva também à corrupção.
Jesus denuncia abertamente alguns comportamentos negativos dos escribas e de alguns fariseus: «E amam os primeiros lugares nas ceias e as primeiras cadeiras nas sinagogas, e as saudações nas praças» (vv. 6-7). Esta é uma tentação que corresponde à soberba humana e que nem sempre é fácil de vencer. Trata-se da atitude de viver só para a aparência.
Depois Jesus recomenda aos seus discípulos: «Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos […] Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo. O maior dentre vós será vosso servo» (vv. 8-11).
Nós, discípulos de Jesus, não devemos procurar títulos de honra, de autoridade ou de supremacia. E digo-vos que a mim pessoalmente me causa tanto sofrimento ver pessoas que vivem psicologicamente correndo atrás da vaidade das honorificências. Nós, discípulos de Jesus não devemos fazer isto, porque entre nós deve haver uma atitude simples e fraterna. Somos todos irmãos e não devemos de maneira alguma subjugar os outros e olhar para eles de cima para baixo. Não. Somos todos irmãos. Se recebemos qualidades do Pai celeste, devemos pô-las ao serviço dos irmãos, e não aproveitar delas para a nossa satisfação e interesse pessoal. Não nos devemos considerar superiores aos demais; a modéstia é essencial para uma existência que queira ser conforme com o ensinamento de Jesus, o qual é manso e humilde de coração e não veio para ser servido mas para servir.
A Virgem Maria, «humilde e alta mais que criatura» (Dante, Paraíso, XXXIII, 2), nos ajude, com a sua materna intercessão, a evitar o orgulho e a vaidade, e a ser mansos e dóceis ao amor que vem de Deus, para o serviço dos nossos irmãos e para a sua alegria, que será também a nossa.
Angelus 2017
QUERER SER PEQUENO
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos
É sempre assim, é sempre assim. Mas há páginas do Evangelho em que ouvi-las constitui uma responsabilização enorme das nossas vidas, porque não é em vão que escutamos esta Palavra e que a escutamos, hoje.
A grande pergunta silenciosa, que é uma espécie de fio condutor desta palavra, é: Como é que o testemunho que dou é um legado de vida? Como é aquilo que eu sou se torna um acendedor de esperança na vida do outro? Como é que eu me torno um facilitador do encontro com Deus na vida dos meus irmãos, em vez me tornar um obstáculo ou uma armadilha, coisas que também acontecem?
Como é que eu me torno uma ponte que liga em vez de me tornar um muro que divide e separa, que dispersa e afasta?
Como é que eu me torno pastor e partilho dessa condição da Igreja que Jesus Cristo lhe confiou, ser pastor de humanidade em vez de ser lobo uns para os outros, coisa que também acontece? Porque às vezes somos lobo uns para os outros, em vez de sermos pastores que levamos os outros por lugares seguros, por lugares verdadeiros.
Como é que isso acontece nas nossas vidas?
Jesus e o profeta Malaquias falam de situações concretas em que isso não acontece, e fazem o diagnóstico também da nossa vida. Um diagnóstico muito realista, muito concreto.
Porque, muitas vezes, isso efetivamente não acontece, e não acontece porque nós nos sobrepomos. Nós acreditamos mais no poder que no serviço.
Acreditamos mais na imposição de nós mesmos, do nosso eu, àquele milagre silencioso que pode acontecer na vida do outro quando deixamos a liberdade do Espírito acontecer. Quando nós queremos condicionar a realidade dos outros, ou quando apostamos tudo numa vida de fachada e ficamos descansados com isso, em vez de semear. Acreditar na tarefa humílima que é semear coisas. Coisas que nós não controlamos, que não sabemos como vão despertar. Mas quem semeia, semeia numa confiança cega, louca, apaixonada. Mas vai semeando. Às vezes acreditamos mais numa tarefa de controle do que nesta tarefa esperançosa de quem semeia, de quem dá, de quem reparte e não controla o que o outro vai fazer.
A palavra de Malaquias encontra um eco muito forte na palavra de Jesus que critica aquilo que vê e faz este tal diagnóstico: pessoas que querem o primeiro lugar, pessoas que disputam os privilégios, que disputam as honras.
E, no fundo, o que é que acontece num mundo assim? Acontece uma redução da vida, acontece uma diminuição da esperança. É um mundo e é uma vida que não é autêntica, não é marcada por uma autenticidade e, por isso, é oca, por isso é asfixiante, por isso é contraditória dentro de si.
E este diagnóstico que Jesus faz, muito geral, muito universal, muitas vezes é o diagnóstico da nossa própria vida. É por isso que andamos a correr, é por isso nos cansamos, é isso que construímos.
