A Palavra de Deus deve traduzir-se em compromisso para sermos também nós sal da terra e luz do mundo. E a única maneira de sê-lo verdadeiramente não é, em primeiro lugar, indo à igreja no domingo, mas estando na rua, todos os dias, ali onde vivem as pessoas, ali onde a dignidade humana é ameaçada, ali onde reina a injustiça, ali onde mulheres e homens são rejeitados, ridicularizados e excluídos por causa da sua situação de vida, da sua orientação sexual, da sua nacionalidade, da sua origem, da sua cultura, etc. por aquelas e aqueles que acreditam ser os detentores da verdade sobre Deus e o mundo.
SAL QUE ENLOUQUECEU OU LUZ DEBAIXO DO ALQUEIRE?
Mateus 5, 13-16
Vós sois o sal da terra. Vós sois a luz do mundo!
De surpresa em surpresa!
No domingo passado, o Senhor surpreendeu-nos a todos com o preâmbulo das Bem-aventuranças, virando do avesso os nossos parâmetros de felicidade. As surpresas, no entanto, não terminam aí. Hoje o Senhor volta-se directamente para nós, seus discípulos, e surpreende-nos de novo. Jesus revela-nos a nossa identidade mais profunda, a nossa verdade mais autêntica: "Vós sois o sal da terra". Vós sois a luz do mundo"! Dirige-se ao pequeno grupo dos seus discípulos: "Vós!" e usa o verbo no presente "Vós sois," não no futuro. Eles já o são, o sal e a luz! Não é tanto uma exortação ou um imperativo para se tornarem algo que ainda não são, mas uma verdadeira investidura. Jesus afirma ainda que eles são "o" sal, "a" luz. Não há outro sal, não há outra luz!
Para compreender a carga provocadora de uma tal afirmação, basta pensar que os rabinos costumavam dizer: 'A Torá - a Lei dada por Deus ao seu povo - é como sal e o mundo não pode viver sem sal'! E diziam também: "Como o azeite traz luz ao mundo, assim Israel é a luz do mundo" e "Jerusalém é luz para as nações da terra".
O que Jesus está a dizer é algo paradoxal: o pequeno grupo insignificante dos seus discípulos, que não contam para nada social e religiosamente, são comparáveis às instituições sagradas de Israel ou mesmo as ultrapassam!
Vós sois o sal da terra!
Todos nós podemos compreender a força desta comparação. O sal dá sabor aos alimentos, torna-os saborosos! Sem sal não há sabor, não há prazer em comer. Portanto, o discípulo de Jesus traz sabor à terra, gosto ao convívio humano, sentido para a vida. O sal está também ligado à inteligência. O discípulo de Jesus é portador de um conhecimento, uma sabedoria, uma nova sabedoria (ver Paulo na segunda leitura, 1 Coríntios 2,1-5)!
O sal foi também utilizado para evitar a decomposição dos alimentos. O discípulo de Jesus é então um antídoto para a corrupção da sociedade. Deste atributo do sal resultou também o costume de salpicar sal nos documentos como sinal da sua perpetuidade. Um "pacto de sal" era definitivo, não podia ser quebrado. A aliança de Deus foi também chamada aliança de sal ou salgada, para dizer que era eterna.
Em que sentido está Jesus a pensar quando nos diz: "tu és o sal da terra"? O mais provável a todo este simbolismo.
O sal enlouqueceu!
"Mas se o sal perder o seu sabor, com que será salgado? Por nada mais do que para ser deitado fora e pisado pelas pessoas". Parece-nos um pouco estranho que o sal possa perder as suas propriedades. Na verdade, a tradução literal desta expressão é "se o sal ficar louco". O discípulo que "enlouquece", que perde a sua identidade, e já não dá sabor e sabedoria à terra, não tem qualquer utilidade e merece o desprezo do povo.
Vós sois a luz do mundo!
