A história de Zaqueu revela um Deus que ama todos os seus filhos sem exceção e que nem sequer exclui do seu amor os marginalizados, os "impuros", os pecadores públicos: pelo contrário, é por esses que Deus manifesta uma especial predileção. Além disso, o amor de Deus não é condicional: Ele ama, apesar do pecado; e é precisamente esse amor nunca desmentido que, uma vez experimentado, provoca a conversão e o regresso do filho pecador. É esta Boa Nova de um Deus "com coração" que somos convidados a anunciar, com palavras e gestos.
Lucas 19,1-10
Jesus como Aquele que procura
Queridos irmãs e irmãos,
Este Evangelho, a paragem de Jesus em Jericó e o encontro com Zaqueu, queria dizer três coisas. A primeira: que olhássemos um bocadinho para aquilo que aconteceu naquele dia em Jericó. A segunda: como é que este episódio nos ajuda a compreender melhor Jesus. E a terceira: como é que a pedagogia, o método, de Jesus nos desafia hoje?
O que é que aconteceu em Jericó? Às vezes, como acontece nos filmes ou nos livros que lemos, há um episódio que acontece primeiro, que parece até uma coisa inocente, sem história. Mas, quando aproximamos a lente, percebemos os problemas mais profundos, aquilo que é necessário iluminar e resgatar e que muitas vezes não é aquilo que aparece à superfície.
No princípio é uma coisa quase anedótica e dá vontade de rir: um homem muito baixinho que está atrapalhado e quer ver o profeta de que falam na sua cidade de Jericó, e então sobe acima de uma árvore, de um sicómoro, para ver Jesus. Há quase um lado cómico nesta situação.
Depois, quando a história se adensa, nós percebemos as coisas de outra maneira. Percebemos, por exemplo, que ele sobe a uma árvore. Porquê? Porque é que ele sobe a uma árvore? Porque Ele tem de ver Jesus ao longe, porque ele não se pode misturar com a multidão. E não se pode misturar com a multidão porque é um pecador. É um homem rico mas é um homem que enriqueceu pela corrupção. Porque ele infringiu a lei de tantas formas e prejudicou o seu irmão. Por um lado isso pesa-lhe, e ele tem também o estatuto de pecador público. E, por isso, ele tem de ficar à margem, tem de ficar na fronteira. Ele sobe àquela árvore, não é apenas por ser de baixa estatura, mas também por ser pecador.
Mas, há nele uma coisa espantosa que o narrador de S. Lucas nos diz e que parece ao mesmo tempo uma coisa simples e depois nós percebemos que é muito mais forte. Ele diz:” Zaqueu procurava ver quem era Jesus.” E nós perguntamos: o que é que Zaqueu queria exatamente? Ele queria ver a pessoa como nós às vezes, passa alguém conhecido e queremos ver? Que desejo ele trazia no seu coração em relação a Jesus? Ou ele queria mergulhar mais profundamente, ou ele queria encontrar, ou ele queria compreender, ou ele queria verificar com os seus olhos, sentir com os seus sentimentos quem era verdadeiramente Jesus?
Eram duas estradas paralelas que não se encontravam: a história de Zaqueu e a história daquele cortejo onde vinha Jesus. Mas o que é fantástico é que Jesus provoca um ponto de interceção. Quando passa por baixo do sicómoro, olha para cima, e é a grande surpresa: Jesus chama aquele homem pelo nome e diz: “Zaqueu! Desce depressa porque eu hoje preciso de ficar em tua casa.” Ele desceu e recebeu Jesus com muita alegria.
Este texto é uma narração da surpresa. Ele queria ver quem era Jesus mas não se considerava digno, Jesus era sempre para ser visto ao longe. E Jesus, não só se faz perto, não só chama pelo nome dele mas diz: “Eu preciso, eu tenho necessidade de ficar hoje em tua casa, eu preciso da tua hospitalidade.” Para Zaqueu foi a surpresa das surpresas, achar-se necessário à ação do próprio Jesus. Ele recebeu Jesus com alegria. Uma vez em casa, ele está de pé, ele sente que recebeu um bónus de amor, um excesso de amor. E reage também de uma forma transformada, excessiva, diz: “Senhor, eu vou mudar completamente a minha vida, e àqueles que prejudiquei eu vou tentar reparar o mal que fiz.” E Jesus diz uma coisa extraordinária: “Hoje a salvação entrou nesta casa.”
