Sábado, 5 de Março de 2022
Passei a minha infância ouvindo histórias de guerra que, graças a Deus, não conheci pessoalmente e não vivi na minha pele. Meu avô foi obrigado a participar daquela fracassada campanha fascista de conquista da Abissínia (Etiópia) de 1935 a 1936... Meu pai foi arrolado na marinha italiana e viveu 4 anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) embarcado num navio contratorpedeiro...
A PAZ É A GENTE QUE FAZ
Passei a minha infância ouvindo histórias de guerra que, graças a Deus, não conheci pessoalmente e não vivi na minha pele. Meu avô foi obrigado a participar daquela fracassada campanha fascista de conquista da Abissínia (Etiópia) de 1935 a 1936. Amava falar daquele pedaço de África e, sobretudo, se enchia de orgulho quando, de volta para casa, levou uma tapa na cara porque se recusou a tirar o chapéu durante a passagem do estandarte do fascismo. Meu pai foi arrolado na marinha italiana e viveu 4 anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) embarcado num navio contratorpedeiro. Ele não gostava muito de lembrar daqueles tempos. Sonegava os fatos mais dramáticos e contava as histórias mais engraçadas que aconteciam a bordo, como forma de exorcizar aquela dramática experiência.
Minha mãe tinha 8 anos quando o segundo conflito mundial começou. Junto com minha avó falava da comida racionada, das enormes filas para conseguir um pedaço de pão, dos saques aos trens em busca de alimentos, das sirenes que anunciavam os bombardeios, das fugas rumo aos abrigos para não sucumbir sob as bombas que choviam do céu, dos ataques da resistência, das colunas de soldados nazistas e das execuções sumárias de civis inocentes em praça pública para vingar a morte de seus companheiros. Elas faziam questão de contar todos os detalhes sem esconder o terror vivido naqueles terríveis momentos. Quando alguém de nós se queixava da falta de alguma coisa, elas sempre faziam comparação com a miséria vivenciada durante os tempos de guerra.
Eu, meus irmãos e meus primos ficávamos ouvindo aquelas histórias que reproduzíamos em nossas brincadeiras. Não brincávamos de polícia e ladrão, mas de nazista e “partigiano”, nome dado a quem corajosamente enfrentou o nazifascismo e ajudou a Itália e reencontrar a democracia. Naturalmente todo mundo queria ser “partigiano”. E, como não bastassem aqueles testemunhos, de 1969 a 1975, isto é, entre os meus 7 e 12 anos de vida, todo dia tive que conviver com a guerra do Vietnam. O conflito acontecia a milhares de quilômetros de distância, mas os noticiários, ainda em branco e preto, traziam a guerra em nossa casa, obrigando-nos a assistir àquelas imagens terrificantes. Lembro que nem o dia de Natal era poupado. Dificilmente se conseguia uma trégua. Sentado à mesa para o almoço natalino, nossa alegria de estar juntos e celebrar o nascimento do Senhor da vida e da paz, destoava com as cenas de destruição e morte provocadas pelas bombas e o gás napalm dos senhores da guerra.
Sempre me considerei um sortudo por não ter nunca sentido na pele uma experiência tão dura como a guerra, mas, através das narrações das testemunhas, ainda dava para ver e tocar as feridas que essa tragédia deixa na vida das pessoas a distância de muitos anos. A guerra é a maior loucura da humanidade. Como dizia Pablo Neruda, “Só um louco pode desejar guerras. A guerra destrói a própria lógica da existência humana”. Achava que, depois das dramáticas experiências dos dois conflitos mundiais, o mundo ia fazer de tudo para evitar a guerra. Mas não tem sido assim. Como diz o papa Francisco, há uma terceira guerra mundial acontecendo ao redor do mundo em fragmentos. Em vários lugares do planeta, sobretudo, na periferia do mundo, nos territórios mais pobres, à margem da macropolítica e da grande economia, acontecem conflitos armados que parecem de pequenas proporções, mas que provocam destruição e massacres mais terríveis daqueles executados durante a segunda guerra mundial. Os donos destes conflitos são os poderosos que medem força o tempo todo às custas dos outros, atiçados pelos mercantes de armas em busca de novos mercados para escoar a mortal produção.
