Diante da leitura do relato de São João, de hoje, devemos reconhecer que a presença de Jesus Cristo hoje, não pode ser estática e congelada numa hóstia exposta para adoração; sua presença é bem ativa e atuante através dos cristãos que o encontraram e que se tornam sacramento, isto é, sinais da sua presença no mundo. A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 2º Domingo do Tempo Comum – Ciclo A do Ano Litúrgico. A tradução é de André Langer.
Cordeiros ou leões?
João 1,29-34
Segundo Domingo do Tempo Comum (A): João 1:29-34. Eis o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do mundo!
1. As epifanias continuam.
Após a epifania de 6 de Janeiro e o Baptismo do Senhor, este domingo continua sob o signo das revelações sobre Jesus. Porque a Jesus, nós não O conhecemos! De facto, alguns versículos antes, João dizia-nos: "no meio de vós está alguém que não conheceis" (João 1,26). E ele próprio, hoje, confessa duas vezes: "Eu não o conhecia". Infelizmente, nós pensamos saber tudo sobre ele! E o grande risco é que não conheçamos Jesus de todo. Ou talvez o nosso conhecimento da sua pessoa seja estático, parado desde há anos, talvez a partir de uma fase da nossa iniciação cristã. Como se se pudesse usar o vestido da primeira comunhão ou confirmação para sempre.
De epifania em epifania. A vida cristã é uma viagem de crescimento que dura toda a vida, é uma caminhar de epifania em epifania! Ai de nós se pararmos! Parar pode significar só duas coisas: abandonar a fé ou vivê-la sem impulso, sem alegria, uma fé com um cheiro a mofo ou a naftalina. Por vezes podemos ter a impressão de que estamos a caminhar, mas não nos apercebemos de que estamos a caminhar à volta de nós mesmos, em círculos, dia após dia, mês após mês, ano após ano.
Domingo para Retomar a sequela. É por isso que este domingo, no início do tempo litúrgico ordinário, em continuidade com o anterior, é um convite a seguir Jesus, a tornar-se seus discípulos e frequentadores: "No dia seguinte João ainda estava lá com dois dos seus discípulos e, fixando os olhos em Jesus ao passar, disse: "Eis o Cordeiro de Deus! E os seus dois discípulos, ouvindo-o falar assim, seguiram Jesus" (João 1,35-37).
2. A nova epifania: Eis o Cordeiro de Deus!
Podemos ter a sensação de que o evangelho de hoje é, de alguma forma, uma repetição do evangelho do Domingo passado, do Baptismo de Jesus. É, em vez disso, o seu desenvolvimento. Hoje João revela algo sem precedentes que nem ele nem nós conhecíamos. O Baptista aponta para Jesus como "o Cordeiro de Deus". O que significa esta expressão?
A palavra cordeiro ocorre frequentemente na Bíblia. Encontramo-lo cerca de 150 vezes no Antigo Testamento e cerca de 40 vezes no Novo Testamento (na versão italiana da Bíblia editada pela CEI, edição de 2008). O cordeiro está quase sempre associado ao sacrifício. É o animal considerado puro, inocente, manso e, portanto, o preferido para o sacrifício oferecido a Deus. No NT aparece quase exclusivamente em João, no Evangelho (3 vezes) e especialmente no Apocalipse (35 vezes), e quase sempre se refere ao sacrifício de Cristo.
A declaração de João "Eis o Cordeiro de Deus" evoca sem dúvida na mente dos seus ouvintes o cordeiro pascal; ou o cordeiro que era sacrificado todos os dias, de manhã e à noite, no Templo em Jerusalém. Mas a riqueza deste título vai muito além disso. Há também uma alusão ao misterioso 'Servo de Javé' (que encontramos na primeira leitura), especialmente porque em aramaico, a língua do Baptista, a palavra, 'talya', significa tanto 'servo' como 'cordeiro'. Mas também pode evocar o sacrifício de Isaac (Génesis 22,1-18) ou do profeta Jeremias (11,19).
"Eis o cordeiro de Deus" representa uma imagem revolucionária de Deus, que não pede sacrifícios, mas sacrifica a si mesmo. O Papa Francisco chama-lhe "a revolução da ternura".
3. O Cordeiro Imolado e o Leão de Judá.
Este título messiânico é desenvolvido no livro do Apocalipse, onde o protagonista é precisamente o Cordeiro, nomeado 34 vezes. "Um Cordeiro, de pé, como que imolado; tinha sete chifres (símbolo de poder) e sete olhos (omnisciência)" (Apocalipse 5:6). "Um Cordeiro como se estivesse imolado", ou seja, com os sinais, os estigmas da sua paixão.
Mas o Cordeiro, antes de entrar em cena, é apresentado como o leão de Judá: "Um dos anciãos disse-me: 'Não chores; o leão da tribo de Judá, o rebento de David, venceu, e ele abrirá o livro e os seus sete selos'" (Apocalipse 5:5). Como que para enfatizar as dimensões de mansidão e força, representadas por estes dois animais.
