Quinta-feira, 2 de Fevereiro de 2023
As Leigas e Leigos Missionários Combonianos (LMC) do Brasil iniciaram o ano de 2023 com a organização do encontro presencial do Itinerário formativo LMC que se realizou entre os dias 15 a 23 de Janeiro, no Piquiá em Açailândia/MA. Nesta região, encontra-se uma das presenças mais antigas e com continuidade dos LMC e é uma referência para o trabalho como Família Comboniana na Causa da Justiça e Paz e Integridade da Criação (JPIC).
Participaram deste momento bonito de formação, partilha, visitas: Leonel de Curitiba/PR, Dhenny de Balsas/MA, Diana de Fortaleza/CE e Tranqüillo de Serra/ES.
Este período de convivência tem por objetivo ser um momento especial no processo de discernimento que já entra em seu segundo ano, em vista do chamado LMC para servir ao Reino. Oportunidade de aprofundar sobre a Vocação como chamado de Deus, a opção e o estilo de vida e missão. Nestes dias se privilegiou a temática do Ensino Social da Igreja com foco na JPIC – Justiça, Paz e Integridade da Criação com formações teóricas e as visitas realizadas em diversas iniciativas existentes na região.
Momento importante de fazer uma releitura da vida e da fé e como batizados, redescobrir a dimensão da missionariedade. “Sou batizado? Então devo ser missionário senão não sou cristão!” (Pedro Casaldáliga).
Sobre os trilhos do amor e da amizade nosso trem percorre a vida
Foram dias de aprendizado, de convivência e de aconchego. Nosso itinerário, assim como uma viagem de trem, nos leva a conhecer lugares, apreciar paisagens e desfrutar do convívio daqueles que comungam da mesma fé e percorrem o mesmo caminho.
Vindos dos quatro cantos, reunidos na pequena e deslumbrante Piquiá, quatro pessoas (Diana, Dhenny, Leonel e Tranqüillo) que buscam conhecer e se conhecer, aprender e ensinar, vivenciar e sonhar, juntos para mais um passo em direção à estação Leigos Missionários Combonianos (LMC). Não será esta a estação final, mas sim, a primeira, aquela que irá nos permitir seguir por trilhas e trilhos ainda mais distantes.
Na mochila, somente o necessário: a Palavra de Deus, umas poucas roupas, muitas dúvidas e medos, alguns trocados e uma enorme vontade de viver tudo isso. Contamos apenas com a nossa espiritualidade e com pessoas dedicadas e abdicadas: Cristina, Marcelo, Adriana, Alexander, Padre Carlos, João Carlos, Dida, Padre Joseph, Flávio, Liliana e Padre Silvério. Pessoas que já percorreram por estes caminhos das mais variadas formas e meios. Pessoas que abriram estradas e assentaram trilhos.
Nosso trem partiu e pelo caminho foi recebendo gente. Gente divertida, gente sofrida. Pessoas que muito nos ensinaram, não apenas com suas palavras, mas com suas ações, suas atitudes e com suas vidas. Acreditar que somos agentes transformadores. Que transformamos duras realidades de exploração, enganação e morte, em um reino de vida, partilha e fé.
Por trás das grades, somos capazes de reconhecer aquela gente que é indesejada, maltratada e excluída da vida. Gente que é capaz de sorrir e voltar a viver, basta para isso que um jovem se sinta incomodado com o sofrimento alheio, junte o saber com o querer, e se coloque ao serviço na fronteira da reclusão. Marcelo, obrigado por nos ensinar que a teimosia nos faz remover grades e muros em nossas vidas e na vida de muitos outros.
Descemos do trem para ir de encontro ao povo do Piquiá. Visitamos, andamos por ruas quentes e empoeiradas. Mas não andamos só. Contamos com a companhia e a alegria do servir do Sr José Albino, Sr Celso, Dona Margarida e tantas outras pessoas que se juntam para celebrar a fé e compartilhar a vida. E lá fomos nós. No meio do povo. Do sol que ilumina o caminho e deixa marca em nossa pele. Somos marcados pelas palavras e pelos sorrisos recebidos. Por olhos que não enxergam, por mãos que não afagam, por pessoas acamadas e mal tratadas, mas resilientes e fortes. Pessoas de fé.