Os missionários e missionárias que operam na África e que compartilham com o povo a experiência destas guerras fratricidas, além de testemunhar o rastro de morte, denunciam que as armas utilizadas são todas “made in...” países do primeiro mundo, inclusive aqueles que parecem estar em primeira linha na negociação da paz. O já citado poeta chileno, vencedor do Nobel de Literatura em 1971, já alertava a respeito disso alguns anos atrás: “As guerras são feitas por pessoas que se matam sem se conhecerem... por interesses de outras pessoas que se conhecem, mas que não se matam”. Inocentes se eliminam entre eles sem nem saber por que e sem ter encrencas entre eles, às vezes são até porções do mesmo povo lacerado por ódio alheio, jogados em “coliseus” montados pelos mundo afora enquanto os “imperadores” dos tempos modernos, se divertem assistindo de camarote às carnificinas por eles promovidas.
Ontem o mundo acordou com o barulho de mais uma guerra. Depois de dias de tensa e dramática expetativa, Putin, o ‘terrível” Czar da Rússia, decidiu invadir a Ucrânia desprezando todos os apelos à paz que lhe chegaram de todo canto do planeta. O mundo que ainda tem dificuldades para sair do medo da pandemia, mergulha no terror da guerra. É o paradoxo da insanidade humana. A humanidade uniu suas forças para salvar vidas das garras do Corona vírus, para afundar num suicídio coletivo cometido por própria mão humana. Não acredito em solução que parta dos poderosos. Acho ridículo quando se convoca o Conselho de Segurança da ONU assim como funciona atualmente. Não tem as mínimas condições de adotar medidas em favor da paz porque a Rússia, juntamente com Estados Unidos, China, França e Inglaterra, tem direito de veto. Isso não tem sentido. No Conselho de Segurança tem países que, mesmo tendo direito de falar, não podem decidir, pois há potências que podem travar as decisões. É como se disséssemos às crianças que tem o direito de falar, mas que sua palavra não vale nada, pois a última decisão é dos adultos. Além do mais, a história mudou muito rapidamente nas últimas décadas. Pode até ser que estes países com direito a veto tenham contribuído com o fim do nazifascismo, mas atualmente, como no caso específico da Rússia, se comportam como potências beligerantes que não respeitam a autodeterminação dos povos e promovem a guerra. É necessário, portanto, acabar com esse privilégio.
Se a solução não passa pelas mãos dos poderosos, nos resta a luta do povo. Além de uma sistemática educação à paz que deveria fazer parte do nosso dia a dia, acho decisiva a opção pela objeção de consciência e a desobediência civil. Chega de ser “mão-de-obra” de assassinos. O povo não é matador de aluguel a serviço dos interesses dos poderosos. A maneira de desengatilhar a guerra é desarmar-se. O ser que preza pela sua humanidade não pode obedecer à ordem de matar. A obediência aos senhores da guerra não é uma virtude, mas um crime contra a humanidade. “Em Nuremberga e em Jerusalém foram condenados homens que obedeceram às ordens do nazismo. Toda a humanidade é unânime em dizer que eles não deviam obedecer a estas ordens, porque há uma lei que talvez os homens não tenham ainda bem escrito em seus códigos, mas que está gravada em seus corações. Grande parte da humanidade a chama de lei de Deus, a outra parte a chama de lei da Consciência. Aqueles que não acreditam que nenhuma das duas são apenas uma pequena minoria doente. Eles são os amantes da obediência cega” (pe. Lorenzo Milani). Esta minoria não pode ditar lei e, sobretudo, não é digna de ser obedecida. A desobediência civil às leis que promovem a injustiça e a violência têm fundamento no cristianismo. O Evangelho é essencialmente não violento. No início do cristianismo, a atitude predominante era em favor da paz e contra a violência, inclusive com o sacrifício da vida, já que os cristãos se negavam inclusive ao serviço militar. Invocava-se, com razão, o exemplo de Jesus de Nazaré que impediu Pedro de impugnar a espada para defendê-lo durante a sua arbitrária prisão. É necessário nos reapoderarmos desta tradição. Nesse contexto demasiadamente violento, optar pela paz custa caro, mas é um preço que todo mundo precisa pagar se quiser viver em paz, pois a paz é só a gente que faz.
Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano