Sábado, 6 de Março de 2021
Padre Germano Serra (na foto), um missionário comboniano português, acaba de publicar o dicionário mais completo da língua karimojong, uma tribo semi-nómada do Uganda por que se apaixonou há quase quatro décadas. [P. José Rebelo – Além-Mar e 7Margens].
O padre Germano Serra é natural de Fânzeres, Gondomar, onde nasceu há 65 anos. Enamorou-se do povo karimojong (ou karamojong) desde que foi estudar teologia para Kampala (Uganda), em 1984. Aproveitava as férias – o que fez por seis vezes em três anos – para ir para Kanawat, uma das missões que os Combonianos tinham – e têm – entre aquele povo pastoril e guerreiro.
Regressa ao Uganda já como padre, em 1993. O seu sonho era trabalhar entre o povo que melhor conhecia. É-lhe feita a vontade. É destinado ao Karamoja onde há duas dioceses – Kotido e Moroto – cujos bispos ainda são combonianos. É introduzido à realidade pelo padre Mario Mantovani, que viria a ser morto numa emboscada em 2003. Desde então, já leva cerca de 20 anos de trabalho no Uganda – em dois períodos (1993-2004 e desde 2012) – intercalados com trabalho em Portugal.
O padre Germano embrenha-se mais profundamente na realidade karimojong em 1998, submetendo-se à cerimónia de iniciação tribal. O rito tem várias etapas. Uma delas é a morte de um boi com uma lança – não com uma estocada à matador, mas de lado, atingindo-lhe os pulmões. O animal acaba por morrer de hemorragia interna. O iniciante bebe-lhe o sangue e o seu corpo é untado com o bolo alimentar que o animal ainda tem no estômago. Com a carne é organizado um banquete em honra dos antepassados representados nos anciãos. O iniciante passa a ser considerado um da tribo.
Os maiores mestres da língua karimojong eram os padres combonianos italianos Mario Mantovani (na língua falada, que iniciou o padre Germano na língua e costumes do grupo), Bruno Novelli (na escrita, falecido em 2003), e Pasquale Crazzolara (um grande gramático de várias línguas africanas, mentor do padre Novelli, e falecido em 1976). Os dois últimos deixaram obra escrita. Apesar de não ter grandes conhecimentos de lexicografia, Germano Serra sentiu que não podia deixar cair em saco roto o legado destes dois grandes conhecedores da língua, especialmente do padre Novelli.
Bruno Novelli completou a gramática karimojong iniciada pelo padre Crazzolara e tinha começado o dicionário: infelizmente faleceu quando lhe faltavam seis letras do alfabeto. “Era uma casa sem tecto e sem um plano conhecido”, comenta o padre Germano. Por isso, aconselhado por alguns especialistas que contactou, decidiu apoiar-se no outro material que o estudioso tinha deixado – mais de 600 folhas de apontamentos à mão, em que, além do significado das palavras, havia frases exemplificativas.
O padre Germano acaba por formar uma equipa internacional para o ajudar na empresa do dicionário: um lexicógrafo em Brighton (Inglaterra), que lhe vende o programa, uma dactilógrafa ugandesa, uma revisora de inglês a viver em Espanha (jubilada da Universidade de Salamanca), um corrector da língua karimojong, uma gráfica em Portugal, e um par de conselheiros da Universidade de Makerere, em Kampala. O resultado foi uma obra de 765 páginas, que inclui o significado das palavras e o modo como se podem usar.
O trabalho foi subsidiado pela Conferência Episcopal Italiana e a impressão pelo Movimento de Solidariedade Missionária de Viseu. Apenas um número reduzido de cópias do Dicionário Karimojong-Inglês foi publicado, sobretudo para uso das bibliotecas e centros de estudo. Mas todo o livro irá estar disponível na net para consulta. O mesmo se diga de outras fontes importantes para o conhecimento do povo e da cultura karimojong, como livros e vídeos.
A importância que um dicionário tem justifica todo o esforço. O padre Germano considera a língua como “uma das grandes chaves do trabalho missionário”, porque permite comunicar e chegar ao coração das pessoas. O dicionário é, por isso, um instrumento fundamental para todos aqueles que queiram conhecer a riqueza daquela cultura africana e entrar no coração do povo.
Apesar de ter sentido a chamada à vida missionária quando tinha apenas 12 anos, o padre Germano só acaba por entrar no seminário já a caminho dos 24. É o que na gíria se chamava uma “vocação adulta”. Antes tinha frequentado o ensino técnico e trabalhado numa metalomecânica no Porto. Por algum tempo ainda frequentou o Instituto de Engenharia, que acabou por abandonar. O seu hobby era o culturismo e tinha orgulho no seu corpo musculado, bronzeado e luzidio no Verão.
Vindo do ensino técnico, não admira que quando teve de estudar filosofia – e depois teologia – para ser sacerdote teve dificuldade. Era uma pessoa prática e pragmática e não sentia inclinação para a especulação. Os superiores tentam que ele se torne irmão missionário, mas ele não desiste do seu sonho e acaba por ser ordenado padre em 1989, com 33 anos.
Desde então – e apesar dos seus pedidos – também não lhe foi dada a oportunidade de se preparar no campo linguístico. Por isso, o dicionário é um fruto surpreendente da sua vida, só possível devido à sua persistência, colaboração que conseguiu reunir e paixão missionária.