Estas são também as duas dimensões da vida cristã e do testemunho: por um lado, a mansidão, a doçura, a fragilidade e a resiliência do cordeiro; por outro, a força, heroísmo, nobreza e coragem do leão. Combinar os dois nem sempre é fácil. Infelizmente, muitas vezes quando deveríamos ser mansos comportamo-nos como leões, dominadores e agressivos; e quando deveríamos ser leões comportamo-nos como cordeiros, temerosos e cobardes!
4. Eis, eu estou aqui!
Concluirei mencionando brevemente o aspecto da vocação para testemunhar que emerge fortemente das leituras: "Farei de vós a luz das nações, para que possais levar a minha salvação até aos confins da terra", diz o Senhor ao seu Servo (Isaías 49,6). Paulo apresenta-se à comunidade de Corinto como alguém que foi "chamado a ser apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus". E João, a testemunha, declara solenemente: "E eu vi e testemunhei que este é o Filho de Deus".
E nós? Creio que ao "Eis o Cordeiro de Deus" devemos responder como o Salmista: "Eis-me, Senhor, venho para fazer a Tua vontade"!
Como cristãos, somos chamados a viver e a proclamar a Palavra. "Não podemos ficar calados sobre o que vimos e ouvimos" (Actos 4:20). Aqui está, então, o meu desejo para este Ano Novo para vós e para mim: uma terrível dor de barriga como a que sentiu o profeta Jeremias! "As minhas entranhas, as minhas entranhas! Estou destroçado. O meu coração está a rebentar no meu peito, está a bater forte; não posso mais ficar calado"! (Jeremias 4,19).
P. Manuel João, missionário comboniano, Castel d'Azzano, 12 de Janeiro de 2023
O batismo cristão,
um batismo de compromisso…
João 1,29-34
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Is 49,3.5-6; Segunda leitura: 1 Cor 1,1-3; Evangelho: Jo 1,29-34
Após o relato do Batismo do Senhor do Evangelho de Mateus, agora vem o de João. Ao contrário de outros relatos de batismo, em que é Jesus que se vê investido pelo Espírito, aqui em João é João Batista quem vê, e vendo, testemunha a identidade daquele que foi até ele: “Este é o Filho de Deus” (Jo 1,34). Mas este relato é profundamente teológico e devemos ter isto presente para compreendê-lo corretamente, para interpretá-lo corretamente e para melhor atualizá-lo; o que não faz André Beauchamp em Prions en Église desta semana, nas páginas 31-32. Caso ignorarmos a teologia do evangelista João, podemos correr o risco de passar à margem da sua mensagem. São João serve-se do acontecimento do batismo de Jesus feito por João Batista e que é contado pelos outros evangelistas: batismo de água e de conversão, para anunciar um batismo novo, dado, desta vez, pelo Cristo ressuscitado: batismo do Espírito, do Pentecostes, do engajamento cristão na Igreja de Cristo. Mas por que este relato?
1. João tem sua maneira de fazer as coisas. Ele escreve seu evangelho depois dos outros, e assim como eles, após a ressurreição do Senhor, e ele projeta, de uma maneira mais que evidente, sobre a vida de Jesus, a luz deste depois. Para compreendê-lo corretamente, devemos observar dois traços particulares:
Na época do evangelista João (final do 1º século, começo do segundo), ainda existe uma comunidade batista, concorrente do cristianismo, fiel ao Batista morto. É por isso que o evangelista João não diz claramente que João Batista batizou Jesus, para não colocar Cristo em situação de inferioridade em relação ao Batista.
O evangelista João não estava preocupado com o que o Batista pensava sobre Jesus. Na verdade, ele coloca nos seus lábios o que todo cristão deve crer e ao qual deverão se unir os batistas. Veremos um pouco mais adiante que alguns discípulos batistas seguirão Jesus (Jo 1,35-51).
2. Para os seus discípulos, o Batista designa Jesus, primeiramente, como o Cordeiro de Deus, uma expressão carregada de lembranças bíblicas e lendárias: podemos pensar aqui no cordeiro pascal que redime o povo eleito da escravidão do Egito. Também, nas lendas judaicas, o Moisés que o Faraó, horrorizado, viu em sonho, como um cordeiro sobre o prato de uma balança, é aqui, Jesus, o novo Moisés, aplastando com seu peso as forças do mal. Na Bíblia, encontramos também o cordeiro que Deus reservou, desde a criação, para ser sacrificado no lugar de Isaac (Gn 22,13). Finalmente, em aramaico, a palavra talya significa, ao mesmo tempo, servo, como na primeira leitura de hoje (Is 49,3.5-6), e cordeiro levado ao matadouro, segundo o quarto Cântico do Servo (Is 53,7). É evidente que João Batista não pôde designar Jesus como Cordeiro de Deus; é o evangelista João que o faz dizer isso.