Nós sentimos na história que a salvação entra numa vida improvável. É uma história nada óbvia aquela que acontece. Por outro lado, há ainda a reação da multidão que diz: “Mas como é que é possível? Entre tanta hospedagem que ele podia pedir foi logo hospedar-se em casa de um pecador.” A multidão que não entende como é que Jesus infringe, derruba aquelas fronteiras do pecado, do que é justo, do que não é justo. Como é que Ele tem aquela liberdade e, podendo ter escolhido a casa de um homem de bem, foi escolher a casa daquele que todos conheciam como um pecador? É um pouco isto que acontece.
Como é que isto nos dá a ver Jesus? Dá-nos a ver Jesus como Aquele que procura. É muito interessante o remate final desta narração em que Jesus diz: “O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.” E se de facto alguma coisa define Jesus é Ele ser alguém que vai ao encontro, alguém que procura. Há uma ou duas vezes em que Jesus Se deixa tocar pelos outros. Mas normalmente é Ele que vai ao encontro, é Ele que toma a iniciativa de buscar. Ele está sempre à procura daquilo que se julga perdido. Isto é, Jesus é um inconformista, é um inconformado. Ele não aceita, não se conforma com o mundo como estava estabelecido. Ele não se acomoda às fronteiras, ao bem e ao mal, ao bonito e ao feio, ao que se deve fazer, ao que não se deve fazer, à moral de uma época. Jesus aparece com uma liberdade que é escandalosa, que é extravagante. Sem dúvida, uma das razões porque Jesus foi eliminado foi exatamente essa: Ele não conhecia muros, não conhecia fronteiras. Tanto estava em casa de um fariseu que era impecável, um homem de bem, como estava em casa do maior pecador, como atendia uma viúva pobre, como se deixava tocar por uma mulher prostituta.
Essa liberdade Dele sem dúvida que é escandalosa, mas ao mesmo tempo é a chave para entender Jesus. Nós não entenderemos Jesus sem entendermos, sem nos avizinharmos da Sua liberdade. Ele veio à procura de todos, à procura de todos. E veio, como Ele diz, “procurar e salvar o que estava perdido”. Para Jesus não há o irremediável, não há o incurável, não há o irreversível. Jesus reabre as possibilidades da vida de cada um, a história volta ao ponto zero, volta ao seu início, é sempre possível começar, é sempre possível recomeçar.
É nesta liberdade que Jesus nos mostra Deus, que Jesus Se torna o interprete de Deus, que Jesus nos dá a ver o rosto de Deus. Quando pensamos em Deus temos de pensar naquele maravilhoso texto do livro da Sabedoria. Deus ama a vida, Deus ama a vida e não desiste dela. Pelo contrário, investe nela o Seu poder restaurador, o Seu poder transformador. Deus resgata a vida continuamente e coloca-a no centro como o bem mais precioso. É isso que Jesus em cada situação dá a ver, indo ao encontro dos últimos, indo ao encontro dos desesperados, indo ao encontro dos que não têm esperança, indo ao encontro dos que estão mais longe.
Jesus não aceitou apenas os que estão perto. Quando nós lemos o Evangelho, a grande surpresa é que Jesus começa por escolher os discípulos e pensamos que a aventura deste Homem vai ser a relação Dele com os discípulos. E depois nós percebemos que não é. Ele encontra os discípulos para os formar numa relação cada vez mais aberta. Os discípulos são testemunhas dos encontros de Jesus com todos, com todos. Ele não está ali apenas com o Seu grupo dos discípulos a formá-los, a consolidá-los, a dizer: “vós sois o meu rebanho.” Pelo contrário, Ele está sempre a mandá-los sair, está sempre a desconcertá-los, está sempre a ensinar-lhes uma liberdade que eles não têm e à qual eles têm medo.mPor isso, este episódio dá-nos a ver Jesus.
