Domingo, 10 de Janeiro de 2021
O bispo da diocese de Bangassou há quase 21 anos, D. Juan José Aguirre [na foto (Ansa)], missionário comboniano espanhol, informou que os rebeldes dominam o território da sua diocese há já alguns dias e que “o País está no centro de um trágico jogo internacional para explorar os seus recursos minerais”.
Na quarta-feira passada, após a oração mariana do Ângelus, o Papa Francisco referiu-se ao drama humano que se vive na República Centro-Africana e disse que segue com atenção e preocupação os acontecimentos naquele país africano, onde recentemente se realizaram eleições, nas quais o povo expressou o seu desejo de continuar no caminho da paz. “Portanto – disse o Santo Padre –, convido todas as partes a um diálogo fraterno e respeitoso, a rejeitar o ódio e a evitar todas as formas de violência”.
Hoje, o padre Domingos Sávio de Oliveira, comboniano brasileiro a trabalhar na República Centro-Africana, diz que, desde o início deste ano, a situação política, social e eclesial tem vindo a agravar-se drasticamente: “Sobre a situação aqui na República Centro Africana, cada dia os rebeldes avançam mais, ...ganham mais espaço. Alguns dizem que já tem um grupo infiltrado aqui na capital, Bangui; só estão à esperam de uma oportunidade. O exército estabeleceu o recolher obrigatório das 20h00 até às 5h00 da manhã. Começam a faltar alguns géneros alimentícios, pois ao longo das estradas principais encontram-se grupos de rebeldes e os motoristas não querem arriscar. Se continuar assim, vamos ter dificuldade em encontrar mercadorias e os preços, que já são elevados, vão subir ainda mais.”
“A minha África Central
de novo sem paz”
Vem de Bangui o testemunho da Irmã Rosaria Donadoni, missionária comboniana, depois das novas violências que nestes dias acompanharam as eleições: «Este país, situado no centro exato da África, devia fazer pulsar o coração de todo o continente, mas não tem força suficiente. Ajudai-nos para que não se perca a luz que ainda há"
Num crescendo de tensões e de confrontos armados, no dia 27 de dezembro, a República Centro-Africana foi às urnas para as eleições presidenciais e legislativas. Após a exclusão, pelo Tribunal Constitucional, do candidato François Bozizé, principal adversário do presidente cessante, Faustin-Archange Touadéra, os rebeldes da Coalition des patriotes pour le changement (CPC) [Coalizão dos patriotas pela mudança] intensificaram os ataques, até ocuparem a cidade por Bambari.
«Teme-se uma marcha sobre Bangui, a capital, onde me encontro: o objetivo de Bozizé, apoiado pelos rebeldes da CPC, é o golpe de estado – afirma a Irmã Rosaria Donadoni, missionária comboniana na República Centro-Africana desde 1991 –. Na capital, as pessoas ainda conseguiram votar, mas na província os rebeldes destruíram os locais de votação.
A cidade de Bangui está totalmente militarizada. A segurança aumentou: estão presentes as forças de paz da ONU, com equipamento defensivo, e todas as vias de acesso à capital estão presidiadas. Além disso, a Rússia, que tem interesse nos recursos do país e apoia Touadéra, enviou instrutores militares para treinar o exército centro-africano”.
Bozizé, agora com 74 anos, tornou-se presidente do país, por meio de um golpe de estado, em 2003: durante a guerra civil de 2013, foi destituído pelos rebeldes muçulmanos da coalizão Séléka. Desde 2016 o presidente do país é Touadéra. Contra Bozizé, excluído das últimas eleições, há um mandado de prisão internacional. “Ele tinha fugido para o exterior, mas agora está de volta, pronto para se candidatar – continua a irmã Rosaria, de 63 anos, natural de Bérgamo, de Villa d'Almè –. Na República Centro-Africana reina a instabilidade: desde quando estou aqui, só me lembro de alguns anos de paz”.
Em 2003, quando Bozizé assumiu o poder, a Irmã Rosaria estava no norte do país, atuando na área de educação e formação. “Éramos três irmãs: uma espanhola e duas italianas. Foi um período de tensões. Ficámos presas na nossa comunidade, sem contatos com o exterior, durante cinco meses: ninguém sabia se estávamos vivas ou mortas”. Em 2013, quando os rebeldes do grupo Séléka forçaram Bozizé a fugir, a Irmã Rosaria estava na floresta com os pigmeus. «Os adversários dos Séléka, os Anti-balaka, de presumida matriz cristã, estavam procurando os comerciantes muçulmanos para se vingarem. Escondemos alguns deles na área da concessão da paróquia, mas outros foram apanhados pelos Anti-balaka e degolados: as cabeças deles foram colocadas à beira das estradas como aviso».
