Domingo,4 de Julho de 2021
As comunidades combonianas mais próximas reúnem-se, sempre que possível, para celebrar as grandes festas do Instituto, como é o caso do Sagrado Coração de Jesus, festejado na sexta-feira, dia 11 de Junho. Era o que tinham programado as comunidades portuguesas da Maia e de Vila Nova de Famalicão, se um dos confrades não tivesse testado positivo à Covid-19. Ao P. José da Silva Vieira, comboniano à espera de poder partir para a Etiópia, tocava orientar a reflexão do dia, que acabou por ter de ser proferida online. A reflexão, intitulada “O triunfo do Coração”, foi também gravado no YouTube.
O TRIUNFO DO CORAÇÃO
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus nasce do relato da morte de Jesus segundo o evangelho de São João e a sua solenidade é celebrada pela Igreja universal desde 1856. Foi instituída pelo papa Pio IX, o Romano Pontífice com quem Daniel Comboni teve uma relação muito forte.
Os grandes promotores da devoção foram, dois séculos antes, São João Eudes (1601-1680), padre francês que escreveu os primeiros textos para a celebração litúrgica dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria; e Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690), monja do mosteiro de Paray-le-Monial, em França, a quem Jesus se manifestou durante 17 anos e pediu uma particular devoção ao seu coração. A basílica da Estrela, em Lisboa é a primeira igreja dedicada ao Coração de Jesus.
A espiritualidade do Sagrado Coração de Jesus representa o triunfo do otimismo da graça, promovido pelos jesuítas, contra o pessimismo do jansenismo. O Dicionário Michaelis define o jansenismo como «doutrina de Cornélio Jansênio (1585-1638), teólogo holandês e bispo de Ipres, que nega o livre-arbítrio e enfatiza a predestinação, afirmando que a salvação do homem depende da vontade do criador e não da sua disposição para as boas obras». Em sentido figurativo é «ética severa e austeridade, moral e religiosa, extrema».
A contemplação do Coração de Cristo mais que uma devoção é uma espiritualidade: marca o querer e o viver rezado na jaculatória «Jesus manso e humilde de coração, fazei o meu coração semelhante ao Vosso».
É uma espiritualidade muito atual e missionária: a cultura contemporânea, marcada pelo individualismo narcisista globalizado, precisa de coração para ser uma cultura de vida. Na Igreja, Santa Teresa de Lisieux queria ser o amor. No mundo, os cristãos temos de ser o coração. Que deve palpitar ao ritmo das batidas do de Jesus.
Essa foi a intuição vivida por S. Daniel Comboni. Escreveu: [o católico] «levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus» (Escritos 2742).
O Papa Francisco descreve esse percurso contemplativo com a simplicidade criativa que lhe é própria: «unidos a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele ama» (Evangelii gaudium 267).
Intitulei esta reflexão «O triunfo do coração». Inspirei-me na revelação da Senhora de Fátima aos pastorinhos a 13 de julho de 1917: «Por fim o meu coração imaculado triunfará». Fátima é a mensagem do triunfo do coração.
Interpretei esta vitória cordial à luz da iconografia oriental em que o coração de Maria é representado pelo Jesus-Menino.
O triunfo do coração de Maria é o triunfo do coração de Jesus. Aliás, esta é também uma intuição comboniana: os dois corações «trabalham» juntos e são corações triunfadores.
Sublinhando o sucesso das duas irmãs que prepararam três escravas para o batismo, Daniel Comboni escreveu no Relatório à Sociedade de Colónia: «Por fim triunfou a graça dos Corações de Jesus e de Maria» (Escritos 5315).
1. CORAÇÃO MANSO E HUMILDE
Jesus faz-nos uma proposta irrecusável para um percurso de bem-estar integral e holístico: «Vinde a mim, todos os que estais fatigados e oprimidos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossa vidas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve» (Mateus 11, 28-30).
Jesus faz esta proposta depois de uma breve oração de louvor ao Pai, porque os pequeninos, mais que os sábios e entendidos, são capazes de acolher a revelação de Deus manifestada n’Ele.
Esta oferta de Jesus ganha uma dimensão gigante na sociedade psicótica em que vivemos. Jesus faz uma oferta concreta aos fatigados e oprimidos, ávidos de repouso para os seus corpos e corações: propõe a mansidão e humildade de coração como remédio para o cansaço e as depressões que afetam a saúde física e mental.
