Com coração de pai: assim José amou a Jesus, designado nos quatro Evangelhos como «o filho de José». Os dois evangelistas que puseram em relevo a sua figura, Mateus e Lucas, narram pouco, mas o suficiente para fazer compreender o género de pai que era e a missão que a Providência lhe confiou. (...)

CARTA APOSTÓLICA

PATRIS CORDE

DO PAPA FRANCISCO

POR OCASIÃO DO 150º ANIVERSÁRIO
DA DECLARAÇÃO DE SÃO JOSÉ
COMO PADROEIRO UNIVERSAL DA IGREJA

Com coração de pai: assim José amou a Jesus, designado nos quatro Evangelhos como «o filho de José».[1]

Os dois evangelistas que puseram em relevo a sua figura, Mateus e Lucas, narram pouco, mas o suficiente para fazer compreender o género de pai que era e a missão que a Providência lhe confiou.

Sabemos que era um humilde carpinteiro (cf. Mt 13, 55), desposado com Maria (cf. Mt 1, 18; Lc 1, 27); um «homem justo» (Mt 1, 19), sempre pronto a cumprir a vontade de Deus manifestada na sua Lei (cf. Lc 2, 22.27.39) e através de quatro sonhos (cf. Mt 1, 20; 2, 13.19.22). Depois duma viagem longa e cansativa de Nazaré a Belém, viu o Messias nascer num estábulo, «por não haver lugar para eles» (Lc 2, 7) noutro sítio. Foi testemunha da adoração dos pastores (cf. Lc 2, 8-20) e dos Magos (cf. Mt 2, 1-12), que representavam respetivamente o povo de Israel e os povos pagãos.

Teve a coragem de assumir a paternidade legal de Jesus, a quem deu o nome revelado pelo anjo: dar-Lhe-ás «o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados» (Mt 1, 21). Entre os povos antigos, como se sabe, dar o nome a uma pessoa ou a uma coisa significava conseguir um título de pertença, como fez Adão na narração do Génesis (cf. 2, 19-20).

No Templo, quarenta dias depois do nascimento, José – juntamente com a mãe – ofereceu o Menino ao Senhor e ouviu, surpreendido, a profecia que Simeão fez a respeito de Jesus e Maria (cf. Lc 2, 22-35). Para defender Jesus de Herodes, residiu como forasteiro no Egito (cf. Mt 2, 13-18). Regressado à pátria, viveu no recôndito da pequena e ignorada cidade de Nazaré, na Galileia – donde (dizia-se) «não sairá nenhum profeta» (Jo 7, 52), nem «poderá vir alguma coisa boa» (Jo 1, 46) –, longe de Belém, a sua cidade natal, e de Jerusalém, onde se erguia o Templo. Foi precisamente durante uma peregrinação a Jerusalém que perderam Jesus (tinha ele doze anos) e José e Maria, angustiados, andaram à sua procura, acabando por encontrá-Lo três dias mais tarde no Templo discutindo com os doutores da Lei (cf. Lc 2, 41-50).

Depois de Maria, a Mãe de Deus, nenhum Santo ocupa tanto espaço no magistério pontifício como José, seu esposo. Os meus antecessores aprofundaram a mensagem contida nos poucos dados transmitidos pelos Evangelhos para realçar ainda mais o seu papel central na história da salvação: o Beato Pio IX declarou-o «Padroeiro da Igreja Católica»,[2] o Venerável Pio XII apresentou-o como «Padroeiro dos operários»;[3] e São João Paulo II, como «Guardião do Redentor».[4] O povo invoca-o como «padroeiro da boa morte».[5]

Assim ao completarem-se 150 anos da sua declaração como Padroeiro da Igreja Católica, feita pelo Beato Pio IX a 8 de dezembro de 1870, gostaria de deixar «a boca – como diz Jesus – falar da abundância do coração» (Mt 12, 34), para partilhar convosco algumas reflexões pessoais sobre esta figura extraordinária, tão próxima da condição humana de cada um de nós. Tal desejo foi crescendo ao longo destes meses de pandemia em que pudemos experimentar, no meio da crise que nos afeta, que «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiras e enfermeiros, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho. (…) Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos».[6] Todos podem encontrar em São José – o homem que passa despercebido, o homem da presença quotidiana discreta e escondida – um intercessor, um amparo e uma guia nos momentos de dificuldade. São José lembra-nos que todos aqueles que estão, aparentemente, escondidos ou em segundo plano, têm um protagonismo sem paralelo na história da salvação. A todos eles, dirijo uma palavra de reconhecimento e gratidão.

1. Pai amado

A grandeza de São José consiste no facto de ter sido o esposo de Maria e o pai de Jesus. Como tal, afirma São João Crisóstomo, «colocou-se inteiramente ao serviço do plano salvífico».[7]

São Paulo VI faz notar que a sua paternidade se exprimiu, concretamente, «em ter feito da sua vida um serviço, um sacrifício, ao mistério da encarnação e à conjunta missão redentora; em ter usado da autoridade legal que detinha sobre a Sagrada Família para lhe fazer dom total de si mesmo, da sua vida, do seu trabalho; em ter convertido a sua vocação humana ao amor doméstico na oblação sobre-humana de si mesmo, do seu coração e de todas as capacidades no amor colocado ao serviço do Messias nascido na sua casa».[8]

Por este seu papel na história da salvação, São José é um pai que foi sempre amado pelo povo cristão, como prova o facto de lhe terem sido dedicadas numerosas igrejas por todo o mundo; de muitos institutos religiosos, confrarias e grupos eclesiais se terem inspirado na sua espiritualidade e adotado o seu nome; e de, há séculos, se realizarem em sua honra várias representações sacras. Muitos Santos e Santas foram seus devotos apaixonados, entre os quais se conta Teresa de Ávila que o adotou como advogado e intercessor, recomendando-se instantemente a São José e recebendo todas as graças que lhe pedia; animada pela própria experiência, a Santa persuadia os outros a serem igualmente devotos dele.[9]

Em todo o manual de orações, há sempre alguma a São José. São-lhe dirigidas invocações especiais todas as quartas-feiras e, de forma particular, durante o mês de março inteiro, tradicionalmente dedicado a ele.[10]

A confiança do povo em São José está contida na expressão «ite ad Joseph», que faz referência ao período de carestia no Egito, quando o povo pedia pão ao Faraó e ele respondia: «Ide ter com José; fazei o que ele vos disser» (Gn 41, 55). Tratava-se de José, filho de Jacob, que acabara vendido, vítima da inveja dos seus irmãos (cf. Gn 37, 11-28); e posteriormente – segundo a narração bíblica – tornou-se vice-rei do Egito (cf. Gn 41, 41-44).

Enquanto descendente de David (cf. Mt 1, 16.20), de cuja raiz deveria nascer Jesus segundo a promessa feita ao rei pelo profeta Natan (cf. 2 Sam 7), e como esposo de Maria de Nazaré, São José constitui a dobradiça que une o Antigo e o Novo Testamento.

2. Pai na ternura

Dia após dia, José via Jesus crescer «em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2, 52). Como o Senhor fez com Israel, assim ele ensinou Jesus a andar, segurando-O pela mão: era para Ele como o pai que levanta o filho contra o seu rosto, inclinava-se para Ele a fim de Lhe dar de comer (cf. Os 11, 3-4).

Jesus viu a ternura de Deus em José: «Como um pai se compadece dos filhos, assim o Senhor Se compadece dos que O temem» (Sal 103, 13).

Com certeza, José terá ouvido ressoar na sinagoga, durante a oração dos Salmos, que o Deus de Israel é um Deus de ternura,[11] que é bom para com todos e «a sua ternura repassa todas as suas obras» (Sal 145, 9).