Uma guerra de religião? “Não, é um jogo político. No país há muito ouro, há diamantes no Leste, há urânio, e o petróleo ainda não foi extraído: a Rússia está interessada, mas não é a única. Na República Centro-Africana existe uma plataforma religiosa para o diálogo com os muçulmanos e com os cristãos não católicos: um sinal de unidade e de apoio recíproco para cooperar uns com os outros, porque é possível viver como irmãos. O cardeal Dieudonné Nzapalainga, arcebispo de Bangui, deseja que a Igreja seja um veículo de esperança para este povo cansado de guerras civis”.
Foi precisamente à República Centro-Africana, que o Papa Francisco fez uma visita, em novembro de 2015: nessa ocasião, proclamou Bangui como a capital espiritual do mundo, abrindo o Jubileu da misericórdia. "Foi um momento inesquecível. O Papa pediu aos grupos rebeldes que deixassem as suas armas e buscassem o caminho do amor e do diálogo. Aconteceu por um certo tempo, mas agora recomeçou tudo de novo. Hoje, mais da metade da República Centro-Africana está nas mãos de grupos rebeldes, equipados com armas pesadas: atiram na multidão, perto dos locais de votação, boicotando as eleições. Este país, localizado no centro exato da África, deveria fazer pulsar o coração de todo o continente, mas não tem forças suficientes: precisa de ajuda; e não só do ponto de vista econômico, dada a pobreza generalizada, mas também no aspecto espiritual, para que não se perca a luz que que ainda há. Rezo para que num amanhã brilhe um novo sol, um arco-íris sob o qual todos os centro-africanos possam marchar juntos como irmãos".
[Davide Amato – Mondo e Missione]
Mons. Juan José Aguirre:
“Bangassou, nas mãos dos rebeldes”
“Teremos que nos adaptar a um novo regime... Esperamos que sejam evitados agressões e saques. Para a Igreja, a população continua presente, os pobres não se mudaram nem o Cristo que habita neles, a comunidade cristã continuará a crescer e nós continuaremos a crescer com ela. Estávamos trabalhando em tantos projetos lindos de reconstrução do país... Agora teremos que recomeçar muitos deles. Tempo do homem, tempo de Deus!”
Sim, Bangassou caiu nas mãos dos rebeldes hoje, muitos deles mercenários e gente do Níger. A manhã foi agitada! Artilharia pesada desde as 5 da manhã e uns trinta mortos e feridos. Teremos de nos adaptar a um novo regime... Esperamos que sejam evitados ataques e saques. Para a Igreja, a população ainda está presente, os pobres não se mudaram nem o Cristo que neles habita, a comunidade cristã continuará a crescer e nós com ela. União de orações!
Na foto acima, um grupo de crianças órfãos que trouxemos para casa nos dias de tumulto e insegurança. Aqui eles estão entretidos. Pois eles também são inocentes, você olha nos olhos deles e eles não sabem nada sobre rebeldes, mercenários, lutas pelo poder... Eles só ouvem os tiros e as rajadas e ficam muito assustados.
Estávamos trabalhando em tantos lindos projetos de reconstrução do país ... Agora teremos que recomeçar muitos deles. Tempo do homem, tempo de Deus! Há muitos traumas que precisam ser curados. Atrás de cada choque pós-traumático está o Cristo sofredor! Os anciãos da casa da esperança não sei nem como estão hoje. Será que colocaram algo na boca hoje? Os mais vulneráveis sempre pagam pelos pratos quebrados.
Houve crianças feridas por balas perdidas, crianças que tinham fugido para o Congo, apenas o rio nos separa, para escapar do fogo. Mas uma bala caiu sobre ela como uma espada de Dâmocles, sem ela saber de onde vinha. Mesmo na sua fuga, ela foi atingida pela violência dos agressores. Outro, um rebelde, assassinaram-no a pauladas, justiça popular. Eu vi a sua foto. Ontem à noite, quando dormia, não podia imaginar que o seu corpo poderia ficar totalmente destroçado. Depois há os soldados do governo que aguentaram várias horas desta festa da Epifania, até que o fogo cruzado os derrotou e eles fugiram, deixando-nos sozinhos, a mim e à minha gente e Deus mudo ao nosso lado.
Mas esta tarde, durante as vésperas, fomos reconhecidos por Ele e dissemos: sabíamos que estavas aqui! "Mas, na noite mais escura, estavas dormindo."
Deus é nosso escudo!
[Religiondigital]