Em 2018, os portugueses compraram mais de 10 milhões de embalagens de ansiolíticos e quase nove milhões de caixas de antidepressivos. Portugal é o quinto maior consumidor de antidepressivos de entre os 29 países da OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.
Numa sociedade neurótica como a nossa, Jesus propõe uma cura natural: um coração manso e humilde como resposta às psicoses e depressões que advêm da cultura altamente competitiva sem normas nem balizas humanizadoras.
O Papa Francisco nota muito sensatamente que «se vivermos tensos, arrogantes diante dos outros, acabamos cansados e exaustos».
E propõe uma saída: «quando olhamos os seus limites e defeitos com mansidão, sem nos sentirmos superiores, poderemos dar-lhes uma mão e evitamos gastar energias em lamentações inúteis».
OS PASSOS
A oferta que Jesus nos faz tem cinco passos:
a) Vinde a mim… O primeiro passo que Ele nos propõe é sair de nós, da zona de conforto e das nossas dores, do eu para ir até Ele, da autorreferencialidade para a referência Trinitária, o Deus-família, o Deus-amor. O psiquiatra Viktor E. Frankl, anota em O Homem em Busca de um Sentido, o seu livro de memórias de três anos em quatro campos de extermínio nazis: «Quanto mais uma pessoa se esquece de si própria — entregando-se a uma causa ou ao amor de outra pessoa — mais humana se torna e mais se efetiva ou atualiza».
b) Reconhecer a fadiga e a opressão. O convite de Jesus é para os fatigados e oprimidos. Para aceitar o seu convite é necessário tomar consciência e nomear a fadiga e a opressão que pesam sobre nós, as suas causas. Algumas são pessoais, outras são institucionais, há ainda as sociais e culturais. O primeiro passo para a cura é assumir a doença.
c) Aceitar o descanso de Jesus. Jesus dá-nos o descanso do seu amor, da sua graça, do seu colinho, da sua paz. Somos livres de o aceitar ou não.
d) Tomar o seu jugo. Nas Escrituras Judaicas o jugo é a Torah, a Lei do Senhor. No tempo de Jesus a Lei estava codificada em 613 prescrições: 365 proibições (mandamentos negativos) e 248 obrigações (mandamentos positivos). Um fardo moral muito pesado na mente e no coração do crente devoto. Jesus resume a Lei no tríplice amor: a Deus, ao próximo e ao próprio. João, inclusive, diz que o amor a Deus se traduz no amor ao próximo. O jugo do Senhor é a canga do amor.
e) Aprender a mansidão e a humildade d’Ele. Jesus diz que o remédio para a fadiga e a opressão que se abatem sobre nós está num coração manso e humilde. A mansidão de Jesus vem da sua humildade. O apóstolo Paulo insere um hino cristológico na carta que escreveu aos cristãos de Filipos, a cidade do norte da Grécia que foi porta de entrada do cristianismo na Europa. Antes, desafia, em jeito de introdução: «tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Jesus Cristo».
O hino canta o processo de esvaziamento que Jesus empreendeu através do mistério da encarnação: sendo Deus torna-se servo, homem com os humanos, obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é exaltado, proclamado Senhor.
O Filho, a Palavra, «humildou-se» e montou a sua tenda entre nós, peregrino com os peregrinos. Ele é o GPS do processo de apaziguamento para a mansidão.
No Sermão do Monte Jesus bendiz e felicita os mansos «porque eles herdarão a terra» (Mateus 5, 5).
Celebrar o seu coração é assumir a humildade e mansidão como formas de vida num mundo tão devoto do sucesso individual, da fama, da concorrência sem limites.
2. A MÍSTICA DE COMBONI
Daniel Comboni fez uma síntese de duas devoções — do Sagrado Coração de Jesus e do Bom Pastor — no ícone comboniano do Coração Trespassado do Bom Pastor, aprofundado pelo P. Francesco Pierli.
Na carta pastoral para a consagração do Vicariato ao Sagrado Coração que escreveu de El Obeid a 1 de Agosto de 1873 na qualidade de pró-vigário apostólico em parceria com o pró-secretário P. José Franceschini, exclama: «estamos profundamente convencidos de que […] do seio misterioso deste divino Coração trespassado brotarão torrentes de graça e rios de bênçãos celestes sobre este grande povo da África Central que nos é tão dileto e sobre o qual ainda pesa tremendo, ao cabo de tantos séculos, o anátema de Cam» (Escritos 3330).