A história da salvação realiza-se, «na esperança para além do que se podia esperar» (Rm 4, 18), através das nossas fraquezas. Muitas vezes pensamos que Deus conta apenas com a nossa parte boa e vitoriosa, quando, na verdade, a maior parte dos seus desígnios se cumpre através e apesar da nossa fraqueza. Isto mesmo permite a São Paulo dizer: «Para que não me enchesse de orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás, para me ferir, a fim de que não me orgulhasse. A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Mas Ele respondeu-me: “Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza”» (2 Cor 12, 7-9).

Se esta é a perspetiva da economia da salvação, devemos aprender a aceitar, com profunda ternura, a nossa fraqueza.[12]

O Maligno faz-nos olhar para a nossa fragilidade com um juízo negativo, ao passo que o Espírito trá-la à luz com ternura. A ternura é a melhor forma para tocar o que há de frágil em nós. Muitas vezes o dedo em riste e o juízo que fazemos a respeito dos outros são sinal da incapacidade de acolher dentro de nós mesmos a nossa própria fraqueza, a nossa fragilidade. Só a ternura nos salvará da obra do Acusador (cf. Ap 12, 10). Por isso, é importante encontrar a Misericórdia de Deus, especialmente no sacramento da Reconciliação, fazendo uma experiência de verdade e ternura. Paradoxalmente, também o Maligno pode dizer-nos a verdade, mas, se o faz, é para nos condenar. Entretanto nós sabemos que a Verdade vinda de Deus não nos condena, mas acolhe-nos, abraça-nos, ampara-nos, perdoa-nos. A Verdade apresenta-se-nos sempre como o Pai misericordioso da parábola (cf. Lc 15, 11-32): vem ao nosso encontro, devolve-nos a dignidade, levanta-nos, ordena uma festa para nós, dando como motivo que «este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado» (Lc 15, 24).

A vontade de Deus, a sua história e o seu projeto passam também através da angústia de José. Assim ele ensina-nos que ter fé em Deus inclui também acreditar que Ele pode intervir inclusive através dos nossos medos, das nossas fragilidades, da nossa fraqueza. E ensina-nos que, no meio das tempestades da vida, não devemos ter medo de deixar a Deus o timão da nossa barca. Por vezes queremos controlar tudo, mas o olhar d’Ele vê sempre mais longe.

3. Pai na obediência

De forma análoga a quanto fez Deus com Maria, manifestando-Lhe o seu plano de salvação, também revelou a José os seus desígnios por meio de sonhos, que na Bíblia, como em todos os povos antigos, eram considerados um dos meios pelos quais Deus manifesta a sua vontade.[13]

José sente uma angústia imensa com a gravidez incompreensível de Maria: mas não quer «difamá-la»,[14] e decide «deixá-la secretamente» (Mt 1, 19). No primeiro sonho, o anjo ajuda-o a resolver o seu grave dilema: «Não temas receber Maria, tua esposa, pois o que Ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados» (Mt 1, 20-21). A sua resposta foi imediata: «Despertando do sono, José fez como lhe ordenou o anjo» (Mt 1, 24). Com a obediência, superou o seu drama e salvou Maria.

No segundo sonho, o anjo dá esta ordem a José: «Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o matar» (Mt 2, 13). José não hesitou em obedecer, sem se questionar sobre as dificuldades que encontraria: «E ele levantou-se de noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito, permanecendo ali até à morte de Herodes» (Mt 2, 14-15).

No Egito, com confiança e paciência, José esperou do anjo o aviso prometido para voltar ao seu país. Logo que o mensageiro divino, num terceiro sonho – depois de o informar que tinham morrido aqueles que procuravam matar o menino –, lhe ordena que se levante, tome consigo o menino e sua mãe e regresse à terra de Israel (cf. Mt 2, 19-20), de novo obedece sem hesitar: «Levantando-se, ele tomou o menino e sua mãe e voltou para a terra de Israel» (Mt 2, 21).

Durante a viagem de regresso, porém, «tendo ouvido dizer que Arquelau reinava na Judeia, em lugar de Herodes, seu pai, teve medo de ir para lá. Então advertido em sonhos – e é a quarta vez que acontece – retirou-se para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré» (Mt 2, 22-23).

Por sua vez, o evangelista Lucas refere que José enfrentou a longa e incómoda viagem de Nazaré a Belém, devido à lei do imperador César Augusto relativa ao recenseamento, que impunha a cada um registar-se na própria cidade de origem. E foi precisamente nesta circunstância que nasceu Jesus (cf. 2, 1-7), sendo inscrito no registo do Império, como todos os outros meninos.

São Lucas, de modo particular, tem o cuidado de assinalar que os pais de Jesus observavam todas as prescrições da Lei: os ritos da circuncisão de Jesus, da purificação de Maria depois do parto, da oferta do primogénito a Deus (cf. 2, 21-24).[15]

Em todas as circunstâncias da sua vida, José soube pronunciar o seu «fiat», como Maria na Anunciação e Jesus no Getsémani.

Na sua função de chefe de família, José ensinou Jesus a ser submisso aos pais (cf. Lc 2, 51), segundo o mandamento de Deus (cf. Ex 20, 12).

Ao longo da vida oculta em Nazaré, na escola de José, Ele aprendeu a fazer a vontade do Pai. Tal vontade torna-se o seu alimento diário (cf. Jo 4, 34). Mesmo no momento mais difícil da sua vida, vivido no Getsémani, preferiu que se cumprisse a vontade do Pai, e não a sua,[16] fazendo-Se «obediente até à morte (…) de cruz» (Flp 2, 8). Por isso, o autor da Carta aos Hebreus conclui que Jesus «aprendeu a obediência por aquilo que sofreu» (5, 8).

Vê-se, a partir de todas estas vicissitudes, que «José foi chamado por Deus para servir diretamente a Pessoa e a missão de Jesus, mediante o exercício da sua paternidade: desse modo, precisamente, ele coopera no grande mistério da Redenção, quando chega a plenitude dos tempos, e é verdadeiramente ministro da salvação».[17]

4. Pai no acolhimento

José acolhe Maria, sem colocar condições prévias. Confia nas palavras do anjo. «Anobreza do seu coração fá-lo subordinar à caridade aquilo que aprendera com a lei; e hoje, neste mundo onde é patente a violência psicológica, verbal e física contra a mulher, José apresenta-se como figura de homem respeitoso, delicado que, mesmo não dispondo de todas as informações, se decide pela honra, dignidade e vida de Maria. E, na sua dúvida sobre o melhor a fazer, Deus ajudou-o a escolher iluminando o seu discernimento».[18]

Na nossa vida, muitas vezes sucedem coisas, cujo significado não entendemos. E a nossa primeira reação, frequentemente, é de desilusão e revolta. Diversamente, José deixa de lado os seus raciocínios para dar lugar ao que sucede e, por mais misterioso que possa aparecer a seus olhos, acolhe-o, assume a sua responsabilidade e reconcilia-se com a própria história. Se não nos reconciliarmos com a nossa história, não conseguiremos dar nem mais um passo, porque ficaremos sempre reféns das nossas expectativas e consequentes desilusões.

A vida espiritual que José nos mostra, não é um caminho que explica, mas um caminho que acolhe. Só a partir deste acolhimento, desta reconciliação, é possível intuir também uma história mais excelsa, um significado mais profundo. Parecem ecoar as palavras inflamadas de Job, quando, desafiado pela esposa a rebelar-se contra todo o mal que lhe está a acontecer, responde: «Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os males?» (Job 2, 10).

José não é um homem resignado passivamente. O seu protagonismo é corajoso e forte. O acolhimento é um modo pelo qual se manifesta, na nossa vida, o dom da fortaleza que nos vem do Espírito Santo. Só o Senhor nos pode dar força para acolher a vida como ela é, aceitando até mesmo as suas contradições, imprevistos e desilusões.

A vinda de Jesus ao nosso meio é um dom do Pai, para que cada um se reconcilie com a carne da sua história, mesmo quando não a compreende totalmente.