Por estes trilhos da vida, nos é exigido fazer escolhas. Diante de uma realidade temos a estrada da esquerda e o caminho da direita. Nossa resposta sempre será o sim. Tomaremos sempre a decisão pela estrada que nos leva ao Reino de Deus e dos pobres. Alexander é um desses poucos que teve a coragem e a disposição de dizer o Sim da vocação. Vocação de se colocar no meio dos pobres, servir aos mais necessitados e ajudar aos invisíveis sociais. Alexander nos ensina, com o seu português espanholado, a aprender duras lições de despojamento, sair do cômodo lugar em que nascemos e fomos forjados. Com suas dúvidas e questionamentos, sua vontade de logo fazer, Alex (como o chamamos) embarca em nosso trem e percorre conosco toda essa trilha.
O perfume toma conta de todo o nosso trem. São elas que chegam para nos pegar pelas mãos e nos guiar, como maquinistas deste trem. São elas que sorriem para nós, como gesto de toda a sua acolhida. São elas que nos alimentam e brindam. Sim. Todas mulheres. Alegres, marcadas pelos anos de vida e de luta, bonitas e sorridentes. Jovens e experientes. Cabelos curtos, longos e grisalhos. As mulheres que passaram por nós nesta viagem, mostraram que são capazes de abraçar e lutar. Enfrentar grandes dragões e afagar nossas cabeças quando nós nos voltamos para os pés. Eunice é uma dessas mulheres. A primeira a nos receber na casa dos padres. Sempre atenciosa e acolhedora. Ela marca o nosso primeiro contato com as mulheres daquele lugar. Também Dina e Maynara estiveram em nosso vagão durante todo este itinerário. Foram elas que prepararam o nosso caminho, organizando e limpando a casa dos LMCs. Foram elas que nos receberam, nos ensinaram sobre as coisas daquele lugar. São elas as continuadoras das lutas e festas daquele povo tão acolhedor. De repente, estávamos todos juntos. As meninas correm entre nós numa brincadeira de se aproximar, as moças que arregalam os seus olhares diante dos desconhecidos se mostram curiosas com estes que chegam de longe, as mulheres que abrem os braços e os corações para nos receber e as senhoras, as líderes que já fizeram, que fazem e que, se preciso for, serão capazes de fazer tudo novamente.
O saber é algo que só cresce quando dividimos. E foi assim em nossas manhãs, bebericando um café ou um caneco de suco, muitos sucos, que compartilhamos o saber com o Marcelo, Padre Carlos, João Carlos, Valdênia, Renato, Yonná, Morgana e Padre Joseph. E tudo termina com o um gosto de querer mais, de ficar naquela estação por mais algumas horas, dias, vidas. O aprender é algo único e contagiante. Quem aprende passa a conviver com a vontade de ensinar, de transmitir, de compartilhar o que recebeu. Mas tem também o ensinar sem palavras. Com gestos, conversas, mas, principalmente com atitudes. Padre Silvério é um desses. Que olha para os menores, para os pequenos, com brilho no olhar, histórias para contar e toda uma vida para dedicar.
Chegamos na estação mais alta, a estação “Piquiá da Conquista”. Quando avistei ao longe, escondida entre palmeiras de açaí, mangueiras e pés de babaçu, aquelas casinhas brancas, todas bem organizadas, me veio a mente uma história distante de um lugar conhecido como Terra Prometida. Foi na conversa com Dona Tida, nas instalações do restaurante Sabor da Conquista, que tomamos conhecimento sobre a história e a conquista que se fazia ali, diante de nós, presente na vida do povo do Piquiá de Baixo. Assim como a Terra Prometida, esta história tem o seu Moisés. Um dos líderes da comunidade que marcou presença em todos os momentos e lutas deste povo. Mas foi no dia que o primeiro tijolo foi assentado, no dia que o Piquiá da Conquista foi avistado, que o Sr. Edvar faleceu por complicações respiratórias. Sim. Ele foi mais um dos que faleceram em virtude da poluição trazida pelas siderúrgicas para o Piquiá de Baixo. Dona Tida (Francisca), assim como Josué, conduz o povo pelo Rio Piquiá, promove reuniões, discute, escuta e organiza o povo. São 312 casas. Serão 312 famílias contempladas com um novo local para viver, longe dos dragões, mas não distante de suas labaredas e fumaças.