Meia dúzia de anos depois, na Relação à Sociedade de Colónia escrita em Cartum a 15 de Fevereiro de 1879, o santo bispo afirma: «O Sagrado Coração de Jesus palpitou também pelos povos negros da África Central e Jesus Cristo morreu igualmente pelos Africanos. Jesus Cristo, o Bom Pastor, acolherá também a África Central dentro do seu redil. E o missionário apostólico não pode percorrer senão o caminho da cruz do divino Mestre, semeada de espinhos e fadigas de todo o género. […] Portanto, o verdadeiro apóstolo não deve ter medo de nenhuma dificuldade, nem sequer da morte. A cruz e o martírio são o seu triunfo» (Escritos 5647).
Estes dois parágrafos servem de enquadramento teológico para entendermos a mística que Comboni viveu e nos propõe «tendo sempre os olhos postos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das almas» — como escreveu no célebre Capítulo X sobre Normas específicas para cultivar o espírito e as virtudes dos alunos do instituto nas Regras de 1871 (Escritos 2721).
Todos somos pastores, ministramos outras pessoas. Ser pastores segundo o Coração de Deus significa contemplar o Crucificado nos crucificados da sociedade — os descartados, os empobrecidos, os mais pobres e abandonados — amando-O ternamente através do serviço ministerial a esses ícones, presença real do Senhor que continua a sofrer e a morrer nas cruzes da pobreza envergonhada, do desemprego, da xenofobia, do racismo, da violência doméstica e sexual, da exploração dos imigrantes ilegais, da solidão, da doença, da morte antes do tempo.
Podemos pastorear através do imperativo moral, combatendo o mal com a moralidade, tentando controlar as opções essenciais das pessoas com quem trabalhamos, às vezes com discursos manipuladores. É uma opção que pode levar ao moralismo como meio de serviço missionário e ao consequente distanciamento em relação aos «pecadores», porque pensamos habitar um patamar mais elevado. Essa era a tentação dos fariseus.
Contemplando o Coração aberto do Bom Pastor também aprendemos a ser pastores através das feridas das pessoas que nos são confiadas, do seu pecado pessoal e social. Permitimos que o nosso coração seja trespassado pela espada das dores de quem cuidamos?
O velho Simeão profetizou a Maria, a mãe de Jesus: «uma espada de dor trespassará a tua própria alma» (Lucas 2, 35). Este oráculo pode servir-nos como inspiração: na relação com as pessoas podemos deixar-nos trespassar pelas suas dores para que sejam curados pelas nossas chagas — como Jesus nos curou através das suas e manteve-as como sinal de triunfo e ressurreição — ou cairmos na tentação do moralismo (que por norma aplicamos sobretudo a terceiros.
Karl Rahner escreve em O cristão do futuro que o cristão do século XXI ou será místico ou não será cristão. Define a mística como «uma experiência de Deus autêntica, que brota do interior da existência».
O mesmo de aplica a nós: o missionário do século XXI ou é um místico ou não é missionário. O discípulo missionário é aquele que fica com o Mestre para aprender dele e é enviado a facilitar a experiência do amor terno e misericordioso da Trindade aos que têm fome e sede de Deus.
No fundo, é este o dinamismo evangelizador que João preconiza no prólogo da primeira carta: «O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, — de facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamos-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós — o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Escrevemos-vos isto para que a nossa alegria seja completa».
A contemplação é uma boa terapia para as arritmias do coração missionário. A gramática da contemplação conjuga-se com ouvir, ver, tocar a Palavra da Vida nas Escrituras, nos sacramentos e na vida do dia-a-dia. Só assim podemos sincronizar o nosso coração com o de Cristo para baterem juntos pelas mesmas pessoas. Só assim é que somos pastores segundo o Coração de Deus que conduzem o rebanho do Senhor com inteligência e sabedoria (Jeremias 3, 15).
A imagem que ilustra esta reflexão é um ícone usado pelos Combonianos no Egito nas atividades de animação missionária. Foi inspirado no chamado ícone da amizade ou do abraço, uma obra copta do século VI hoje exposta no Museu do Louvre para fazer memória de São Menas «que deu bom testemunho do Salvador».