Ora, Jesus diz: não pode ser isso, não pode ser isso que nos anima. Não pode ser essa a nossa forma de estar, de ser, porque isso não é fecundo. E há um momento nas nossas vidas em que nos temos de perguntar se estamos apostados em construir relações fecundas, modos de vida, modos de existência fecunda ou, pelo contrário, se não estamos a esterilizar, a desvitalizar, a esvaziar as possibilidades de esperança, de futuro, de sonho, de Reino de Deus que a nossa vida pode vir a ter.
Paulo dá-nos um exemplo maravilhoso, naquela carta aos Tessalonicenses, que hoje nós lemos, de facto, uma parte muito preciosa, em que São Paulo diz : “Eu, no meio de vós, quis ser pequeno.”
Então, a primeira coisa é querermos ser pequenos, em vez de querermos ser mestres e doutores, e andarmos com grandes borlas e filactérios e saudações. Querer ser pequeno. Num caminho espiritual, o querer ser pequeno é a atitude fundamental, a primeira atitude.
Os monges diziam isto: como os pregos constroem um navio, juntam as madeiras dum navio, assim a humildade constrói um cristão.
E há três coisas que constroem um cristão: primeiro a humildade, segundo a humildade, terceiro a humildade. A humildade tem muito má imprensa, hoje em dia. E nós achamos que a humildade nos tira a afirmação justíssima, e legitima do nosso eu, das nossas ideias. A humildade não, não é nada disso.
A humildade é aceitar o nosso lugar. E é perceber que é fazendo–nos pequenos, que nós ganhamos a capacidade de uma compreensão mais profunda, e não entramos numa lógica de competição e de rankings nas relações uns com os outros, mas aceitamos ser pequenos para servir, para cuidar. E São Paulo diz, eu fiz-me pequeno no meio de vós.
E depois usa duas imagens. “Eu fui como uma mãe”, isto é, eu cuidei de vós, eu exerci esse cuidado fundamental, e essa é também uma dimensão importante a cultivar. Sermos pequenos mas exercermos o cuidado, em vez da reivindicação e da exigência, nós podermos cuidar uns dos outros e cuidar com verdadeiro afeto porque só cuida mesmo quem se envolve com afeto em relação àquele que cuida. E São Paulo diz esta frase tão forte: “Eu não quis apenas dar-vos o Evangelho de Deus, eu quis dar-vos a minha própria vida.” E as duas coisas estão ligadas. Uma coisa é dar teorias aos outros e outra coisa é desejar dar a nossa vida aos outros. Há uma diferença muito grande.
Por isso há aqui uma qualificação do nosso testemunho, que brilha só quando nós queremos dar a vida aos outros. Não querermos dar lições, não querermos dar moral, não querermos dar caminhos, dar dicas certas. Mas querermos dar até a nossa própria vida, empenharmos a nossa vida na relação com os outros. E isso muda tudo. Muda porque nos hipoteca aquilo que dizemos, porque estamos ali inteiros, porque a nossa vida também passa por ali. Nas coisas pequenas, nas coisas simples, no fazer de uma comunidade que é aquilo que Paulo está a dizer.
E depois, ele fala da imagem da mãe, da cuidadora, e fala da imagem do pai.
Que ao mesmo tempo dá o espaço, e vive no desapego. As nossas relações têm que ser marcadas também por um desapego fundamental, não querermos pesar sobre os outros, termos direitos sobre os outros – isso vale na família, vale na amizade, vale na multiplicidade de relações que nós temos – e ao mesmo tempo, uma influência por uma autoridade natural que nasce do estar, que nasce do conduzir, que nasce do guiar. Mas que nasce porque, na nossa simplicidade, representamos para o outro uma referência, representamos para o outro, um exemplo. Mas, digamos, sem vincar isso. Sem fazer com que o outro se sinta obrigado a nos tomar como exemplo. Na liberdade. Foi esse o testemunho de Paulo. Ele construiu assim a Igreja e é para nós um testemunho muito grande. Senão andamos iludidos que é isto ou aquilo que vai marcar, que não vai marcar. E depois nada marca. E a vida é estéril, e é um baralho de cartas que cai, e é um sopro. A vida é um sopro que se vai embora rapidamente se não construirmos uma coisa que seja eterna. Construamos coisas que não morram!
O que é que não morre? O que é que nós sentimos dentro de nós que não morreu?
Foi quando fomos verdadeiramente amados. Sem mais nada. Sem porquê. Quando fomos cuidados. Sem que tivessem ligado o taxímetro, ou nos apresentassem a fatura, que nos dessem as lições, sem querer dá-las, sem impô-las, sem gritá-las. Aconteceu, eu vi, eu percebi a verdade do outro, eu percebi o que ele estava a dizer, e esse é um exercício também de paternidade, também de pastoreio.