O que Deus disse ao nosso Santo – «José, Filho de David, não temas…» (Mt 1, 20) –, parece repeti-lo a nós também: «Não tenhais medo!» É necessário deixar de lado a ira e a desilusão para – movidos não por qualquer resignação mundana, mas com uma fortaleza cheia de esperança – dar lugar àquilo que não escolhemos e, todavia, existe. Acolher a vida desta maneira introduz-nos num significado oculto. A vida de cada um de nós pode recomeçar miraculosamente, se encontrarmos a coragem de a viver segundo aquilo que nos indica o Evangelho. E não importa se tudo parece ter tomado já uma direção errada, e se algumas coisas já são irreversíveis. Deus pode fazer brotar flores no meio das rochas. E mesmo que o nosso coração nos censure de qualquer coisa, Ele «é maior que o nosso coração e conhece tudo» (1 Jo 3, 20).

Reaparece aqui o realismo cristão, que não deita fora nada do que existe. A realidade, na sua misteriosa persistência e complexidade, é portadora dum sentido da existência com as suas luzes e sombras. É isto que leva o apóstolo Paulo a dizer: «Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus» (Rm 8, 28). E Santo Agostinho acrescenta: tudo, «incluindo aquilo que é chamado mal».[19] Nesta perspetiva global, a fé dá significado a todos os acontecimentos, sejam eles felizes ou tristes.

Assim, longe de nós pensar que crer signifique encontrar fáceis soluções consoladoras. Antes, pelo contrário, a fé que Cristo nos ensinou é a que vemos em São José, que não procura atalhos, mas enfrenta de olhos abertos aquilo que lhe acontece, assumindo pessoalmente a responsabilidade por isso.

O acolhimento de José convida-nos a receber os outros, sem exclusões, tal como são, reservando uma predileção especial pelos mais frágeis, porque Deus escolhe o que é frágil (cf. 1 Cor 1, 27), é «pai dos órfãos e defensor das viúvas» (Sal 68, 6) e manda amar o forasteiro.[20] Posso imaginar ter sido do procedimento de José que Jesus tirou inspiração para a parábola do filho pródigo e do pai misericordioso (cf. Lc 15, 11-32).

5. Pai com coragem criativa

Se a primeira etapa de toda a verdadeira cura interior é acolher a própria história, ou seja, dar espaço no nosso íntimo até mesmo àquilo que não escolhemos na nossa vida, convém acrescentar outra caraterística importante: a coragem criativa. Esta vem ao de cima sobretudo quando se encontram dificuldades. Com efeito, perante uma dificuldade, pode-se estacar e abandonar o campo, ou tentar vencê-la de algum modo. Às vezes, são precisamente as dificuldades que fazem sair de cada um de nós recursos que nem pensávamos ter.

Frequentemente, ao ler os «Evangelhos da Infância», apetece-nos perguntar por que motivo Deus não interveio de forma direta e clara. Porque Deus intervém por meio de acontecimentos e pessoas: José é o homem por meio de quem Deus cuida dos primórdios da história da redenção; é o verdadeiro «milagre», pelo qual Deus salva o Menino e sua mãe. O Céu intervém, confiando na coragem criativa deste homem que, tendo chegado a Belém e não encontrando alojamento onde Maria possa dar à luz, arranja um estábulo e prepara-o de modo a tornar-se o lugar mais acolhedor possível para o Filho de Deus, que vem ao mundo (cf. Lc 2, 6-7). Face ao perigo iminente de Herodes, que quer matar o Menino, de novo em sonhos José é alertado para O defender e, no coração da noite, organiza a fuga para o Egito (cf. Mt 2, 13-14).

Numa leitura superficial destas narrações, a impressão que se tem é a de que o mundo está à mercê dos fortes e poderosos, mas a «boa notícia» do Evangelho consiste precisamente em mostrar como, não obstante a arrogância e a violência dos dominadores terrenos, Deus encontra sempre a forma de realizar o seu plano de salvação. Às vezes também a nossa vida parece à mercê dos poderes fortes, mas o Evangelho diz-nos que Deus consegue sempre salvar aquilo que conta, desde que usemos a mesma coragem criativa do carpinteiro de Nazaré, o qual sabe transformar um problema numa oportunidade, antepondo sempre a sua confiança na Providência.

Se, em determinadas situações, parece que Deus não nos ajuda, isso não significa que nos tenha abandonado, mas que confia em nós com aquilo que podemos projetar, inventar, encontrar.

Trata-se da mesma coragem criativa demonstrada pelos amigos do paralítico que, desejando levá-lo à presença de Jesus, fizeram-no descer pelo teto (cf. Lc 5, 17-26). A dificuldade não deteve a audácia e obstinação daqueles amigos. Estavam convencidos de que Jesus podia curar o doente e, «não achando por onde introduzi-lo, devido à multidão, subiram ao teto e, através das telhas, desceram-no com a enxerga, para o meio, em frente de Jesus. Vendo a fé daqueles homens, disse: “Homem, os teus pecados estão perdoados”» (5, 19-20). Jesus reconhece a fé criativa com que aqueles homens procuram trazer-Lhe o seu amigo doente.

O Evangelho não dá informações relativas ao tempo que Maria, José e o Menino permaneceram no Egito. Mas certamente tiveram de comer, encontrar uma casa, um emprego. Não é preciso muita imaginação para colmatar o silêncio do Evangelho a tal respeito. A Sagrada Família teve que enfrentar problemas concretos, como todas as outras famílias, como muitos dos nossos irmãos migrantes que ainda hoje arriscam a vida acossados pelas desventuras e a fome. Neste sentido, creio que São José seja verdadeiramente um padroeiro especial para quantos têm que deixar a sua terra por causa das guerras, do ódio, da perseguição e da miséria.

No fim de cada acontecimento que tem José como protagonista, o Evangelho observa que ele se levanta, toma consigo o Menino e sua mãe e faz o que Deus lhe ordenou (cf. Mt 1, 24; 2, 14.21). Com efeito, Jesus e Maria, sua mãe, são o tesouro mais precioso da nossa fé.[21]

No plano da salvação, o Filho não pode ser separado da Mãe, d’Aquela que «avançou pelo caminho da fé, mantendo fielmente a união com seu Filho até à cruz».[22]

Sempre nos devemos interrogar se estamos a proteger com todas as nossas forças Jesus e Maria, que misteriosamente estão confiados à nossa responsabilidade, ao nosso cuidado, à nossa guarda. O Filho do Todo-Poderoso vem ao mundo, assumindo uma condição de grande fragilidade. Necessita de José para ser defendido, protegido, cuidado e criado. Deus confia neste homem, e o mesmo faz Maria que encontra em José aquele que não só Lhe quer salvar a vida, mas sempre A sustentará a Ela e ao Menino. Neste sentido, São José não pode deixar de ser o Guardião da Igreja, porque a Igreja é o prolongamento do Corpo de Cristo na história e ao mesmo tempo, na maternidade da Igreja, espelha-se a maternidade de Maria.[23] José, continuando a proteger a Igreja, continua a proteger o Menino e sua mãe; e também nós, amando a Igreja, continuamos a amar o Menino e sua mãe.

Este Menino é Aquele que dirá: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Assim, todo o necessitado, pobre, atribulado, moribundo, forasteiro, recluso, doente são «o Menino» que José continua a guardar. Por isso mesmo, São José é invocado como protetor dos miseráveis, necessitados, exilados, aflitos, pobres, moribundos. E pela mesma razão a Igreja não pode deixar de amar em primeiro lugar os últimos, porque Jesus conferiu-lhes a preferência ao identificar-Se pessoalmente com eles. De José, devemos aprender o mesmo cuidado e responsabilidade: amar o Menino e sua mãe; amar os Sacramentos e a caridade; amar a Igreja e os pobres. Cada uma destas realidades é sempre o Menino e sua mãe.

6. Pai trabalhador

Um aspeto que carateriza São José – e tem sido evidenciado desde os dias da primeira encíclica social, a Rerum novarum de Leão XIII – é a sua relação com o trabalho. São José era um carpinteiro que trabalhou honestamente para garantir o sustento da sua família. Com ele, Jesus aprendeu o valor, a dignidade e a alegria do que significa comer o pão fruto do próprio trabalho.