Na Bíblia, a luz é uma das realidades mais carregadas de simbolismo. Aparece no início, como a primeira obra criada por Deus (Génesis 1: 3), e encontra-se no fim: "Não haverá mais noite, e não haverá mais necessidade de lamparinas ou luz solar, porque o Senhor Deus lhes dará luz" (Apocalipse 22: 5). No Evangelho de João, Jesus diz "Eu sou a luz do mundo" (João 8,12), e na sua primeira carta, João declara: "Deus é luz, e nele não há trevas" (1 João 1,5). E São Paulo chama aos cristãos "filhos da luz".
Ser para os outros
O sal e a luz têm um elemento em comum. Ambos estão em função de "outros", fundem-se com a realidade, o sal dissolve-se nos alimentos, torna-se invisível, e a luz dispersa-se nos objectos que ilumina. Assim, o cristão não vive para si próprio, mas para dar sabor aos outros, para tornar a sociedade em que vive saborosa, e, como a luz, para iluminar a realidade que o rodeia. Uma presença discreta, que não chama a atenção para si própria, mas promove o bem dos outros. O cristão não é um espectador ou uma pessoa à parte, mas está totalmente imerso na realidade do mundo e da história. Tantos cristãos não podem fazer ouvir a sua voz ou expressar a sua identidade cristã, mas onde há um discípulo de Cristo, o Amor está a fermentar a massa do mundo! Grande é a responsabilidade do cristão, não há 'produto' que o possa substituir!
Sal ou luz?
O sal e a luz, no entanto, têm modos de presença distintos. Enquanto o sal desaparece, a luz torna-se visível. É o discernimento que nos dirá, de tempos a tempos e de acordo com as circunstâncias, se devemos agir como sal ou como luz.
Alegria e entusiasmo? Crise e confusão? Escândalo e vergonha?
Qual é a nossa reacção perante esta surpreendente revelação de Jesus, da nossa profunda identidade de ser o sal da terra e a luz do mundo? O mais imediato e espontâneo deve ser a alegria e o entusiasmo de nos vermos tão associados à vida e à missão de Jesus! No entanto, o peso e a responsabilidade de uma vocação tão elevada podem intimidar-nos, com razão. Quem pode sentir-se à altura de uma tal tarefa? No entanto, Jesus acredita em nós, confia em nós, apesar das nossas limitações e fraquezas. E ele não nos deixa sós.
Mas o que sentiríamos, se Jesus nos declarasse o sal da terra e a luz do mundo perante os não-crentes, hoje, na nossa sociedade ocidental? Quase de certeza, muita vergonha! Podemos muito bem dizer com o salmista: "a vergonha cobre-me o rosto" (Salmo 44). Como poderia tal comparação ser feita diante de uma igreja humilhada por escândalos, refreada por um clericalismo que transformou o serviço em poder, dividida pelos extremismos? Uma igreja que se tornou, de certa forma, um campo de batalha, dilacerado por lutas internas? Uma igreja que perdeu vitalidade e relevância, que avança por inércia, que corre o risco de implosão?
Como pode ser credível uma igreja que perdeu o sal da profecia e do testemunho evangélico? Como pode sobreviver uma igreja que escondeu a luz debaixo do alqueire do oportunismo e da autorreferencialidade, em vez de a colocar no candelabro da Cruz? Uma igreja onde alguns saem do barco para repetir a aventura de Pedro, para enfrentarem sozinhos as ondas da tempestade?
Terá esta nossa igreja a oportunidade de renascer e, pequena que seja, de se tornar o sal desta terra e a luz do nosso mundo? Sim, a história bimilenária da igreja diz-nos isso! Sim, a esperança assegura-nos! Um pequeno rebento é suficiente para fazer nascer o tronco de Jessé (Isaías 11:1). Os apóstolos diante de Jesus no Monte das Beatitudes eram apenas... quatro: Pedro e André, Tiago e João! Deus não está à procura de multidões, mas um homem, uma mulher, irá Ele encontrá-los? (Ezequiel 22:30). Ele procura-te, Ele procura-me! Sejamos suficientemente corajosos para darmos um passo em frente e dizermos: Aqui estou eu, conta comigo! (Isaías 6, 8).