3. Além disso, o próprio Batista confessa sua fé cristã: como homem, Jesus veio atrás de João Batista, isto é, como seu discípulo: “Este é daquele de quem eu falei: ‘Depois de mim vem um homem…’” (Jo 1,30a). Mas na realidade, ele estava na sua frente: “‘(Este homem) que passou na minha frente, porque existia antes de mim’” (Jo 1,30b). Para compreender corretamente este existia, devemos reler o prólogo de São João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1), e a afirmação de Jesus: “Antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8,58). O Eu Sou é o nome que Deus se dá a si mesmo, para Moisés, na revelação do Sinai (Ex 3,14-16).
Mais uma vez, é o evangelista João que coloca na boca do Batista esta confissão de fé cristã; de sorte que o evangelista precisará, por duas vezes, que o Batista não conheceu Jesus: “Eu também não o conhecia. Mas vim batizar com água, a fim de que ele se manifeste a Israel” (Jo 1,31) (é o batismo da água e da conversão); “Eu também não o conhecia. Aquele que me enviou para batizar com água, foi ele quem me disse: ‘Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e pousar, esse é quem batiza com o Espírito Santo’” (Jo 1,33) (é o batismo no Espírito Santo: a Confirmação).
N.B. Alguns exegetas se perguntam como João Batista pôde dizer que não conheceu Jesus, uma vez que ele era, segundo Lucas, seu primo. A exegese nos mostra, pois, que, no evangelho de Lucas, o parentesco de Batista e de Jesus é teológico, assim como o desconhecimento de um e de outro é também teológico, no Evangelho de João.
4. João Batista torna-se, portanto, a testemunha do Cristo ressuscitado: “E João testemunhou: ‘Eu vi o Espírito descer do céu, como uma pomba, e pousar sobre ele” (Jo 1,32). Para o evangelista João, o verbo pousar expressa a presença de Deus, permanente e inalienável. Por esta manifestação do Espírito, trata-se do Messias anunciado pelos profetas, como o homem dotado da plenitude do Espírito (Is 11,2; 61,1). Se o evangelista João faz do Batista a testemunha do Ressuscitado, é para dizer aos batistas da sua época, que também eles deveriam reconhecer o Cristo como Filho de Deus e que também eles devem receber o batismo do Espírito. Para isso, eles têm o testemunho de João Batista e devem encontrar pessoalmente o Cristo através da Igreja, ou seja, através dos seus discípulos que vivem por ele e para ele.
Isso é muito exigente para os cristãos; eles têm a responsabilidade de manifestar o Cristo aos outros, e a única maneira de fazê-lo é saber-se transformados e santificados pelo Cristo: “Vocês que foram santificados em Jesus Cristo e chamados a ser santos, juntamente com todos os que invocam em todo lugar o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso” (1 Cor 1,2). Esse vocês de São Paulo não é reservado aos ministros ordenados da Igreja; designa todas e todos aqueles que pertencem a Jesus Cristo pelo Batismo e pela Confirmação. É através delas e deles que os outros podem encontrar pessoalmente Jesus Cristo ressuscitado, aquele que veio de Deus e que voltou para ele, entranhando-nos numa comunhão íntima com o Pai. O batismo cristão não é, portanto, somente um batismo de conversão: um batismo de água, mas também um batismo de compromisso: um batismo no Espírito Santo.
A Palavra de Deus, hoje, convida-nos a lançar um olhar sobre Deus, sobre Jesus Cristo e sobre nós mesmos, a fim de testemunhar a nossa fé, a nossa esperança e o amor que nos habita e que nos faz viver. O nosso olhar sobre Deus e sobre o Cristo ressuscitado deve refletir em nós mesmos a luz do amor e da fé que vê lá onde os outros não veem nada: isso se traduz pela esperança: “Sim, serei glorificado aos olhos do Senhor; Deus é a minha força” (Is 49,5).
Segue uma bela história contada por um missionário leigo, Raoul Follereau, que ilustra bem o poder de um olhar de amor: “Num leprosário do fim do mundo, um único doente havia mantido seus olhos claros e a força de sorrir diante da vida. Como explicar esse fenômeno? A religiosa que cuidava dos leprosos, percebeu que um olhar sorridente de uma mulher aparecia todos os dias na janela desse leproso doente. Era sua esposa que vinha todos os dias expressar-lhe sua ternura e seu amor. O leproso disse à religiosa: Quando eu a vejo, eu sei que estou vivo”. Maravilha de olhar que faz viver, luz do Amor e da fé que vê lá onde outros não veem nada. Assim como para o profeta Isaías, esse doente era glorificado aos olhos de sua mulher; ela era sua força e sua razão de viver.
Concluindo, diante da leitura desse relato de São João, devemos reconhecer que a presença de Jesus Cristo hoje, não pode ser estática e congelada numa hóstia exposta para adoração; sua presença é bem ativa e atuante através dos cristãos que o encontraram e que se tornam sacramento, isto é, sinais da sua presença no mundo.
Raymond Gravel
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