Deixa-se encontrar pelos que O invocam. Ainda melhor, Ele é que, com frequência, dá os primeiros passos em busca de operários que trabalhem em sua vinha. O salário a todos prometido será um salário justo, mas de uma justiça regida por sua bondade.

Queria extinguir o inferno e… incendiar o céu!

“Ide vós também para a vinha.”
Mateus 20,1-16

Iniciamos hoje um ciclo de três parábolas de Jesus sobre a vinha: a parábola dos trabalhadores contratados por um proprietário para trabalhar na sua vinha, neste domingo; a parábola dos dois filhos enviados a trabalhar na vinha, no próximo domingo; e, finalmente, a parábola dos vinhateiros assassinos, no domingo seguinte.

A vinha tem um significado profundo na Bíblia. Um pormenor da parábola de hoje chama imediatamente a minha atenção. Embora se diga que se trata da vinha de um proprietário, ele nunca diz “a minha vinha”, mas “a vinha”: “Ide vós também para a vinha” (apesar da tradução litúrgica acrescentar “minha”!). Que vinha é essa? É a vinha do Reino, a vinha de Deus. Mas também a vinha de Israel, o povo com o qual Deus estabeleceu a sua Aliança (Isaías 5,1-7; Jeremias 2,21; Ezequiel 15,4). Assim, este “ir para a vinha” não é tanto um convite para trabalhar na vinha, mas para entrar na Aliança, para partilhar o Amor de Deus.

1. Recordação nostálgica

A parábola de hoje não faz alusão ao tipo de trabalho a efetuar. Na vinha, há sempre trabalho a fazer, durante todo o ano. O contexto sazonal em que a ouvimos, a alusão ao calor e a preocupação do patrão em contratar o maior número possível de trabalhadores fazem-nos pensar na época da vindima.
Isto traz-me muitas recordações de infância. Venho da região vinícola do Porto. A vindima era a época mais esperada do ano, a da alegre colheita do fruto de um ano inteiro de trabalho à volta da vinha. Era também um tempo de intensa atividade, de preparação de cestos, de lavagem de lagares, cubas, pipas e toneis. Mas era, sobretudo, o período mais crítico, em que as condições atmosféricas e a maturação das uvas exigiam uma intervenção no momento oportuno para não comprometer a vindima. Compreende-se, portanto, a preocupação do proprietário da vinha em contratar o maior número possível de trabalhadores.

2. Uma bondade escandalosa

A parábola chama a atenção, em primeiro lugar, para o comportamento insólito do dono da vinha, que vai à praça cinco vezes para arranjar trabalhadores: às 6h, às 9h, ao meio-dia, às 15h e até às 17h, uma hora antes do fim do dia de trabalho! O cerne da história reside no contraste entre os trabalhadores contratados de madrugada e os da undécima hora, a quem o patrão paga o mesmo: um denário a cada um, o salário acordado com os primeiros. Mas o que se torna irritante e provocador no comportamento do patrão é o facto de ele fazer esperar os primeiros para presenciarem a sua generosidade para com os últimos. Isto, num primeiro momento, suscita as expectativas dos primeiros, que acreditam que ele é um patrão bom e generoso, para depois suscitar o seu protesto, julgando-o, pelo contrário, um patrão injusto. E mais intrigante ainda é a conclusão de Jesus: “Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”. Que parábola estranha!

3. Um golpe contra a meritocracia!

É quase certo que esta parábola, que só encontramos no evangelho de Mateus, tem como alvo um certo número de crentes da primeira hora, provenientes do judaísmo, que se consideravam superiores e com mais direitos do que os da última hora, os pagãos recém-convertidos. Esta situação na comunidade de Mateus não é, infelizmente, anacrónica. Ainda hoje há “supercristãos” assim. E ai de nós, padres, se por acaso os pusermos contra nós, pois podem ser dos mais empenhados da comunidade, os bons! De facto, nós mesmos podemos ser de esses tais. Explico-me.

Durante séculos, fomos educados numa espiritualidade de “meritocracia”! Multiplicar as boas obras para acumular méritos no céu, diante de Deus, de modo a ter uma bela recompensa no paraiso. Mas será que a salvação é realmente alcançada desta forma? Já a primeira leitura nos adverte: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, os vossos caminhos não são os meus caminhos”! A salvação será sempre um dom. Não é um direito adquirido por ter “suportado o peso do dia e do calor” (v. 12); um salário devido a quem faz determinadas obras. Assim, o chamado “bom ladrão” é o primeiro a entrar no Reino, e o filho mais velho da parábola do “filho pródigo” protesta – “justamente”! – por aquilo que considera uma descortesia do Pai, depois de o ter servido durante tantos anos.