O missionário teve um ataque de apendicite no início do ano passado. Depois de uma semana no Hospital de Matany, dirigido pelos combonianos, foi aconselhado a vir operar-se a Portugal. Não pôde regressar devido à pandemia de covid-19 que começava a assolar o mundo. O confinamento permitiu-lhe terminar o livro e dedicar-se a juntar material para enriquecer o seu site sobre a língua e cultura karimojong – e que deverá ser restabelecido assim que encontrar ajuda.
Os karimojong são um povo agro-pastoril da etnia nilótica, que vive no nordeste do Uganda, num território que é cerca de um décimo da superfície do Uganda, ou seja, uma porção de terra quase tão grande como o nosso Alentejo. São semi-nómadas, porque, devido ao clima árido, têm de se mover durante cerca de metade do ano em busca de água e pasto para o gado. Até à data da independência do país, em 1962, era precisa uma autorização dos ingleses para entrar na zona, que era considerada quase uma reserva, ou um jardim zoológico para seres humanos num estado pré-civilizacional.
Pensa-se que os karimojong tenham emigrado há cerca de 400 anos do que é hoje a Etiópia. As suas feições parecem confirmá-lo: são altos e elegantes. Vivem frugalmente, sobretudo quando estão fora de casa com o gado: têm uma dieta à base de leite misturado com sangue, que extraem das vacas. Apesar de terem abundância de animais raramente comem a sua carne e só os matam por necessidade extrema ou para lhes abreviar a morte. Vestem-se de um modo simples, especialmente os homens, para quem uma capulana ou manta chega para se cobrirem, quando necessário, sobretudo em lugares públicos; se não, andam como vieram ao mundo.
Uma cena curiosa naquelas paragens era ver os pastores meio nus com uma metralhadora de fabrico soviético (kalashnikovs ou simplesmente AK-47s) às costas. Armas que vieram da guerra civil sudanesa ou que foram roubadas às Forças Armadas Ugandesas. Nos últimos anos, o exército tem tentado retirar-lhes as armas e já não se vêem. Mas algumas terão sido escondidas porque alguém garantiu ao padre Germano: “Se forem precisas, elas aparecem.”
As armas contribuem para o aumento da conflitualidade entre os karimojong e os povos vizinhos, especialmente os pastoris do Sudão e Quénia, através da realização de raides (rusgas) para roubar gado. Os jovens utilizam-nos como um rito de passagem, uma forma de aumentar os seus rebanhos, ganharem estatuto e terem mais cabeças de gado para pagarem melhores dotes matrimoniais às famílias das noivas. Dado que os outros povos também possuem armas, os raides podem ser fatais. Ora atacam, ora são atacados.
A evangelização dos karimojong tem sofrido alguns soluços ao longo dos tempos. Os combonianos chegaram em 1933 ao Karamoja, que pertencia então à diocese de Gulu. Durante a Segunda Guerra Mundial, os italianos foram presos pelos ingleses, para quem o Uganda era um protectorado. A missão foi fechada e só recomeça em 1952.
Em 1964, os Combonianos expulsos do Sudão vêm reforçar o contingente missionário no Uganda. Metem mãos ao trabalho com o método que sabiam: estabelecem novas missões, abrem escolas e dispensários e começam a tradução da Bíblia em karimojong (imprimem o Novo Testamento em 1975). O leprosário de Morulém e o hospital de Matany, que ainda existe, começam nesse tempo. Na pastoral, os missionários regem-se pela ideia de que sem o baptismo não há salvação e, por isso, dão prioridade à administração dos sacramentos.
O ano de 1964 acaba por ser emblemático para a missão – como se faz e se percebe – na sua vertente “assistencialista”. Nesse ano houve uma grande epidemia de cólera em que morrem centenas ou mesmo milhares de pessoas e os missionários actuam como se fossem membros de uma qualquer ONG para o desenvolvimento, distribuindo sal, sabão, milho e outros bens de primeira necessidade. Em 1965, nasce a primeira diocese na zona Karamoja: Moroto. A segunda só nascerá em 1992, com sede em Kotido.
Nos anos 70 chegam novos missionários, já formados na escola do Concílio Vaticano II e orientam a evangelização para a catequização dos adultos (até porque em 1964, o Presidente Milton Obote lhes tinha confiscado as escolas, que eram úteis na catequização das crianças). Fazem uma pastoral de presença. Começam os safaris missionários que os leva a passar muito tempo fora, nas aldeias, e a dormir por lá. Nas décadas de 80 e 90, a região torna-se deveras perigosa com a chegada das armas. Aumentam os raides e as emboscadas, que ceifaram a vida de alguns missionários. Ser destinado ao Karamoja era como ser mandado para o desterro.
Os costumes ocidentais estão a penetrar por lá e muitos valores tradicionais começam a ser esquecidos ou mantêm-se apenas no seu aspecto folclórico. Mas as características mais arreigadas não mudam. Os povos nilóticos, como os karimojong, são por natureza guerreiros. Dada a mobilidade dos homens, é difícil alcançá-los e transmitir-lhes a mensagem de Jesus. Não basta falar a sua língua: é preciso entender a sua linguagem cultural. Por isso, esta missão longe de tudo, não é para todos, mas só para os mais rijos dos rijos. Foi por ela que o padre Germano se apaixonou há quase quatro décadas.
[P. José Rebelo – 7Margens]
José Rebelo é padre dos Missionários Combonianos e jornalista, antigo director da revista Além-Mar, em cujo número de Março este texto é também publicado.