Segunda-feira, 2 de Agosto de 2021
Na madrugada do Sábado Santo, correu a voz de que a gasolina tinha chegado. Finalmente! Não posso perder a ocasião, vou tentar mais uma vez, pensei decididamente. Morto de sede, o todo-o-terreno da missão comboniana estava imobilizado há cerca de dois meses. [...]
A estrela que não se apaga
Na madrugada do Sábado Santo, correu a voz de que a gasolina tinha chegado. Finalmente! Não posso perder a ocasião, vou tentar mais uma vez, pensei decididamente. Morto de sede, o todo-o-terreno da missão comboniana estava imobilizado há cerca de dois meses.
Ao nascer do sol eu já estava a chegar ao local anunciado para a distribuição. Outros dias como este vêm-me à mente: oxalá que hoje corra melhor do que aquele dia em que tive que passar a noite no carro, só tendo sido atendido ao meio-dia do dia seguinte. De todos os modos, há que ser otimista e arriscar. Junto com o breviário e algum material de leitura, tenho comigo pão, tâmaras e água que me asseguram o essencial para o dia inteiro.
À minha frente, vejo uma fila de carros que se estende por mais de um quilómetro. Aqui e ali, debaixo da jalabia, a longa túnica de alguns homens, entrevejo um facalhão atado ao braço, coisa tradicional entre muitos sudaneses.
Chegam vozes de que há muito rebuliço e até mesmo bulha ao pé da bomba da gasolina a ponto de esta quase ter de parar de funcionar. Isso não seria grande novidade, pois tem acontecido noutras ocasiões. Mas desta o exército chegou bem a tempo de evitar o pior.
Por volta das dez e meia da manhã, um dos motoristas aparece à janela do meu carro, na mão uma caçarola de ful, um prato tradicional de favas acabado de sair da cozinha improvisada aí ao lado, à sombra da frondosa nima, uma árvore muito comum neste país. Com um aceno de cabeça, apontou para o carro da frente e, antes de colocar o tacho em cima do capô, disse: «Itfaddal maana, ia khauaja», «Estrangeiro, faça favor de se juntar a nós».
Também não faltou o chá de hortelã que a mesma cozinheira trouxe para nós os quatro comensais. Apreciei o esforço encorajador e reconfortante de um deles: «Que Deus continue a dar-nos paciência para estar na fila». Engoliu o último trago e concluiu: «In shá Allah, se Deus quiser, amanhã antes do meio-dia já teremos sido despachados».
«Amanhã?! E a Vigília Pascal? E o domingo de Páscoa? De maneira nenhuma! Absolutamente… A gasolina é muito necessária, mas a Páscoa é a Páscoa». Depois de explicar aos meus amigos motoristas o sério motivo do meu gesto inesperado, abandonei a fila dos carros.
Ao entrar em casa, acolheu-me um ambiente de quietude e silêncio. O irmão Agostino, meu colega de missão, na capela improvisada para aquele dia, estava sentado no tapete, em adoração. Quase não deu por mim quando entrei naquele pequeno espaço sagrado.
A um dado momento, mostrou-me o livro da liturgia que tinha na mão, apontando-me a frase do Pregão Pascal em que meditava: «El kaukab elladhi la iaghib», «A estrela que não se apaga». Para nós, cristãos, a mensagem desta frase é uma verdade profunda e extraordinária: Jesus Cristo Ressuscitado é, na verdade, esse astro incomparável, único e insubstituível.
A noite está a chegar. A noite sagrada à qual a nossa liturgia árabe dá o belo nome de Sabt en Nour, Sábado da Luz. Talvez, quem sabe, hoje não vai haver electricidade. Uma noite escura. Nada de estranho, imaginei, pois já vem acontecendo também em noites anteriores. No entanto, também pode ser uma oportunidade que nos ajudará a entrar profundamente na Vigília Pascal, a mãe de todas as vigílias, como a chamou Santo Agostinho.
O céu estrelado é mais visível no deserto livre, sem ser estorvado pelas luzes artificiais da cidade, disse-me de forma convincente o colega Irmão missionário. Para ele, falar de astros não é uma conversa banal. Encontra um grande prazer em dormir ao ar livre, mesmo nas noites frias de inverno. Contempla a abóbada do céu salpicada de pontos de luz e adormece falando com as estrelas (o inverno no Sudão é frio, mas seco, sem chuva). O Agostino conhece cada uma das constelações pelo nome. Eu não estava acostumado a olhar para o céu dessa forma, mas fico feliz por ele ter despertado em mim esse mesmo prazer.
Pensamentos luminosos habitaram-me durante o resto daquele dia. A minha mente continuava absorvida de astros e constelações das mais variadas formas e tamanhos. Tenho-as como distracções de que beneficiei como fonte e motivo de adoração naquele dia de Sábado da Luz.
Mas eu sei que não estava sozinho nesta forma de meditação. Prova disso era a voz do Agostino, que não se cansava de lançar para o ar o que não conseguia conter dentro de si. Porque é eterno. O refrão pascal saía de seus lábios em graciosas melodias e tons.
Chegou o momento em que a multidão de fiéis se reunia à volta da fogueira para o início da celebração da grande vigília.
O Círio Pascal, aceso no lume recém-benzido, ocupou o seu lugar diante dos fiéis que, por sua vez, começaram a cantar a luz de Cristo. Momentos depois, o mesmo Círio pousava no seu posto de honra ao lado do ambão, de onde o Padre Faustin cantou brilhante e solenemente o Pregão Pascal. E a grandiosa frase do Sábado da Luz soou com todo o seu elevado e profundo significado: «El kaukab elladhi la iaghib», «A estrela que não desvanece». Instantaneamente, os meus olhos procuraram o Agostino, que prontamente me respondeu com um sorriso afirmativo.
Depois da celebração da Vigília Pascal, enquanto saboreávamos em casa os khabáiz (doces típicos da festa) saímos para o pátio. Como tantas outras vezes, contemplámos a maravilha do céu estrelado. A sério ou a brincar, sentia-me suficientemente à vontade para provocar o meu colega missionário: a estrela do Pregão Pascal que tão bem acabámos de ouvir cantar, essa não a vês tu nas tuas noites estreladas, gracejei.
Ao que ele respondeu imediatamente e sem hesitar: «Pelo contrário, vejo-a sempre. Não é apenas o luzeiro mais brilhante, mas também a rainha de todas as estrelas. E a maravilha é que não é preciso esperar a noite para a contemplar. É sempre visível e oferece-nos a alegria da sua presença. Ela não depende do tempo e do espaço. Está em todo lugar. A qualquer momento. ‘El kaukab elladhi la iaghib’. A estrela que não se apaga. O astro que nunca desaparece».
P. Feliz da Costa Martins
El Obeid, Sudão