Mas, se o mérito não tem direitos, porquê fazer muito esforço? Porque é que eu havia de entrar no seminário aos dez anos e tornar-me missionário? Não teria sido melhor casar e levar uma vida “normal” como toda a gente? É assim que raciocinam aqueles que concebem o Evangelho como um fardo, um esforço, um sacrifício e uma servidão, e não como um golpe de sorte que nos fez encontrar um tesouro no campo da nossa vida. Recordo-me daquele padre, no relato do jesuíta indiano Anthony de Mello (penso eu), que, vendo que Deus concedia o seu mesmo “prémio” ao irmão que tinha levado uma vida normal, se alegrou muito e disse a Deus: “Senhor, és tão bom que por ti estaria disposto a sacrificar a minha vida outra vez!

4. A vida cristã vivida como escravo, servo ou filho

A vida cristã pode ser vivida com três atitudes e comportamentos diferentes: a do escravo que teme o castigo, para quem Deus é um juiz; a do servo que trabalha por interesse, para quem Deus é um patrão; e a do filho que trabalha desinteressadamente, por amor, para quem Deus é um Pai. Na realidade, porém – e isto é que é estranho! – o Evangelho parece dirigir-se a estas três classes de pessoas com a sua própria linguagem e expectativas. Com efeito Jesus diz: “Aquele que disser [ao seu irmão]: estupido, será destinado ao fogo da geena” (Mateus 5,22). A Pedro, que lhe pergunta: “Eis que deixámos tudo e te seguimos; que teremos então?”, Jesus responde: “Sentar-vos-eis [comigo] em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel”. E àqueles que deixam tudo para o seguir, promete o “cêntuplo”. Jesus conclui dizendo: “Muitos dos primeiros serão os últimos, e muitos dos últimos serão os primeiros”, o que, por coincidência, enquadra o evangelho de hoje! (Mateus 19,27-30).

Embora saibamos que é uma forma de enfatizar o seu discurso, porque é que Jesus usa a linguagem de castigo da “geena” (7 vezes em Mateus)? Porque é que Jesus usa tanto a palavra “recompensa” (uma dúzia de vezes em Mateus)? É certo que, para Jesus, Deus é o “Pai” (mencionado cerca de quarenta vezes no evangelho de Mateus, incluindo “Meu Pai”, 16 vezes, e “Vosso Pai”, 14 vezes). O Pai quer filhos, não servos e muito menos escravos! E o objetivo da missão de Jesus é tornar-nos semelhantes ao Pai: “para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5,45). Deus gostaria que todos nós fôssemos filhos que o procuram por amor. Infelizmente, muitas vezes o que nos move é o medo ou o interesse próprio. E quem sabe se mesmo uma motivação imperfeita pode servir em certos momentos da vida! E Deus emprega-os porque não quer perder nenhum dos seus filhos!

Mas porque é que tantos de nós vivemos a nossa fé como “servos” ou mesmo como “escravos”? Eu compararia o nosso batismo a um enxerto do novo Adão na cepa do velho Adão. Esta enxertia deveria produzir doces cachos de amor. Acontece, porém, que brotam rebentos selvagens debaixo do enxerto, produzindo uvas verdes. Se esses rebentos selvagens não forem cortados, a videira enfraquece e definha. É por isso que o Dono da vinha se queixa: “enquanto eu esperava que ela produzisse uvas, produziu uvas amargas?” (Isaías 5,4).

Surpreendentemente, esta convicção de que Deus deve ser servido por amor, e não por interesse ou medo, aparece também noutros contextos religiosos. O testemunho de uma mística sufi muçulmana do século VIII, Rabia de Basra, é eloquente:
“Queria incendiar o paraíso e extinguir o inferno para que estes dois véus desaparecessem e os Seus servos O adorassem sem esperar recompensas e sem temer castigos”.
“Ó meu Deus! Se Te adorei por medo do inferno, queima-me no seu fogo. Se te adorei por esperança do céu, priva-me dele. Mas se te adorei só por ti, não me prives da contemplação do teu rosto”.

Para reflexão pessoal

– Que motivação prevalece na minha relação com Deus: o medo, o interesse ou o amor?
– Que responderia à provocação de alguém: “Se o céu não existisse, continuaria a acreditar em Deus?”
– Medita no belo testemunho de S. Paulo na segunda leitura de hoje: “Para mim, o viver é Cristo”.

P. Manuel João Pereira, Comboniano
Castel d’Azzano (Verona), Setembro de 2023

Mateus 20,1-16

Deus está perto

 Isaías 55,6-9; Sl. 144(145); Filipenses 1,20-24.27; Mateus 20,1-16 

O salário de Deus

Na semana passada, meditamos sobre o empregado perverso. Hoje, a Parábola dos operários da 11ª hora também nos fala da espantosa «injustiça de Deus». Em geral, de modo mais ou menos consciente, preferimos não levar muito a sério tudo isso.

Com efeito, somos entusiastas da justiça, sem levarmos em conta que, inevitavelmente, esta mesma justiça nos condena. No evangelho de hoje, a questão não é mais de empregados endividados.

Aqui, os operários são, de certo modo, até mesmo credores: é o patrão que lhes deve a retribuição por seu trabalho. E tudo também aqui se desenvolve tendo como fundo a justiça: o versículo 15 até mesmo faz alusão a um contrato concluído no momento da admissão.

De fato, se nos reportarmos ao conjunto do Novo Testamento, iremos compreender que o «salário» dado por Deus não é outro senão o próprio Deus, a sua vida, a participação em sua natureza divina (2 Pedro 1,4).

Os que, no versículo 10, «pensavam que iam receber mais» é porque imaginavam ser «mais que Deus» ou, se preferirmos, mais que a Aliança. Mas qual o trabalho a ser fornecido, para se receber o salário?

A confiança, que nada mais é que uma forma de dom e de abandono de si. Deus se dá e, em retorno, nós nos damos a Ele. Encontramos, pois, a equivalência desejada pela justiça, mas, para alcançá-la, foi preciso superar esta justiça e passar ao amor.

Os caminhos de Deus

Vossos caminhos não são como os meus caminhos“: são palavras da 1ª leitura, atribuídas a Deus. E o que nos querem dizer? Seria alguma reprimenda? Sim e não, como veremos. O evangelho atribui a Deus um comportamento que nada tem a ver com os nossos. E que, além disso, está em contradição com a prática da justiça.

Como tantas vezes lemos distraidamente as palavras de Cristo, deixamos de nos admirar com a enormidade de suas formulações. Aqui, nesta parábola, Jesus diz que Deus não é justo e que o “salário” que Ele nos dá não tem nada a ver com os nossos trabalhos nem com os nossos esforços.

Daí muitos irão se perguntar: por que então nos fatigarmos? Por que “fazer o bem“? Neste sentido é que devemos ler Romanos 6,1: “Que diremos? Que devemos permanecer no pecado a fim de que a graça se multiplique?” A graça, a gratuidade, o não justificado…

Entram todos em contradição com os nossos discursos sobre o “mérito“. Não merecemos nada, porque fomos postos no mundo sem que tivéssemos decidido.

Tudo o que fazemos de bem, tudo vem a nós desde a fonte que nos faz existir. E o amor que Deus despeja sobre nós, amor que é o próprio Deus, não encontra em nós a sua justificação, mas n’Ele.

O “salário” que recebemos não é uma resposta por algum trabalho fornecido, mas a manifestação da “bondade” do “patrão“, como diz o final da parábola. Mas vamos entender bem: as nossas sociedades não funcionam assim.

O salário dos que trabalham é um débito. A quem é devido? Aos que trabalham, é claro, mas, através deles, devido ao próprio Deus.

Deus é quem, neles e por eles, está de fato em trabalho, em operação, ao nosso favor. Em João 5,17, Jesus irá dizer: “Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho.” Nada de sábado para Deus, ainda, enquanto, finalmente, a humanidade não estiver reunida no amor, o que fará dela a imagem de Deus.

Fazer-nos imagens de Deus

Estas reflexões conduzem-nos a reconhecer que nada existe de “profano” em nossas vidas. Não existe isso: de um lado, o “material” e, de outro, o “espiritual”. Deus está em todas as coisas e em todas as atividades.

Não existe ausência de Deus! Então, logo nos vem à mente que o nosso mundo está cheio de injustiças, violências, maldades e sofrimentos. Estará Deus presente e ativo em tudo isso de negativo?