Neste nosso tempo em que o trabalho parece ter voltado a constituir uma urgente questão social e o desemprego atinge por vezes níveis impressionantes, mesmo em países onde se experimentou durante várias décadas um certo bem-estar, é necessário tomar renovada consciência do significado do trabalho que dignifica e do qual o nosso Santo é patrono e exemplo.

O trabalho torna-se participação na própria obra da salvação, oportunidade para apressar a vinda do Reino, desenvolver as próprias potencialidades e qualidades, colocando-as ao serviço da sociedade e da comunhão; o trabalho torna-se uma oportunidade de realização não só para o próprio trabalhador, mas sobretudo para aquele núcleo originário da sociedade que é a família. Uma família onde falte o trabalho está mais exposta a dificuldades, tensões, fraturas e até mesmo à desesperada e desesperadora tentação da dissolução. Como poderemos falar da dignidade humana sem nos empenharmos para que todos, e cada um, tenham a possibilidade dum digno sustento?

A pessoa que trabalha, seja qual for a sua tarefa, colabora com o próprio Deus, torna-se em certa medida criadora do mundo que a rodeia. A crise do nosso tempo, que é económica, social, cultural e espiritual, pode constituir para todos um apelo a redescobrir o valor, a importância e a necessidade do trabalho para dar origem a uma nova «normalidade», em que ninguém seja excluído. O trabalho de São José lembra-nos que o próprio Deus feito homem não desdenhou o trabalho. A perda de trabalho que afeta tantos irmãos e irmãs e tem aumentado nos últimos meses devido à pandemia de Covid-19, deve ser um apelo a revermos as nossas prioridades. Peçamos a São José Operário que encontremos vias onde nos possamos comprometer até se dizer: nenhum jovem, nenhuma pessoa, nenhuma família sem trabalho!

7. Pai na sombra

O escritor polaco Jan Dobraczyński, no seu livro A Sombra do Pai,[24] narrou a vida de São José em forma de romance. Com a sugestiva imagem da sombra, apresenta a figura de José, que é, para Jesus, a sombra na terra do Pai celeste: guarda-O, protege-O, segue os seus passos sem nunca se afastar d’Ele. Lembra o que Moisés dizia a Israel: «Neste deserto (…) vistes o Senhor, vosso Deus, conduzir-vos como um pai conduz o seu filho, durante toda a caminhada que fizeste até chegar a este lugar» (Dt 1, 31). Assim José exerceu a paternidade durante toda a sua vida.[25]

Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita a paternidade a seu respeito.

Na sociedade atual, muitas vezes os filhos parecem ser órfãos de pai. A própria Igreja de hoje precisa de pais. Continua atual a advertência dirigida por São Paulo aos Coríntios: «Ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais» (1 Cor 4, 15); e cada sacerdote ou bispo deveria poder acrescentar como o Apóstolo: «Fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, pelo Evangelho» (4, 15). E aos Gálatas diz: «Meus filhos, por quem sinto outra vez dores de parto, até que Cristo se forme entre vós!» (Gl 4, 19).

Ser pai significa introduzir o filho na experiência da vida, na realidade. Não segurá-lo, nem prendê-lo, nem subjugá-lo, mas torná-lo capaz de opções, de liberdade, de partir. Talvez seja por isso que a tradição, referindo-se a José, ao lado do apelido de pai colocou também o de «castíssimo». Não se trata duma indicação meramente afetiva, mas é a síntese duma atitude que exprime o contrário da posse. A castidade é a liberdade da posse em todos os campos da vida. Um amor só é verdadeiramente tal, quando é casto. O amor que quer possuir, acaba sempre por se tornar perigoso: prende, sufoca, torna infeliz. O próprio Deus amou o homem com amor casto, deixando-o livre inclusive de errar e opor-se a Ele. A lógica do amor é sempre uma lógica de liberdade, e José soube amar de maneira extraordinariamente livre. Nunca se colocou a si mesmo no centro; soube descentralizar-se, colocar Maria e Jesus no centro da sua vida.

A felicidade de José não se situa na lógica do sacrifício de si mesmo, mas na lógica do dom de si mesmo. Naquele homem, nunca se nota frustração, mas apenas confiança. O seu silêncio persistente não inclui lamentações, mas sempre gestos concretos de confiança. O mundo precisa de pais, rejeita os dominadores, isto é, rejeita quem quer usar a posse do outro para preencher o seu próprio vazio; rejeita aqueles que confundem autoridade com autoritarismo, serviço com servilismo, confronto com opressão, caridade com assistencialismo, força com destruição. Toda a verdadeira vocação nasce do dom de si mesmo, que é a maturação do simples sacrifício. Mesmo no sacerdócio e na vida consagrada, requer-se este género de maturidade. Quando uma vocação matrimonial, celibatária ou virginal não chega à maturação do dom de si mesmo, detendo-se apenas na lógica do sacrifício, então, em vez de significar a beleza e a alegria do amor, corre o risco de exprimir infelicidade, tristeza e frustração.

A paternidade, que renuncia à tentação de decidir a vida dos filhos, sempre abre espaços para o inédito. Cada filho traz sempre consigo um mistério, algo de inédito que só pode ser revelado com a ajuda dum pai que respeite a sua liberdade. Um pai sente que completou a sua ação educativa e viveu plenamente a paternidade, apenas quando se tornou «inútil», quando vê que o filho se torna autónomo e caminha sozinho pelas sendas da vida, quando se coloca na situação de José, que sempre soube que aquele Menino não era seu: fora simplesmente confiado aos seus cuidados. No fundo, é isto mesmo que dá a entender Jesus quando afirma: «Na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso “Pai”, aquele que está no Céu» (Mt 23, 9).

Todas as vezes que nos encontramos na condição de exercitar a paternidade, devemos lembrar-nos que nunca é exercício de posse, mas «sinal» que remete para uma paternidade mais alta. Em certo sentido, estamos sempre todos na condição de José: sombra do único Pai celeste, que «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus, e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (Mt 5, 45); e sombra que acompanha o Filho.

 

* * *

«Levanta-te, toma o menino e sua mãe» (Mt 2, 13): diz o anjo da parte de Deus a são José.

O objetivo desta carta apostólica é aumentar o amor por este grande Santo, para nos sentirmos impelidos a implorar a sua intercessão e para imitarmos as suas virtudes e o seu desvelo.

Com efeito, a missão específica dos Santos não é apenas a de conceder milagres e graças, mas de interceder por nós diante de Deus, como fizeram Abraão[26] e Moisés,[27] como faz Jesus, «único mediador» (1 Tm 2, 5), que junto de Deus Pai é o nosso «advogado» (1 Jo 2, 1), «vivo para sempre, a fim de interceder por [nós]» (Heb 7, 25; cf. Rm 8, 34).

Os Santos ajudam todos os fiéis «a tender à santidade e perfeição do próprio estado».[28] A sua vida é uma prova concreta de que é possível viver o Evangelho.

À semelhança de Jesus que disse: «Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração» (Mt 11, 29), também os Santos são exemplos de vida que havemos de imitar. A isto nos exorta explicitamente São Paulo: «Rogo-vos, pois, que sejais meus imitadores» (1 Cor 4, 16).[29] O mesmo nos diz São José através do seu silêncio eloquente.

Estimulado com o exemplo de tantos Santos e Santas diante dos olhos, Santo Agostinho interrogava-se: «Então não poderás fazer o que estes e estas fizeram?» E, assim, chegou à conversão definitiva exclamando: «Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!»[30]

Só nos resta implorar, de São José, a graça das graças: a nossa conversão.

Dirijamos-lhe a nossa oração:

Salve, guardião do Redentor
e esposo da Virgem Maria!
A vós, Deus confiou o seu Filho;
em vós, Maria depositou a sua confiança;
convosco, Cristo tornou-Se homem.

Ó Bem-aventurado José, mostrai-vos pai também para nós
e guiai-nos no caminho da vida.
Alcançai-nos graça, misericórdia e coragem,
e defendei-nos de todo o mal. Amen.

Roma, em São João de Latrão, na Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, 8 de dezembro do ano de 2020, oitavo do meu pontificado.

Francisco

 


 

[1] Lucas4, 22; João 6, 42; cf. Mateus 13, 55; Marcos 6, 3.

[2] Sacra Congr. dos Ritos, Quemadmodum Deus (8 de dezembro de 1870): ASS 6 (1870-71), 194.

[3] Cf. Discurso às Associações Cristãs dos Trabalhadores Italianos (ACLI) por ocasião da Solenidade de São José Operário (1 de maio de 1955): AAS 47 (1955), 406.

[4] Cf. Exort. ap. Redemptoris custos (15 de agosto de 1989): AAS 82 (1990), 5-34.

[5] Catecismo da Igreja Católica, 1014.

[6] Francisco, Meditação em tempo de pandemia (27 de março de 2020): L’Osservatore Romano (29/III/2020), 10.

[7] Homiliæ in Matthæum, V, 3: PG 57, 58.

[8] Homilia (19 de março de 1966): Insegnamenti di Paolo VI, IV (1966), 110.

[9] Cf. Livro da Vida, 6, 6-8.

[10]Todos os dias, há mais de quarenta anos, depois das Laudes, recito uma oração a São José tirada dum livro francês de devoções, do século XIX, da Congregação das Religiosas de Jesus e Maria, que expressa devoção, confiança e um certo desafio a São José: «Glorioso Patriarca São José, cujo poder consegue tornar possíveis as coisas impossíveis, vinde em minha ajuda nestes momentos de angústia e dificuldade. Tomai sob a vossa proteção as situações tão graves e difíceis que Vos confio, para que obtenham uma solução feliz. Meu amado Pai, toda a minha confiança está colocada em Vós. Que não se diga que eu Vos invoquei em vão, e dado que tudo podeis junto de Jesus e Maria, mostrai-me que a vossa bondade é tão grande como o vosso poder. Amen».

[11] Cf. Deuteronómio4, 31; Salmo 69, 17; 78, 38; 86, 5; 111, 4; 116, 5; Jeremias 31, 20.

[12] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 88; 288: AAS 105 (2013) 1057; 1136-1137.

[13] Cf. Génesis 20, 3; 28, 12; 31, 11.24; 40, 8; 41, 1-32; Números 12, 6; I Samuel 3, 3-10; Daniel 2; 4; Job 33, 15.

[14] Também nestes casos, estava prevista a lapidação (cf. Deuteronómio 22, 20-21).

[15] Cf. Levítico 12, 1-8; Êxodo 13, 2.

[16] Cf. Mateus 26, 39; Marcos 14, 36; Lucas 22, 42.

[17] São João Paulo II, Exort. ap.Redemptoris custos (15 de agosto de 1989), 8: AAS 82 (1990), 14.

[18] Francisco, Homilia na Santa Missa com Beatificações (Villavicencio – Colômbia, 8 de setembro de 2017): AAS 109 (2017), 1061.

[19] «… etiam illud quod malum dicitur», in Enchiridion de fide, spe et caritate, 3.11: PL 40, 236.

[20] Cf. Deuteronómio 10, 19; Êxodo 22, 20-22; Lucas 10, 29-37.

[21] Cf.Sacra Congr. dos Ritos, Quemadmodum Deus (8 de dezembro de 1870): ASS 6 (1870-71), 193; Beato Pio IX, Carta ap. Inclytum Patriarcham (7 de julho de 1871): ASS 6 (1870-71), 324-327.

[22] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 58.

[23] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 963-970.

[24] Edição original: Cień Ojca (Varsóvia 1977).

[25] Cf. São João Paulo II, Exort. ap. Redemptoris custos (15 de agosto de 1989), 7-8: AAS 82 (1990), 12-16.

[26] Cf. Génesis 18, 23-32.

[27] Cf. Êxodo17, 8-13; 32, 30-35.

[28] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 42.

[29] Cf. I Coríntios 11, 1; Filipenses 3, 17; I Tessalonicenses 1, 6.

[30] Confissões, 8,11,17; 10,27,38: PL 32, 761; 795.

José, o homem que habita no Mistério

Um homem capaz de entrar no mistério

O Evangelho (Mt 1, 16.18-21.24) diz-nos que José era “justo”, ou seja, um homem de fé, que vivia a fé. Um homem que pode ser incluído na lista de todas aquelas pessoas de fé que recordamos hoje no Ofício das Leituras. Aquelas pessoas que viveram a fé como fundamento do que se espera, como garantia do que não se vê; e a prova não se vê. José é homem de fé: por isso, era “justo”. Não somente porque acreditava, mas também porque vivia esta fé. Homem “justo”. Foi eleito para educar um homem que era verdadeiro homem, mas também verdadeiro Deus: era preciso um homem-Deus para educar um homem assim, mas não havia. O Senhor escolheu um “justo”, um homem de fé. Um homem capaz de ser humano e também capaz de falar com Deus, de entrar no mistério de Deus. E esta foi a vida de José. Viver a sua profissão, a sua vida de homem e entrar no mistério. Um homem capaz de falar com o mistério, de dialogar com o mistério de Deus. Não era um sonhador. Entrava no mistério. Com a mesma naturalidade com a qual levava adiante a sua profissão, com a precisão da sua profissão: ele era capaz de ajustar milimetricamente uma quina da madeira, sabia fazê-lo; era capaz de rebaixar, de diminuir um milímetro da madeira, da superfície da madeira. Justo, era preciso. Mas também era capaz de entrar no mistério que ele não podia controlar.

Eis a santidade de José: levar adiante a sua vida, o seu trabalho com justeza, com profissionalismo; e, no momento exato, entrar no mistério. Quando o Evangelho nos fala dos sonhos de José, explica-nos isto: ele entra no mistério.

Penso na Igreja hoje, nesta Solenidade de São José. Os nossos fiéis, bispos, sacerdotes, consagrados e consagradas, os Papas: são capazes de entrar no mistério? Ou devem ajustar-se segundo as prescrições que os defendem daquilo que não podem controlar? Quando a Igreja perde a possibilidade de entrar no mistério, perde a capacidade de adorar. A prece de adoração somente é possível quando entramos no mistério de Deus.

Peçamos ao Senhor a graça de que a Igreja possa viver no pragmatismo da vida diária e também na solidez – entre aspas – do mistério. Se não conseguir fazê-lo, será uma Igreja pela metade, uma associação piedosa, levada adiante por prescrições, mas sem o sentido da adoração. Entrar no mistério não é sonhar; entrar no mistério é precisamente isto: adorar. Entrar no mistério é fazer aquilo que faremos no futuro, quando chegarmos à presença de Deus: adorar.
Que o Senhor conceda esta graça à Igreja!
Papa Francisco, 19/03/2020

Come José, «guardiões» da criação e dos irmãos

Queridos irmãos e irmãs!
Agradeço ao Senhor por poder celebrar esta Santa Missa de início do ministério petrino na solenidade de São José, esposo da Virgem Maria e patrono da Igreja universal: é uma coincidência densa de significado e é também o onomástico do meu venerado Predecessor: acompanhamo-lo com a oração, cheia de estima e gratidão. (…)

Ouvimos ler, no Evangelho, que «José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor e recebeu sua esposa» (Mt 1, 24). Nestas palavras, encerra-se já a missão que Deus confia a José: ser custos, guardião. Guardião de quem? De Maria e de Jesus, mas é uma guarda que depois se alarga à Igreja, como sublinhou o Beato João Paulo II: «São José, assim como cuidou com amor de Maria e se dedicou com empenho jubiloso à educação de Jesus Cristo, assim também guarda e protege o seu Corpo místico, a Igreja, da qual a Virgem Santíssima é figura e modelo» (Exort. ap. Redemptoris Custos, 1).

Como realiza José esta guarda? Com discrição, com humildade, no silêncio, mas com uma presença constante e uma fidelidade total, mesmo quando não consegue entender. Desde o casamento com Maria até ao episódio de Jesus, aos doze anos, no templo de Jerusalém, acompanha com solicitude e amor cada momento. Permanece ao lado de Maria, sua esposa, tanto nos momentos serenos como nos momentos difíceis da vida, na ida a Belém para o recenseamento e nas horas ansiosas e felizes do parto; no momento dramático da fuga para o Egipto e na busca preocupada do filho no templo; e depois na vida quotidiana da casa de Nazaré, na carpintaria onde ensinou o ofício a Jesus.

Como vive José a sua vocação de guardião de Maria, de Jesus, da Igreja? Numa constante atenção a Deus, aberto aos seus sinais, disponível mais ao projecto d’Ele que ao seu. E isto mesmo é o que Deus pede a David, como ouvimos na primeira Leitura: Deus não deseja uma casa construída pelo homem, mas quer a fidelidade à sua Palavra, ao seu desígnio; e é o próprio Deus que constrói a casa, mas de pedras vivas marcadas pelo seu Espírito. E José é «guardião», porque sabe ouvir a Deus, deixa-se guiar pela sua vontade e, por isso mesmo, se mostra ainda mais sensível com as pessoas que lhe estão confiadas, sabe ler com realismo os acontecimentos, está atento àquilo que o rodeia, e toma as decisões mais sensatas. Nele, queridos amigos, vemos como se responde à vocação de Deus: com disponibilidade e prontidão; mas vemos também qual é o centro da vocação cristã: Cristo. Guardemos Cristo na nossa vida, para guardar os outros, para guardar a criação!

Entretanto a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos, mas tem uma dimensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de Génesis e nos mostrou São Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos. É guardar as pessoas, cuidar carinhosamente de todas elas e cada uma, especialmente das crianças, dos idosos, daqueles que são mais frágeis e que muitas vezes estão na periferia do nosso coração. É cuidar uns dos outros na família: os esposos guardam-se reciprocamente, depois, como pais, cuidam dos filhos, e, com o passar do tempo, os próprios filhos tornam-se guardiões dos pais. É viver com sinceridade as amizades, que são um mútuo guardar-se na intimidade, no respeito e no bem. Fundamentalmente tudo está confiado à guarda do homem, e é uma responsabilidade que nos diz respeito a todos. Sede guardiões dos dons de Deus!

E quando o homem falha nesta responsabilidade, quando não cuidamos da criação e dos irmãos, então encontra lugar a destruição e o coração fica ressequido. Infelizmente, em cada época da história, existem «Herodes» que tramam desígnios de morte, destroem e deturpam o rosto do homem e da mulher.

Queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade em âmbito económico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos «guardiões» da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste nosso mundo! Mas, para «guardar», devemos também cuidar de nós mesmos. Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida; então guardar quer dizer vigiar sobre os nossos sentimentos, o nosso coração, porque é dele que saem as boas intenções e as más: aquelas que edificam e as que destroem. Não devemos ter medo de bondade, ou mesmo de ternura.

A propósito, deixai-me acrescentar mais uma observação: cuidar, guardar requer bondade, requer ser praticado com ternura. Nos Evangelhos, São José aparece como um homem forte, corajoso, trabalhador, mas, no seu íntimo, sobressai uma grande ternura, que não é a virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro, de amor. Não devemos ter medo da bondade, da ternura!

Hoje, juntamente com a festa de São José, celebramos o início do ministério do novo Bispo de Roma, Sucessor de Pedro, que inclui também um poder. É certo que Jesus Cristo deu um poder a Pedro, mas de que poder se trata? À tríplice pergunta de Jesus a Pedro sobre o amor, segue-se o tríplice convite: apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas. Não esqueçamos jamais que o verdadeiro poder é o serviço, e que o próprio Papa, para exercer o poder, deve entrar sempre mais naquele serviço que tem o seu vértice luminoso na Cruz; deve olhar para o serviço humilde, concreto, rico de fé, de São José e, como ele, abrir os braços para guardar todo o Povo de Deus e acolher, com afecto e ternura, a humanidade inteira, especialmente os mais pobres, os mais fracos, os mais pequeninos, aqueles que Mateus descreve no Juízo final sobre a caridade: quem tem fome, sede, é estrangeiro, está nu, doente, na prisão (cf. Mt 25, 31-46). Apenas aqueles que servem com amor capaz de proteger.

Na segunda Leitura, São Paulo fala de Abraão, que acreditou «com uma esperança, para além do que se podia esperar» (Rm 4, 18). Com uma esperança, para além do que se podia esperar! Também hoje, perante tantos pedaços de céu cinzento, há necessidade de ver a luz da esperança e de darmos nós mesmos esperança. Guardar a criação, cada homem e cada mulher, com um olhar de ternura e amor, é abrir o horizonte da esperança, é abrir um rasgo de luz no meio de tantas nuvens, é levar o calor da esperança! E, para o crente, para nós cristãos, como Abraão, como São José, a esperança que levamos tem o horizonte de Deus que nos foi aberto em Cristo, está fundada sobre a rocha que é Deus.

Guardar Jesus com Maria, guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre, guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a cumprir, mas para o qual todos nós estamos chamados, fazendo resplandecer a estrela da esperança: Guardemos com amor aquilo que Deus nos deu!

Peço a intercessão da Virgem Maria, de São José, de São Pedro e São Paulo, de São Francisco, para que o Espírito Santo acompanhe o meu ministério, e, a todos vós, digo: rezai por mim! Amen.
PAPA FRANCISCO, INÍCIO DO MINISTÉRIO PETRINO
San Pietro 19/03/2013

“Perfil” de José, o santo do anti-protagonismo

Nos Evangelhos fala-se pouco sobre ele e não se cita suas palavras. A devoção pelo pai putativo e protetor de Jesus, “padroeiro da Igreja”, cuja festa se celebra no dia 19 de março, é um culto que se consolidou aos poucos. O que sabemos sobre ele e como os dois últimos papas falaram sobre ele.

Afigura de São José, “padroeiro da Igreja”, cuja festa se celebra no dia 19 de março, foi “descoberta” pela própria Igreja com certa lentidão. Não há vestígios sobre o seu culto nos calendários litúrgicos ou nos martirológios antes do século IX. No Ocidente, o culto aparece formalmente no século XI: dedicou-se a ele um oratório na catedral de Parma (em 1074) e construiu-se uma igreja em sua honra em Bolonha (1129).

No final do século XIV difundiu-se a festa de 19 de março dedicada ao santo, que se converteu em um preceito em 1621 por decisão de Gregório XV. Em 1870, Pio IX proclamou São José padroeiro da Igreja, e no ano seguinte reconheceu a ele o direito a um culto superior aos demais santos. O Papa Francisco, com um decreto da Congregação para o Culto Divino, de 1º de maio de 2013, incluiu uma menção de São José no cânon da missa, na oração eucarística, imediatamente depois do nome de Maria e antes dos nomes dos apóstolos.

O Evangelho de Mateus

Segundo o direito hebraico Jesus pertence a uma estirpe, a davídica, por ser filho de José. O primeiro dos dois Evangelhos da infância, o de Mateus, ocupa-se inteiramente da figura do pai putativo de Jesus para destacar que o Menino pertence à estirpe de Davi. Nele assume uma importância particular quando o carpinteiro aceita que o menino, filho de sua jovem e prometida esposa, não é seu. José é mencionado somente nos poucos parágrafos dos Evangelhos da infância, e nunca são citadas as suas palavras.

Seu nome significa “Ele [Deus] acrescentará” ou “Ele [Deus] reunirá”, e é o mesmo nome de outros seis personagens bíblicos. A tradição indica que este homem era idoso. Não só devido à sua completa ausência quando Jesus começa seu ministério público, ausência que permitiria deduzir que nessa época já não estava vivo. Também há a vontade, completamente apologética, de representar José idoso, é mais decrépito, para evitar qualquer insinuação sobre a castidade e sobre a virgindade de sua esposa Maria.

Migrante e refugiado

A iconografia clássica apresenta-o, pois, bastante idoso e com um bastão. José, com Maria e depois com o pequeno Jesus, foi um migrante e um refugiado. Migrante devido ao censo que o obrigou a ir de Nazaré a Belém, onde nasceu o menino nas condições precárias descritas por Lucas. Depois refugiado, porque se viu obrigado a fugir para o Egito, atravessando a fronteira de um país tradicionalmente acolhedor, para fugir da espada dos soldados de Herodes, que tinham recebido a ordem de matar todas as crianças pequenas de Belém.

O carpinteiro

Qual era a profissão de José? No Evangelho de Mateus (13, 55) lê-se esta definição de Jesus: “Não é este, por acaso, o filho do carpinteiro?” O próprio Cristo é definido pelo evangelista Marcos (6, 3) como “carpinteiro”. Estamos acostumados a traduzir a palavra grega “tékton” como “carpinteiro”. Mas estudos mais recentes tendem a reconsiderar esta definição e a propor uma tradução mais próxima a um “construtor”, embora esta, obviamente, seja uma hipótese.

“Tékton”, na época, indicava um operário que trabalhava com materiais duros, portanto não apenas madeira, mas também pedras, e que sabia fazer de tudo. Um indício que poderia indicar a solução de um José “construtor” seriam algumas parábolas do seu filho, dedicadas à arte de construir uma casa. Por exemplo, em Mateus (7, 24-26): “Qualquer um, pois que ouve estas palavras e as coloca em prática é comparável a um homem prudente que edificou sua casa sobre a pedra”.

No Evangelho de Lucas (14, 28-30), por outro lado, se pode ler: “Pois qual de vós, querendo edificar uma torre, não se assenta primeiro a fazer as contas dos gastos, para ver se tem com que a acabar? Para que não aconteça que, depois de haver posto os alicerces, e não a podendo acabar, todos os que a virem comecem a escarnecer dele. Dizendo: este homem começou a edificar e não pôde acabar”.

A menos de seis quilômetros de Nazaré estava Séfora (a atual Sípora), cidade que até o ano 20 a.C. foi a capital da Galileia, que depois teria sido substituída por Tiberíades. Carsten Peter Theide levantou a hipótese de que José e seu filho Jesus trabalharam na sua construção. A profissão de José, seja como for, devia permitir à sua família viver com dignidade.

“Era justo”

Merece também um comentário a expressão que Mateus usa ao definir José: “era justo”. O termo hebreu “sadiq”, explicam os estudiosos, significa “homem exemplar”, que respeita a Lei. Um hebreu “praticante”, observante, que possuía, portanto, certa cultura e que conhecia tanto o hebraico como o aramaico: a primeira era a língua clássica de Israel, a segunda era a que se usava comumente nessa época.

Uma antiga tradição rabínica relaciona o ofício de “operário”, “construtor”, com uma formação especial, ou seja, com um conhecimento especial do texto bíblico e com uma insólita capacidade para explicá-lo. José, escreve Mateus, é um homem “justo” e misericordioso. Ao tomar conhecimento da gravidez de Maria, antes de receber a mensagem de Deus em um sonho, decidiu repudiar sua esposa, mas em segredo. Não a repudia em público, não divulga a notícia da gravidez “ilegítima”. O anjo que aparece a ele em um sonho, com seu anúncio, resolve a situação.

As palavras de Bento XVI

Em uma homilia que o Papa emérito pronunciou no convento em que mora no Vaticano, Bento XVI traçou um “perfil” de São José: “Por que Deus escolheu José? Porque José era um homem justo, piedoso. Mas também porque José era um homem prático. Além disso, necessitava-se de um homem prático para organizar a fuga para o Egito, mas também para organizar a viagem para Belém por ocasião do censo e para satisfazer todas as necessidades práticas de Jesus”.

No dia 19 de março de 2006, o Papa Ratzinger recordou a figura do santo cujo nome carrega e destacou que “a grandeza de São José, junto com Maria, ressalta ainda mais porque sua missão foi desempenhada na humildade e no ocultamento da casa de Nazaré”.

Nas primeiras Vésperas da festa de São José de 2009, Bento XVI traçou, quase com estupor teológico, a figura do santo: “Ilustra-o São José de maneira surpreendente, ele que é pai sem ter exercido nenhuma paternidade carnal. Não é o pai biológico de Jesus, de quem apenas Deus é o Pai. No entanto, ele exerce uma paternidade plena e completa. Ser pai, sobretudo, é ser servidor da vida e do crescimento. São José demonstrou, neste sentido, uma grande dedicação. Por Cristo conheceu a perseguição, o exílio e a pobreza que deriva. Teve que estabelecer-se em um lugar diferente da sua aldeia. Sua única recompensa foi a de estar com Cristo”.

O “perfil” de Francisco

No dia 19 de março de 2013, o Papa Francisco celebrou a missa para o início do seu Pontificado. Na homilia, apresentou São José como modelo de educador, que protege e acompanha humildemente Jesus em seu crescimento. “José é ‘protetor’ porque saber escutar a Deus, se deixa guiar por sua vontade e, justamente por isso, é mais sensível às pessoas que se confiam a ele, sabe ler com realismo os acontecimentos, está atento ao que o rodeia e sabe tomar as decisões mais sábias. Nele, queridos amigos, vemos como se responde à vocação de Deus – com disponibilidade, com prontidão, mas também vemos qual é o centro da vocação cristã: Cristo! Protejamos Cristo na nossa vida para proteger os outros, para proteger a Criação!”

E, significativamente, no sábado 19 de março de 2016, festa de São José, [foi] assinada a exortação dedicada à família, documento que representa o caminho de dois sínodos.

O “documento de identidade” do protetor

Com tudo o que foi dito anteriormente, é possível concluir citando algumas características do “perfil” de São José. É um homem justo e misericordioso, capaz de ver além das convenções sociais. É um homem silencioso e humilde. Está aberto às “surpresas” de Deus, aos seus planos, embora alterem a vida cotidiana. É um protetor da vida, permite que Deus se faça homem, um menino inerme, “completamente dependente dos cuidados de um pai e de uma mãe” (como disso o Papa Wojtyla em Belém, em março de 2000); permite que cresça. É capaz de ser pai de um filho que não era seu. É um homem prático, capaz de ouvir a voz de Deus e de colocá-la em prática, para tomar as melhores decisões pelo bem de sua família.
de Andrea Tornielli
Vatican Insider, 17-03-2016.
http://www.ihu.unisinos.br

José, uma palavra vinda do silêncio

São José é a figura-chave para compreender algumas das dimensões essenciais da vocação cristã. Eis quatro delas: proteger a vida, praticar a justiça, deixar que Deus seja o protagonista da nossa vida, cultivar a dimensão mística (Mateus 1, 18-25; 2, 1-23).

No coração da Quaresma, a 19 de Março, a Igreja celebra a festa de São José. Como a de Maria no período do Advento (8 de Dezembro, festa da Imaculada Conceição). Representado frequentemente como um venerando ancião de barbas e cabelos brancos, de olhar triste e distante, de semblante preocupado, curvado sob o peso do seu destino… dir-se-ia que espelha o humor de um certo «espírito quaresmal» de outros tempos!

Os valores que o caracterizam, silêncio, obediência e serviço, também não estão de moda. Não é de admirar pois que a devoção a este santo tenha vindo a declinar desde há um certo tempo. E isto não obstante a exortação apostólica de João Paulo II Redemptoris Custos, de 1989, considerada a «magna carta» da teologia de São José, e o facto que “depois de Maria, a Mãe de Deus, nenhum santo ocupe tanto espaço no magistério pontifício como José, seu esposo” (Papa Francisco).