A amizade, o abraço que Comboni recebe de Jesus, é a amizade e o abraço para os africanos. A contemplação do Coração Trespassado do Bom Pastor leva-nos ao mesmo dinamismo: darmos daquilo que recebemos, falarmos daquilo que sabemos, testemunharmos aquilo que vivemos. Paulo é claro: «acreditamos e por isso falamos» (2 Coríntios 4, 13).
O Papa Francisco recorda que «a missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo» (Evangelii gaudium, 268).
O diálogo tenso e intenso entre o Senhor ressuscitado e Pedro na aparição junto ao Mar de Tiberíades ilustra as dinâmicas desta paixão (João 21, 15-19).
Jesus renova o convite a Simão, filho de João, ao seguimento depois de lhe perguntar «Amas-me?» (duas vezes) e «És meu amigo?» (uma vez). Pedro repete três vezes: «Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo». De cada vez que Pedro confessa a amizade por Jesus, recebe o imperativo vocacional «apascenta os meus cordeiros», «pastoreia as minhas ovelhas», «apascenta as minhas ovelhas».
Os missionários combonianos somos testemunhas do amor da Trindade Santíssima através da relação amiga com o Senhor ressuscitado vivida na vida comunitária. Só assim conseguimos a resiliência para sermos fiéis à nossa vocação de testemunhas do amor misericordioso de Deus expresso por Jesus através da sua vida e do Seu mistério pascal, através do coração trespassado pela lança e pelas nossas dores.
3. CORAÇÃO: TERRITÓRIO DA MISSÃO
Até à Evangelii nuntiandi a missão ad gentes tem uma identidade geográfica muito forte. O ad gentes físico é o âmbito da missão.
São João Paulo II, na Redemptoris missio, escreve que há «uma única missão igual em todo o lugar» (32) e «a missão ad gentes, devido ao mandato universal de Cristo, não tem fronteiras. Apesar disso, é possível identificar vários âmbitos, em que ela se concretiza, para ficarmos com um quadro real da situação» (37).
Os âmbitos que o Papa polaco introduz são: (a) territoriais; (b) mundos e fenómenos sociais novos — que incluem as grandes cidades, a juventude, os emigrantes e refugiados e as situações de pobreza; e (c) os novos areópagos das áreas culturais — em que se destacam os meios de comunicação social, as questões de JPIC, e os mundos da cultura, da pesquisa científica e das relações internacionais.
Por outro lado, escreveu na Christifideles laici, a exortação apostólica sobre vocação e missão dos leigos na igreja e no mundo de dezembro de 1988, que «o homem é amado por Deus! Este é o mais simples e o mais comovente anúncio de que a Igreja é devedora ao homem. A palavra e a vida de cada cristão podem e devem fazer ecoar este anúncio: Deus ama-te, Cristo veio por ti, para ti Cristo é “Caminho, Verdade, Vida”.» (34).
Esta síntese revoluciona o conteúdo do anúncio: passa do querigma (Jesus nasceu, viveu e morreu por nós, o Pai ressuscitou-o e quem acreditar nele e se converter tem a vida eterna) para o amor fontal: Deus ama-te.
Na mesma linha, o Papa Francisco escreveu na Evangelii gaudium: «Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma conversa, e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho» (127).
O anúncio do amor é sobretudo um diálogo de corações. Daí que a Conferência Episcopal Portuguesa tenha recordado na nota pastoral Tudo, todos e sempre em missão a anunciar o Ano Missionário de 2018-2019 que o coração é, de facto, mais que a geografia, o território da missão.
«Do encontro com a Pessoa de Jesus Cristo nasce a Missão que não se baseia em ideias nem em territórios, mas “parte do coração” e dirige-se ao coração, uma vez que são “os corações os verdadeiros destinatários da atividade missionária do Povo de Deus”.», os bispos escrevem no nº 7.
O Papa Francisco vai na mesma linha quando regista na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2021 que «a boa nova do Evangelho difundiu-se pelo mundo, graças a encontros pessoa a pessoa, coração a coração: homens e mulheres que aceitaram o mesmo convite – «vem e verás –, conquistados por um «extra» de humanidade que transparecia brilhou no olhar, na palavra e nos gestos de pessoas que testemunhavam Jesus Cristo».