Sim, mas não enquanto causa se assim podemos dizer, mas enquanto vítima. É a Ele que incessantemente crucificamos quando rebaixamos outros homens e mulheres, submetendo-os, explorando-os, julgando-os.

Deus é ferido cada vez que ferimos um homem, uma mulher, uma criança. Ele, em Cristo, quis desposar o destino de todas as nossas vítimas. Mas para renascer a uma vida nova, na qual somos todos integrados.

Todos nós, culpados ou não, inativos ou laboriosos, recebemos a “moeda de prata” que não representa uma quantidade, mas a plenitude. A parábola insiste em que os últimos contratados são os primeiros a receber o seu salário.

E Jesus conclui generalizando: não é mais questão de salário, mas em tudo os primeiros serão os últimos e inversamente. Compreendamos que a prioridade é dada aos que são sem-direitos.

Os relatos bíblicos estão cheios de exemplos desta escolha do último menor. Pensemos em Jacó suplantando Esaú, em José distanciando-se dos seus irmãos, em Davi sendo o preferido, ao invés de seus irmãos mais velhos…

Deus cria o valor onde ele não existe. Os teólogos sempre têm falado da criação a partir do nada. O direito erige-se aí, onde reina o não direito. Eis o que nos pode reconfortar quando tomamos consciência das nossas insuficiências.

Concluamos: esta gratuidade do dom de Deus, longe de nos instalar em nossas mediocridades, convida-nos a imitar a Deus em nossas relações com os outros. Seremos então verdadeiramente “como deuses“.

Os pensamentos do homem perverso

O que comanda os pensamentos dos que protestam contra a identidade dos salários é a inveja (versículo 15). Como sabemos, a inveja é o contrário do louvor: equivale a entristecer-se por um bem que se vê no outro, enquanto o louvor consiste em alegrar-se com isto.

Este é um tema que é das maiores questões da Escritura. A inveja é uma das molas fundamentais da história humana, tal como ela se desenvolve, e por isso exatamente é que a Bíblia dá início a esta história pelo assassinato de Abel por Caim, o drama da inveja.

E isto continuará com a rivalidade entre Jacó e Esaú, entre José e seus irmãos, entre Saul e Davi. Estes conflitos resultarão na hostilidade recíproca entre o judeu e o pagão, de que Paulo, em Romanos 11, anuncia a superação, ou a conversão.

Se não é convertida, a inveja conduz inevitavelmente ao assassinato. Em 27,18, Mateus escreverá que foi por inveja que Jesus foi crucificado. Mas a inveja é uma consequência: ela nasce da desconfiança.

Gênesis 3 nos fala da confusão entre o bem e o mal: Aquele que é bom por excelência é tido como mentiroso e, precisamente, invejoso da sua condição divina, não se podendo assim confiar nele.

Em nosso evangelho, o olho do homem torna-se mau porque Deus é bom (versículo 15). Estaríamos nós com inveja da bondade de Deus? Sim, quando ela se exerce para com os outros.

Deus é, então, acusado de injustiça (versículo 12). Temos de aprender que, acima da justiça, há o amor.

O amor justifica

Pagar ao injusto o salário do justo, considerar o nosso devedor perdoado de sua dívida, aí está a justificação. No entanto, «justificar» pode ter dois sentidos.

Primeiro, é evidente que o amor justifica a quem se ama. Amar põe-nos de fato em perfeito acordo com Deus, que é amor. Mas o que significa amar senão justificar a pessoa sobre quem recai este amor? E o que significa «justificar»?

Primeiro, claro, é perdoar. Mas vai além: muitas pessoas, e provavelmente todas, em certo grau, sofrem mais ou menos conscientemente por não encontrarem razão, justificação, para a sua existência.

Temos necessidade de ser perdoados por existirmos e por sermos tão somente operários da 11ª hora. Somente o amor que nos deseja, que deseja que existamos, este amor de Deus que, passando por cada um de nós, se dirige aos outros, pode nos justificar por estarmos aqui.

Por isso Deus põe diante de nossos olhos, afixa de alguma forma, a Cruz de Cristo. Somente olhando para este a quem trespassamos é que podemos receber a revelação de «qual a largura e o comprimento e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo o conhecimento» (Efésios 3,18-19).

Em razão deste amor, que vai até o fim, é que somos justificados por existir. Cabe a nós fazer nossa esta justiça justificante de Deus, justiça que passa pela incomensurável injustiça da Cruz. Injustiça que é toda nossa, mas que dela Deus se utiliza, para nos justificar.

A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015).
A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.

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