O Papa Francisco desde o inicio do seu ministério petrino tem vindo a chamar a atenção sobre a figura deste santo, culminando com a recente proposta do “Ano de São José” por ocasião dos 150 anos da declaração de São José como Padroeiro da Igreja Católica, feita pelo Beato Pio IX a 8 de dezembro de 1870, e com a publicação da Carta apostólica Patris Corde, Com coração de pai, com o objetivo de “aumentar o amor por este grande Santo”.

São José é uma figura-chave para compreender algumas das dimensões essenciais da vocação cristã. Eis quatro delas: proteger a vida, praticar a justiça, deixar que Deus seja o protagonista da nossa vida, cultivar a dimensão mística.

Servidor da Vida

Modelo de PATERNIDADE – Em hebraico, o nome José significa «Deus acrescente», «Deus te aumente». Uma vocação à fecundidade, à sobreabundância de vida, por conseguinte!

Descendente de David («filho de David»), originário de Nazaré, «carpinteiro» (tékton), uma profissão ligada à construção. Nos evangelhos é apresentado, por vezes, como o «esposo de Maria», coisa insólita porque geralmente era a esposa que pertencia ao marido. Mas também se diz de Maria que era «esposa de José» (Mateus 1,18) e que Jesus era o «filho do carpinteiro» (Mateus 13,55).

José antecipa e vive a palavra de Jesus que «um só é o nosso Pai» (Mateus 23,9). Encarna de uma maneira singular esta única paternidade divina (cf. Efésios 3,15). É pai sem exercer a paternidade carnal. Mas é pai para todos os efeitos, porque «ser pai é antes de mais ser servidor da vida e do seu crescimento» (Papa Bento XVI).

Como os antigos patriarcas, também ele recebe as comunicações de Deus através de sonhos, por três vezes. Sinal de uma vocação singular e de uma particular relação com Deus.

José é o último dos antigos patriarcas, mas o primeiro de uma nova geração, daqueles que «não nasceram do sangue, nem do impulso da carne, nem do desejo do homem, mas nasceram de Deus» (João 1,13).

Esta «paternidade» é uma dimensão da vocação cristã. Somos chamados, como José, a adoptar e proteger a vida. Ser fecundos, viver ao serviço da vida, sem apossar-se dela, desprendidos. José nos ensina como se pode amar sem «possuir» as pessoas.

A paternidade/maternidade é um valor que urge descobrir hoje, numa sociedade de «vagabundagem de experiências», rica em «filhos pródigos» mas pobre de «pais» e «mães» capazes de esperar pacientemente em casa para abraçar tais filhos quando eles regressarem, desiludidos da vida e famintos de amor. Tantas vezes encontram a casa vazia, sem ninguém à espera deles!…

Saber «ajustar-se»

Modelo de JUSTIÇA – O evangelho define José um «homem justo» (Mateus 1,19). Justo porque, sendo «fiel», «ajusta» a sua vida de acordo com a Palavra do seu Senhor. Mas também porque, sendo «sábio», é capaz de «ajustar-se» à realidade. Com efeito, quando se dá conta que Maria está grávida, a sua primeira reacção é a de cumprir a Lei (repudiando Maria), mas decide fazê-lo em segredo. Introduz assim um elemento novo, de prudência e sabedoria. Mantém a sua confiança em Maria. Não se deixa levar pela «suspeita». Porquê? Porque há nele «uma longa frequentação da escuta de uma outra palavra que o toca e penetra» (Frédérique Oltra, carmelita).

Sendo «justo», ele é o «administrador sábio e fiel que o Senhor coloca à frente do pessoal de sua casa» (Lucas 12,42). José sabe que é «servo» e que deve servir bem. Não basta a boa vontade. Por isso o texto bíblico fala de um homem «sábio e fiel» (Mateus 24,45). «A inteligência sem a fidelidade e a fidelidade sem inteligência são insuficientes» para assumir a responsabilidade que Deus nos confia (Bento XVI).

Praticar a justiça faz parte da nossa vocação. Ser «justos», como José. Uma justiça que nos leva a adoptar um comportamento «justo» e a ocupar o lugar «justo» na vida, o do serviço. Uma justiça iluminada pelo amor, «o cumprimento perfeito da Lei» (Romanos 13,10). Um bem que também escasseia hoje. Fala-se muito de justiça, mas faltam «homens justos».

Ficar fora da fotografia

Modelo de DISCRIÇÃO – José é um homem discreto, uma pessoa reservada. Sempre «fora da fotografia», como comenta, com certa graça, um autor: «Duas irmãs folheavam o novo livro de religião, quando vêem uma pintura da Virgem Maria com o Menino Jesus. – Olha – diz a maior –, este é Jesus, e esta é sua mãe. – E onde está o pai? – pergunta a mais pequenina. A irmã pensou por um momento e então exclamou: – Ah, ele tira a fotografia.»

Homem do silêncio, os factos falam por si. Homem da obediência, o Evangelho sublinha o perfeito cumprimento das disposições que lhe são comunicadas pelo anjo em sonho (Mateus 1,24). Como diz o Cântico dos Cânticos: enquanto dorme, o seu coração permanece vigilante (5,2).

Esquecido de si mesmo, vive para «o menino e sua mãe» (Mateus 2,13.19). Como João Baptista, considera que é bom que ele mesmo diminua e que eles cresçam. A sua vida pertence-lhes totalmente. E assim, a certo ponto «desaparece»… para não fazer sombra ao filho!

Cada um de nós é chamado a seguir este testemunho. Discretos como José, pondo a nossa vida ao serviço da missão de Cristo. Saber pôr-se de lado, retirar-se atrás dos bastidores. Não é coisa fácil nem evidente. Vivemos numa sociedade que privilegia a «realização pessoal» e o protagonismo. Desde pequenos, concebemos o nosso próprio projecto de vida, o que queremos ser «quando formos grandes». A vocação implica renunciar a tal sonho humano (como José com Maria) para abraçar o divino. Saber eclipsar-se para que o projecto de Deus se realize em nós!

Habitar no mistério

Modelo de CONTEMPLAÇÃO – José é o santo do silêncio, um que não fala nunca. Mas um silêncio rico e profundo, que nos desafia. Porquê este silêncio? Porque José vive no mistério! Não se trata de uma questão de palavras, mas de atitude de vida, de toda a sua pessoa.

Diante do facto inesperado – para ele incompreensível e «misterioso» – de Maria grávida, José pensa em retirar-se, silenciosamente. É a palavra do anjo: «não tenhas medo de receber Maria como esposa, porque ela concebeu pela acção do Espírito Santo» (Mateus 1,20) que introduz José no mistério, como Gabriel fizera com Maria.

Esta palavra não elimina o mistério, não explica o que realmente aconteceu, nem como. Esta palavra introduz José no mistério que já absorvera Maria. José não está mais na frente do mistério mas dentro. Não é como o povo de Israel em frente da nuvem no deserto, entra dentro da nuvem, como Moisés ou como os três apóstolos no monte Tabor» (teólogo Borel).

Antes estava «fora» do mistério, de frente a ele, e por isso duvidava e tinha medo. Depois deixa-se conduzir por ele, como Maria após o seu «fiat». «Agora», dentro «do mistério, mesmo sem compreendê-lo, não o pode negar.

Entrar no mistério de Deus é a dimensão essencial de toda a vocação. Esta requer a disponibilidade a deixar-se «introduzir» nele. Sem isso, o vocacionado fica «de fora» e não encontrará as motivações para viver à altura da sua vocação. Será, na melhor das hipóteses, um «bom funcionário» ou um «mercenário», e no pior dos casos um «parasitário» ou «servo infiel» (Lucas 12, 46).

Em conclusão, José não é certamente o homem retratado por uma certa iconografia. Envolvido pelo mistério, no seio de uma família que amou e o amava, identificado com a sua vocação de protector do Autor da Vida, exercendo com competência a sua profissão… foi e é homem feliz!

Manuel João Pereira Correia - Combonianum