Queridos irmãs e irmãos, é uma responsabilidade ouvir a Palavra de Deus. Porque ela, como diz São Paulo, não é uma palavra humana, é verdadeiramente Palavra de Deus. Mas como é que esta palavra se torna Palavra de Deus e não mais uma entre tantas palavras que nós ouvimos? Torna-se Palavra de Deus porque toca o coração. Torna-se Palavra de Deus porque ilumina, porque resgata o nosso cansaço e nos faz acreditar. É palavra de Deus porque nos mobiliza, porque enche o nosso coração de paz quando a escutamos, mesmo que sintamos que a nossa tarefa é enorme e a nossa conversão é urgente e necessária.
Mas sentimos que há uma paz que nos está prometida nesta Palavra que Deus hoje traz ao nosso encontro.
http://www.capeladorato.org
A missão como experiência de fraternidade
Romeo Ballan
A tensão crescente entre escribas e fariseus aliados contra Jesus está a chegar ao ponto de ruptura, que culminará na paixão e morte do Messias. Dão provas disso os trechos do Evangelho de hoje e dos domingos anteriores, com as repetidas diatribes e as perguntas insidiosas para o fazer cair. Depois de múltiplas chamadas ao culto autêntico, à conversão do coração e dos costumes, Jesus (Evangelho) desmascara a hipocrisia dos escribas e dos fariseus «porque dizem e não fazem» (v. 3). Embora reconhecendo a sua autoridade («fazei e observai tudo o que vos disserem…»), Jesus denuncia a sua ambição de poder (atam fardos pesados e põem-nos aos ombros dos homens, v. 4) e põe em evidência a sua vaidade ao procurar os primeiros lugares, saudações e elogios (v. 5-7). Jesus ensina aos seus discípulos que a designação de Pai cabe somente ao Pai do céu, e que a designação de Mestre pertence somente a Cristo. Os únicos títulos honoríficos que se adequam aos discípulos são os de filho, irmão, servo: «vós sois todos irmãos» (v. 8); «o maior entre vós será vosso servo» (v. 11).
Só Deus é grande, nós somos todos filhos/filhas de um único Pai e Criador, como ensina hoje também o profeta Malaquias (I leitura): «Não temos todos nós um só Pai? Não foi o mesmo Deus que nos criou? Então porque somos desleais uns para com os outros?» (v. 10). Deus confia-nos uma responsabilidade sobre os irmãos (‘onde está Abel, teu irmão?’) e rejeita a perfídia de quem responde: «Sou porventura guarda do meu irmão?» (Gn 4,9). A verdadeira grandeza de uma pessoa consiste em reconhecer-se filho do Pai celeste, irmão/irmã de todos, servo de todos por amor. Recordo a convicção e a alegria interior de um companheiro de missão que costumava dizer: ‘Nunca me senti tão grande como quando me senti irmão’.
Quem faz a experiência de fraternidade sente uma responsabilidade missionária específica e tem um estilo peculiar de evangelização: sente a urgência de comunicar a outros a boa nova de Cristo, partilha os bens espirituais e materiais, valoriza a diversidade de dons que o Pai distribui a cada um, ajuda todos a superar barreiras, ideologias, divisões de raça, casta, classes sociais… Por isso, o Beato João Paulo II define o missionário como o irmão universal, sublinhando esta característica da espiritualidade missionária. Viver a fraternidade com todos é uma necessidade urgente em muitos territórios onde se desenvolvem actividades missionárias, dada a frequência de conflitos e a exigência de reconciliação. O Beato Carlos de Foucauld (1858-1916) é um exemplo de testemunho missionário vivido sob o signo da fraternidade universal. Decidiu viver os últimos anos no deserto argelino do Sahara, primeiro em Beni Abbès e depois em Tamanrasset com os Tuaregues do Hoggar. Uma vida de oração, meditação da Sagrada Escritura, adoração eucarística, acolhimento e escuta dos beduínos de passagem, no incessante desejo de ser, para cada pessoa, o irmão universal, imagem viva do Amor de Jesus. «Gostaria de ser bom para que se possa dizer: Se tal é o discípulo, como será o Mestre?» Quis apregoar o Evangelho com a sua vida. Na tarde de 1 de Dezembro de 1916 foi assassinado por um bando de salteadores de passagem.
Domingo passado, no Dia Mundial Missionário, recordámos que o anúncio do Evangelho constitui o principal e mais excelente serviço que a Igreja pode oferecer à humanidade. Os missionários são servos e portadores desta mensagem, que tem como destinatários todos os povos! São Paulo (II leitura) indica o estilo da missão: com humildade e a consciência de que a mensagem é maior do que nós, «como palavra de Deus, que é» (v. 13); com total dedicação e a ternura de uma mãe (v. 7-8); anunciando o Evangelho com alegria e liberdade de coração. Envolvendo todos a tomar parte activa na mais nobre aventura por Cristo. Com espírito de colaboração fraterna, como sugere também um provérbio africano do Burkina-Faso: «Se as formigas se unirem, conseguirão transportar um elefante». A empresa é exigente mas possível e imperiosa.