P. Manuel João, mccj, a Castel d'Azzano
Mateus 5,13-16
Nós, cristãos, somos sal e luz
A Palavra de Deus deve traduzir-se em compromisso para sermos também nós sal da terra e luz do mundo. E a única maneira de sê-lo verdadeiramente não é, em primeiro lugar, indo à igreja no domingo, mas estando na rua, todos os dias, ali onde vivem as pessoas, ali onde a dignidade humana é ameaçada, ali onde reina a injustiça, ali onde mulheres e homens são rejeitados, ridicularizados e excluídos por causa da sua situação de vida, da sua orientação sexual, da sua nacionalidade, da sua origem, da sua cultura, etc. por aquelas e aqueles que acreditam ser os detentores da verdade sobre Deus e o mundo. Celebrar a eucaristia decorre disso.
A reflexão é de Raymond Gravel. A tradução é de André Langer.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Is 58,7-10
Evangelho: Mt 5,13-16
O evangelho de hoje vem imediatamente depois do relato das Bem-aventuranças. Isto quer dizer que aquelas e aqueles que fazem das Bem-aventuranças o programa da sua vida, são chamados a uma responsabilidade real e atual, ou seja, eles não vão se tornar sal da terra e luz do mundo, no futuro, mas devem sê-los aqui e agora para aqueles que não têm este programa…
1. Uma responsabilidade plena
O evangelho não diz que Cristo é a luz do mundo e que temos que refletir esta luz. O evangelho diz: “Vocês são a luz do mundo” (Mt 5,14). Ou seja, nós temos a mesma responsabilidade e a mesma dignidade que o Cristo ressuscitado. E o mesmo vale para o sal: “Vocês são o sal da terra” (Mt 5,13). Nós temos, portanto, toda a responsabilidade de dar o sabor de Deus e de Cristo aos outros.
2. Uma responsabilidade individual e coletiva
A responsabilidade não é somente individual; ela é também coletiva: ela se endereça aos primeiros cristãos, à Igreja do primeiro século e, através dela, à Igreja de hoje. Devemos precisar que esse discurso de Jesus que chamamos de Sermão da Montanha, reúne diversos ensinamentos de Jesus que são relidos à luz da Páscoa.
3. O sal e a luz
Os dois símbolos utilizados – sal e luz – são ainda hoje muito significativos. O sal é, ao mesmo tempo, condimento e meio para conservar os alimentos (especialmente os peixes na Palestina). O sal é, portanto, o símbolo do que é precioso e também do que permanece. Da palavra sal vem a palavra salário, isto é, o sal que era dado aos soldados como forma de pagamento. Havia também uma expressão antiga: “comer sal com alguém” – o que significava fazer um pacto de amizade com essa pessoa. O pacto de sal era indissolúvel, de sorte que nem o próprio Deus podia desfazê-lo.
No Templo de Jerusalém utilizava-se muito o sal; havia ali inclusive um armazém de sal. Os animais sacrificados eram salgados e o incenso perfumado continha sal. Os recém-nascidos eram esfregados com sal para significar a sabedoria e a pureza moral que se desejava à criança. Antigamente, nos batizados católicos, colocava-se sal na língua das crianças para significar a sua pureza e sua pertença ao Deus da Aliança. Esta prática foi abandonada pela Igreja por motivos de higiene.
Utilizado por Mateus, o sal, que são os discípulos, dá o gosto ao Reino que eles anunciam, no Espírito das Bem-aventuranças, de sorte que se eles perderem de vista sua missão de anunciar o Reino, o sal perde seu sabor; ele não serve para mais nada e as pessoas o pisoteiam (Mt 5,13).