O escritor católico japonês Shusaku Endo, no seu romance Silêncio, recria algumas cartas do P. Sebastião Rodrigues supostamente escritas de Macau em 1640 enquanto o jesuíta português aguarda, ansioso, com um colega, o barco que os levará clandestinos ao Japão para ajudar os católicos barbaramente perseguidos pelas autoridades e descobrir o que verdadeiramente se passou com o P. Cristóvão Ferreira, antigo formador que diziam ter apostatado. A obra é um verdadeiro tratado de missiologia.
Na primeira carta, o missionário português escreve: «Cinco dias mais tarde e soará a hora da partida. Nenhuma outra bagagem levaremos para o Japão além do coração».
Sendo o coração o território da missão, o coração é também o meio da evangelização. Contemplar o Bom Pastor do Coração Trespassado é aprender dele a amar até ao fim, até à consumação. Aprender sobretudo a compaixão, esse comover-se até às entranhas, esse «tripar» — como propõe D. António Couto — que era a reação visceral de Jesus perante os males que afligiam os seus ouvintes.
Jesus Cristo não é uma ideia, é um amor que se vive e se partilha. Na antropologia bíblica pensamos com o coração e amamos com as entranhas. Para sermos missionários com coração temos que passar da razão para o coração. Somos racionalistas por (de)formação e muitas vezes tentamos camuflar os sentimentos.
Para sermos missionários com coração temos de perder o medo do risco de amar e ser amados. Eu entendi plenamente a força da expressão Deus ama-me quando fiz a experiência de um amor reciprocado.
O Papa Francisco transformou a ternura na quarta virtude teologal. Temos que desenvolver o hemisfério direito do nosso cérebro para sermos mais afetivos em vez de querermos ser mais efetivos.
Francisco escreve na Laudato Si’ que devemos «ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres» (49).
Este ouvir holístico faz de nós missionários da ecologia integral. Os nossos antepassados desmatavam e caçavam por necessidade — alguns faziam-no pelo prazer dúbio de matar. Hoje, somos chamados a cuidar da casa comum e de todos os seus habitantes através de vidas mais sóbrias e sustentáveis, reduzindo o consumo e aumentando a reciclagem e separação de resíduos.
O Vaticano lançou no final de maio a Plataforma de ação Laudato si’ com um percurso de sete anos para atualizar a aplicação da encíclica que fez cinco anos.
Diz: «a Adoção de Estilos de Vida Sustentáveis se baseia na ideia de suficiência e de promover a sobriedade no uso dos recursos e de energia. As ações podem incluir a redução do desperdício e a reciclagem, a adoção de hábitos alimentares sustentáveis (optando por uma alimentação à base de plantas e reduzir o consumo de carne), maior uso de transporte público, mobilidade ativa (caminhada, bicicleta) e evitar itens de uso único (por exemplo, plástico, etc.)».
Alguns gestos missionários concretos: reciclar as cápsulas do café — são muito práticas, mas também poluentes — separando a borra do plástico ou alumínio; comprar a granel (em vez de pequenas embalagens), comer menos carne e mais leguminosas…
A missão é uma torrente de amorosidade do coração da Trindade para o coração da Criação inteira através dos nossos corações.
4. CORAÇÃO: CASA DE DEUS
Finalmente, proponho contemplar o Coração Trespassado do Bom Pastor como chave interpretava para a religiosidade pós-moderna, um olhar para um futuro já presente.
Partimos de um dado inegável: a secularização está a avançar a passos largos sobretudo no hemisfério norte e as instituições religiosas estão a perder uso e influência. Os mais jovens têm menor aderência a formas organizadas de religiosidade: 27 por cento dos norte-americanos e 11 por cento dos europeus descrevem-se espirituais, mas não religiosos, de acordo com um estudo do Pew Institute.
Somos agentes da pastoral. Vamos para o desemprego? Acho que não! Mas necessitamos de reciclar o serviço missionário: passar de uma abordagem institucional e estrutural à missão do coração através da mística do encontro. Uma mudança de época exige uma mudança no paradigma da missão.
Religião tem o étimo em religare (voltar a ligar, a atar, a unir) ou relegere (voltar a ler, revisitar). O prefixo RE pede uma atualização constante do ligar ou do ler.
A busca espiritual das novas gerações revela-se através estilos de vida mais harmoniosos. Os sinais dessa procura espiritual passam pela ecologia, meditação, ioga, retiros, harmonia com a criação: vidas ecologicamente sustentadas ancoradas no vegetarianismo e no veganismo — que é uma forma radical do modo de vida vegetariano. Ambos são manifestação de uma compaixão integral pelas pessoas e pelos animais.