Talvez você pergunte pelo porquê desta viagem. Talvez estes não sejam os seus trilhos. Talvez nada disso faça sentido para você. Mas uma coisa eu posso lhe assegurar, você tem um jeito que é só seu. Mas eu conheci um homem, de aparência frágil, de olhar intenso, de vida bem vivida. Para resumir este homem, Dona Tida nos revelou um segredo que só as pessoas experientes e capazes de ouvir o sussurrar de Deus são capazes de nos dizer. Ela nos perguntou: Vocês conhecem aquele homem que tem o jeito de Deus? Nossos olhares se cruzaram como quem pergunta: ainda não conhecemos o jeito de Deus e como reconheceremos tal pessoa. Ela então nos questiona: vocês conhecem o Padre Dário? Nossos olhares se abrem e todos confirmam: Sim, conhecemos o Padre Dário. Cada um com sua história sobre este que tem o “jeito de Deus”.
E o trem segue. Subindo e descendo por estes trilhos. Paramos diante da estação de baixo. Do Piquiá de Baixo. Terra de gente sofrida, esquecida e maltratada. Terra de exploração, de confusão e ressurreição. Os dragões descritos no livro do apocalipse estão por lá. São cinco. Um deles com 12 cabeças que cospem fogo e ferro formando um rio de sangue, que começa no norte e que desagua no sudeste. Onde a morte se faz presente, lutar pela vida não é uma escolha, é uma obrigação. A obrigação não é lutar por sua própria vida, mas colocar-se na luta pela vida dos mais pobres, dos mais frágeis, dos menores em nossa sociedade.
Somos surpreendidos por um outro trem que passa ao lado do nosso e nos acompanha por alguns bons momentos. Com sua máquina forte, seus vagões bem estruturados e rodas capazes de cruzar as fronteiras do país, este trem tem nome e sobrenome: Justiça nos Trilhos. Justiça é uma dessas palavras que permitem muitos significados e significantes. Mas que precisa vir acompanhada de luta, dedicação e sabedoria. Esta justiça não é como muitas que nos deparamos por aí, esta tem um forte propósito: o “nos”. Não para lá ou para cá. É “nos”. É onde precisa se fazer presente. É onde ela precisa realmente estar: trilhos. Por onde podemos ir e vir. Caminho certo e seguro. Mas este sobrenome é determinante, ele vai por onde a justiça é aclamada e se faz necessária. São estes trilhos que norteiam, que direcionam, que conduzem, o trabalho dedicado de todos aqueles e aquelas que se colocam no trem da vida.
Foram muitas as estações que nos ajudaram a conhecer mais daquele pedaço de chão e de sonho. Chão de gente que trabalha, que faz e insiste. Sonho sonhado por aqueles que sentem o arder do chamado missionário, sonho de muitos e chamado de todos. Conhecemos a escola que é família, que é rural, mas que o asfalto da cidade nos conduz. Família com muitos pais e mães. Plantando o saber, regando com dúvidas e colhendo vidas. Jovens estudantes que possuem sede de saber, que se desligam da família para viverem ligados no aprender. Educadores que não são professores. São além. Se é que temos uma palavra que represente aquele que ensina, que se dedica, que supera os limites, que se coloca de corpo e alma na arte de ensinar, que não mede esforços e não conta recursos. Estes são os missionários da educação ou educadores na missão.
De longe já deslumbramos a próxima estação. Cheia de gente acolhedora. São aqueles que formam as comunidades: do Rosário e de Santa Luzia. São mulheres, homens e crianças. São idosos, acamados e descalços. São todos que nos fazem aprender sobre a vida e o viver. É uma conversa rápida, um sorriso largo, mas sempre, um gesto de carinho que os acompanha sempre.
Foi nesta estação que partilhamos o alimento, tomamos suco, muito suco, dividimos nossas angústias e dúvidas. Foi ali, naquele pedacinho de Brasil, que nos encontramos para aprender, uns com os outros, com aqueles e aquelas que nos acolheram e com todos mais que se juntaram a nós nesta viagem, sob os trilhos da humildade e do amor incondicional.
Tranqüillo Dias
Leigos Missionários Combonianos