E o método de Jesus qual é que é? O método de Jesus é amar primeiro, é confiar primeiro. Jesus não diz a Zaqueu: “Olha, eu até estou disposto a ir a tua casa se tu fizeres isto (um caderno de encargos prévio), isto e isto, então eu entrarei em tua casa.” É exatamente o contrário, Jesus diz: “Eu preciso de ficar em tua casa.“ É porque Ele oferece o Seu amor de uma forma incondicional que há um estremecimento, que a vida, que a lógica de Zaqueu desaba. Ele também se descose e torna-se uma pessoa nova. Houve ali um investimento de confiança incondicional.
O que nos salva não é uma negociação, o que nos salva é um excesso de amor, é uma dádiva, é uma oferta, é alguma coisa que vai para lá de todas as medidas. É isso que nos salva. É o assombro do amor que nos salva. Não é a negociação, o acordo, o pacto, a coisa que puxa para aqui, que puxa para ali. Isso é para os negócios. Mas isso não salva um homem, isso não põe de pé um pecador, isso não traz um filho de volta, isso não é o sinal da misericórdia. A misericórdia é um excesso, é um exagero. Mas é isto, é isto.
No fundo, há sempre o código antropológico que é assim: se cada um de nós não assentar a sua vida numa experiência incondicional de amor, a nossa vida fraquejará sempre, fraquejará sempre. Porque o alicerce de toda a existência, o alicerce de uma vida que arrisca, de uma vida que confia, de uma vida que é, é ela ter recebido do pai, da mãe, um amor incondicional. Mas ter recebido de Deus um amor incondicional e ter consciência que Deus o ama, a ama desta forma, então, a pessoa floresce. No meio da rocha nasce uma flor, no meio do deserto nasce um rio, no meio do desespero nasce um sorriso, no meio do sofrimento nasce uma palavra transformadora. Porque há este investimento de amor.
Queridos irmãs e irmãos, nós estamos a um mês do final do Ano Santo da Misericórdia e a história de Zaqueu confronta-nos com o estilo de Jesus, com o método de Jesus, com a pedagogia de Jesus. E se tivéssemos de resumir numa palavra a pedagogia de Jesus essa palavra podia ser misericórdia. O que é que nós temos feito da misericórdia? Como é que nós a temos usado? Como é que nós a temos vivido? Como é que nós temos acreditado na misericórdia? Porque a lógica de Jesus é esta: procurar e salvar o que está perdido. Muitas vezes, nós criamos barreiras para os outros em vez de criar pontes. Criamos barreiras, somos indiferentes. O Papa Francisco fala desse novo paganismo que é o zapping da indiferença. Nós estamos sempre a mudar de canal. A nossa indiferença acaba por ser uma barreira. Nós não escutamos o desejo do coração dos outros. Aquele homem tinha no seu coração o desejo de ver Jesus e Jesus soube acolher o desejo daquele coração. Uma vida toda desarrumada, toda errada mas Jesus não veio para julgar, Jesus veio para salvar que é uma coisa diferente.
Às vezes nós sentimos que a nossa missão é julgar. A nossa missão não é julgar, a nossa missão é abraçar, a nossa missão é curar feridas, a nossa missão é salvar a vida perdida, a nossa missão é dizer: “Deus ama esta vida, Deus ama a tua vida que é preciosa.” Não é julgar, não é julgar.
“Eu vim procurar e salvar o que está perdido.” Queridos irmãs e irmãos, nós somos hoje mandatados por Jesus para levar esta palavra no nosso coração e fazer com ela um caminho. E abrir-nos a uma história, a uma prática, a um modo, a uma arte de ser, a uma arte de nos relacionarmos uns com os outros, a uma arte de abraçarmos a vida difícil. Porque há tantos nós, há tantas coisas difíceis na vida de cada um de nós por reparar, por restaurar, por iluminar, por salvar com a misericórdia e com o amor. Nós precisamos disso, de aprender o estilo de Jesus para fazer desse estilo o nosso estilo, a nossa prática, o nosso modo de viver.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXI do Tempo Comum
José Tolentino Mendonça
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