Por outro lado, a secularização não mata a fé, mas purifica-a, devolve-a ao essencial: a relação cordial com Deus, com os irmãos e com a natureza. É no coração que se encontra o epicentro da religião.
Jesus respondeu ao fariseu que procura uma síntese da fé que o essencial é amar a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com toda a força e ao próximo como a si mesmo, citando os livros do Deuteronómio e do Levítico (Marcos 12, 29-31). Paulo é mais radical: «toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gálatas 5, 14).
Lemos na profecia de Jeremias, capítulo 31, 31-34: «Dias virão em que firmarei uma nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá — oráculo do Senhor. Não será como a aliança que estabeleci com seus pais, quando os tomei pela mão para os fazer sair da terra do Egipto, aliança que eles não cumpriram, embora Eu fosse o seu Deus — oráculo do Senhor. Esta será a Aliança que estabelecerei, depois desses dias, com a casa de Israel — oráculo do SENHOR: Imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Ninguém ensinará mais o seu próximo ou o seu irmão, dizendo: ‘Aprende a conhecer o Senhor!’ Pois todos me conhecerão, desde o maior ao mais pequeno, porque a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados» oráculo do SENHOR».
A profecia de Jeremias anuncia a passagem de uma religião organizada — a religião empedernida, gravada na pedra, do templo e da casta sacerdotal, clerical — para uma relação cordial com Deus, tatuada no coração.
Nesta aliança nova e eterna «ninguém ensinará mais o seu próximo ou o seu irmão, dizendo: ‘Aprende a conhecer o SENHOR!’ Pois todos me conhecerão, desde o maior ao mais pequeno, porque a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados», sublinha o versículo 34.
Talvez seja por isso que a cidade santa, a nova Jerusalém descida do céu, não tem templo: «Templo, não vi nenhum na cidade; pois o senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu templo» (Apocalipse 21, 22).
O rasgar de alto a baixo da cortina do Templo no momento em que Jesus entrega o espírito ao Pai tem esse mesmo significado: o mistério de Deus fica acessível a todos! Não há nem barreiras nem controladores do divino para mediar a relação entre Deus e o seu povo.
Paulo fala com frequência do cristão como a nova casa de Deus. «Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?», pergunta aos cristãos de Corinto (1 Coríntios 3, 16; 6, 19). Pedro diz que somos pedras de um edifício espiritual (1 Pedro 2, 5).
Por outro lado, Jesus fala à samaritana que «a água que Eu lhe der há de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna» (João 4, 14).
Daí que Etty Illesum, a jovem judia holandesa morta em Auschwitz, tenha escrito no seu diário: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo».
O Papa Francisco escreve no n.º 88 da Fratelli tutti: «A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós “uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser”. Por isso, “o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar”.»
É o amor que nos saca da zona de conforto e nos abre a Deus e aos outros, porque «Deus é amor», como não cessa de repetir João na primeira carta.
Daí que a secularização esteja a promover a religião do coração baseada numa espiritualidade pessoal, cordial. Que necessita de recuperar a dimensão comunitária.
Contemplar o Coração de Cristo leva-nos a sermos missionários de coração e com coração que revelam o Coração da Trindade Santíssima e são ponto de encontro com os corações de todos os homens e mulheres, com o grande coração do Universo.
ORAÇÃO FINAL
Terminamos esta reflexão rezando juntos a oração cristã ecuménica, a última das duas orações com as quais o Papa Francisco conclui a encíclica Fratelli tutti. Que estas palavras expressem o nosso desejo de viver mais a partir do coração:
Deus nosso, Trindade de amor,
a partir da poderosa comunhão da vossa intimidade divina
infundi no meio de nós o rio do amor fraterno.
Dai-nos o amor que transparecia nos gestos de Jesus,
na sua família de Nazaré e na primeira comunidade cristã.
Concedei-nos, a nós cristãos, que vivamos o Evangelho
e reconheçamos Cristo em cada ser humano,
para O vermos crucificado nas angústias dos abandonados
e dos esquecidos deste mundo
e ressuscitado em cada irmão que se levanta.
Vinde, Espírito Santo! Mostrai-nos a vossa beleza
refletida em todos os povos da terra,
para descobrirmos que todos são importantes,
que todos são necessários, que são rostos diferentes
da mesma humanidade amada por Deus.
Ámen.