O símbolo da luz é ainda mais rico do que o do sal: a luz ilumina, aquece, guia, agrega, tranquiliza, reconforta. Utilizado por Mateus, o símbolo da luz do mundo nos remete à vocação de Jerusalém, a cidade luz, lugar situado sobre a montanha para atrair todos os povos para Deus e para a vocação de Israel luz das nações. Portanto, a imagem se aplica não ao indivíduo cristão, mas à comunidade cristã definida pelas Bem-aventuranças.
Então, o que é esta luz que são os discípulos? “As boas obras que vocês fazem” (Mt 5,16), isto é, as boas ações, as boas obras que se traduzem no compromisso com os pobres, os excluídos, os abandonados, a fim de que a justiça seja restaurada. Isso me remete ao profeta Isaías, na primeira leitura de hoje (Is 58,7-10): estamos no tempo do retorno do Exílio, no século VI a.C., e constatamos os estragos da deportação; o templo está destruído, e era lá que eram feitas as liturgias para comemorar a deportação, onde se jejuava, fazia penitência, rezava a Deus, oferecia sacrifícios e mortificações… Mas Deus não escuta; parece surdo aos apelos. A coisa vai de mal a pior…
É então que o profeta que chamamos de Terceiro Isaías intervém para dizer aos crentes que a única maneira de restabelecer a justiça não é pela oração passiva, nem pelo jejum ou pelas mortificações, mas pelo compromisso com os mais fracos, os mais pobres e com a dura das feridas: “Repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente” (Is 58,7). É então, diz o profeta, que “a sua luz brilhará como a aurora, suas feridas vão sarar rapidamente, a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória de Javé virá acompanhando você” (Is 58,8). No fundo, o que o profeta Isaías diz é o seguinte: o verdadeiro culto que Deus ouve e que muda qualquer coisa na dura realidade da existência não é a celebração no templo; é o compromisso social…
4. Atualização
O texto do profeta Isaías e o evangelho de Mateus devem ser atualizados, caso queiramos que se tornem Palavra de Deus. Devem traduzir-se em compromisso para sermos também nós sal da terra e luz do mundo. E a única maneira de sê-lo verdadeiramente não é indo à igreja no domingo, mas estando na rua, todos os dias, ali onde vivem as pessoas, ali onde a dignidade humana é ameaçada, ali onde reina a injustiça, ali onde mulheres e homens são rejeitados, ridicularizados e excluídos por causa da sua situação de vida, da sua orientação sexual, da sua nacionalidade, da sua origem, da sua cultura, etc. por aquelas e aqueles que acreditam ser os detentores da verdade sobre Deus e o mundo. Eles desvirtuam o sal que devem ser tirando o sabor de Deus para as pessoas que eles encontram e escondem a luz debaixo do alqueire das suas certezas e da sua negação da liberdade dos outros.
O célebre teólogo protestante Karl Barth escreveu: “O cristão é um homem feliz”. E por que esta alegria inebriante? Simplesmente, porque nós nos dirigimos para a terra de Deus, independentemente das peripécias do caminho… E acrescenta: “Mesmo se a estrada é difícil e cruel, mesmo se o sofrimento já lhe não permite mais rir ou sorrir, resta-lhe a lembrança do que vai ser e a pequena filha Esperança se põe a brincar”. É porque ser sal da terra é testemunhar alegremente a nossa esperança no Reino em construção e em devir. Ser luz do mundo é engajar-se no restabelecimento da justiça, no Espírito das Bem-aventuranças e na prática cotidiana do grande mandamento do AMOR que liberta e salva. Depois disso podemos ir à igreja no domingo para celebrar com os outros o nosso compromisso.
O sal que perde seu gosto é a recusa de testemunhar, e a lâmpada debaixo do alqueire é a recusa de se comprometer com o caminho da liberdade; é a recusa de dar os pés e as mãos ao grande mandamento do Amor… E isso não tem nada a ver com a prática religiosa na igreja… Esta é importante, certamente, mas secundária em relação ao testemunho e ao engajamento.
Terminando, gostaria simplesmente de citar o Papa Francisco que convida os cristãos para o compromisso: “Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas , curar as feridas… E é necessário começar de baixo”.
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